10 FUGINDO

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Nihal passou os quatro dias seguintes no mais completo silêncio. Ficou de cama, com a dor no flanco como única companheira, a olhar para fora da janela sem dizer uma palavra. 

Precisava pensar. Tinha a impressão de ter sido repentinamente jogada na existência de outra pessoa. Até aquele momento sua vida havia sido acordar, ouvir o martelo de Livon bater no metal, ver suas costas dobradas em cima do trabalho. Ir conhecer Soana para aprender a magia e devanear com Senar acerca do futuro. Segurar a espada, brincar de guerreiro e esperar, confiando no amanhã. De uma hora para outra tudo mudara. Ela tinha matado: a espada já não era brincadeira. Nunca mais iria rever Livon, a não ser na lembrança: só como um corpo morto no chão. E era culpa dela. 

Quem o tirou dos afazeres normais só porque tinha esta mania de combater? Ela.Quem se portara como uma criança achando que até a morte era brincadeira? Ela. E não era ela afinal um perigo, logo ela, última remanescente de uma raça que o Tirano tinha apagado da face da terra? Não era ela que os fâmins queriam matar quando entraram na loja? 

Nihal sentia-se desaventurada. 

Sempre considerara a estranheza do seu aspecto apenas uma piada da natureza. Mas,ao contrário, ela tinha um significado terrível. Os sonhos tinham mostrado com fria crueldade tudo o que acontecera, como se ela tivesse estado ali, testemunha do extermínio de um povo. O relato de Soana confirmara: aquela chacina esquecida tinha tudo a ver com ela  



  Todas as noites daqueles quatro dias as vozes do seu povo trucidado atormentaram-na invocando vingança. 

Na última noite sonhou com os semblantes dos seus similares: cada rosto vinha ao seu encontro com seu desespero, sua história, e naqueles olhares mudos Nihal pôde ver a irreparabilidade do que havia acontecido. Entre eles também vislumbrou o de Livon. Tinha uma tristeza profunda no olhar e murmurava: Foste tu quem me mataste, Nihal, foi culpa tua...

 Acordou toda molhada de suor, gritando. Senar veio logo ao seu lado. 

– Outro pesadelo? 

Nihal anuiu ofegante. 

– Estou só, Senar. O meu povo já não está aqui entre os vivos, mas sim com a minha estirpe. – Olhou pela janela. – Por que estou viva? Por que Livon morreu por minha causa? 

Até então Senar tinha achado melhor não dizer coisa alguma. Estava convencido de que Nihal tinha de encontrar sozinha uma saída. Ainda se lembrava das palavras vazias que lhe haviam sido ditas pelos soldados para consolá-lo. Melhor o silêncio. Mas ao vê-la em prantos não conseguiu mais ficar calado. 

– Não sei, Nihal. E também não sei por que o Tirano matou todos os semielfos. Só sei que tu estás aqui, no entanto. E que precisas ir em frente. Por ti mesma e por Livon,porque ele te amava e queria ver-te crescer feliz e forte. 

Nihal sacudiu a cabeça. 

– É tão difícil... Penso nele o tempo todo, naquilo que fez por mim e principalmente naquilo que eu não fiz por ele. E a cada instante digo a mim mesma que foi culpa minha.Era muito bom com a espada, poderia ter vencido os fâmins, poderia conseguir. Mas eu o distraí, matei-o. Sou uma boba... eu... 

Nihal recomeçou a chorar. Desde o dia da batalha não derramara uma única lágrima,mas agora o pranto enchia-lhe fartamente os olhos. Senar apertou-a ao peito como já fizera na Floresta naquela noite que já parecia tão longínqua no passado.   



  No dia seguinte, Nihal viu aparecer na armação de madeira da janela um pequeno rosto cansado e esbaforido. Era Phos. Senar mandou-o entrar e ele ajeitou-se sobre o lençol de Nihal. Levou algum tempo antes de o duende começar a falar. 

A garota da terra do ventoOnde histórias criam vida. Descubra agora