ESTRADAS E ATALHOS

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Havia um jornal semanal em Chester’s Mill chamado Democrata. O que era informação enganosa, já que
proprietário e gerente — ambos os cargos exercidos pela temível Julia Shumway — eram republicanos até os ossos.
O cabeçalho era mais ou menos assim:
O DEMOCRATA DE CHESTER’S MILL

Fund. 1890

Servindo à “Cidadezinha que Parece uma Bota!”

Mas o lema também era informação enganosa. Chester’s Mill não parecia uma bota; parecia a meia esportiva de
uma criança, imunda a ponto de ficar em pé sozinha. Embora tocada a sudoeste (o calcanhar da bota) pela maior e
mais próspera Castle Rock, na verdade Mill era cercada por quatro cidades de área maior mas população menor:
Motton, ao sul e sudeste; Harlow a leste e nordeste; o distrito TR-90, não incorporado a nenhuma delas, ao norte; e
Tarker’s Mills a oeste. Às vezes chamavam Chester e Tarker de Mills Gêmeas, e, na época em que as fábricas de
tecido do centro e do oeste do Maine funcionavam a todo vapor, asduas transformavam o riacho Prestile num esgoto
poluído e sem peixes que mudava de cor quase todo dia de acordo com o local. Naquele tempo, podia-se sair de
Tarker numa canoa em água verde e estar num amarelo vivo quando passasse por Chester’s Mill para chegar a
Motton. Além disso, se a canoa fosse de madeira, a tinta chegava abaixo da linha d’água.
Mas a última dessas lucrativas fábricas de poluição havia fechado em 1979. As cores esquisitas haviam
abandonado o Prestile e os peixes haviam voltado, mas se serviam ou não para consumo humano ainda era tema
de debate. (O Democrata votava “Ai!”)
A população da cidade era sazonal. Entre o Memorial Day, no final de maio, e o Labor Day, no início de setembro,
era de quase 15 mil habitantes. No resto do ano, ficava só um pouquinho acima ou abaixo de 2 mil, dependendo do
equilíbrio de mortese nascimentosno Catherine Russell, considerado o melhor hospitalao norte de Lewiston.
Se alguém perguntasse aos veranistas quantas estradas levavam a Mill, a maioria diria que eram duas: a rodovia
117, que ia de Norway a South Paris, e a rodovia 119, que passava pelo centro de Castle Rock a caminho de
Lewiston.
Os moradores há mais ou menos dez anos poderiam citar ao menos mais oito, todas asfaltadas com duas pistas,
desde as estradas da Serra Negra e do Corte Fundo, que iam para Harlow, até a estrada do Belo Vale (é, tão bela
quanto o nome), que ia para o norte até o TR-90.
Os residentes há trinta anos ou mais, se lhes dessem tempo para pensar no caso (talvez na salinha dos fundos do
Brownie’s, onde ainda havia um fogão a lenha), poderiam citar mais uma dúzia, com nomes sagrados (estrada do
Riacho de Deus) e profanos (estrada da Bostinha, marcada nos mapas cartográficosapenas com um número).
No dia que ficaria conhecido como Dia da Redoma, o morador mais antigo de Chester’s Mill era Clayton Brassey.
Também era o morador mais antigo do condado de Castle e por isso detentor da Bengala do Boston Post.
Infelizmente, já não sabia mais o que era uma Bengala do Boston Post, nem mesmo quem ele era. Às vezes,
confundia a tataraneta Neil com a esposa, que morrera havia quarenta anos, e três anos antes o Democrata parara
de fazer com ele a entrevista anualdo “morador maisantigo”. (Na última ocasião, quando lhe perguntaram o segredo
da longevidade, Clayton respondeu: “Cadê o meu jantar de batizado?”) A senilidade começou a se instalar pouco
depois do centésimo aniversário; em 21 de outubro passado, ele fez 105 anos. Já havia sido marceneiro
especializado em sancas, armários e balaústres. Nesses últimos dias, as suas especialidades eram comer gelatina sem enfiá-la no nariz e às vezes conseguir chegar ao banheiro para soltar na privada meia dúzia de pelotas
manchadasde sangue.
Mas nos bons tempos — ali pelos 85 anos, digamos — ele conseguia citar quase todas as estradas que entravam
e saíam de Chester’s Mill, e o totalera de 34. A maioria era de terra, muitasestavam esquecidase quase todasestas
serpenteavam por emaranhados profundos de florestas secundárias pertencentes à Diamond Match, à Continental
Paper Companye à American Timber.
E pouco antesdo meio-dia do Dia da Redoma, todas foram fechadas.
Na maioria dessas estradas, não aconteceu nada tão espetacular quanto a explosão do Seneca V e o desastre
seguinte com o caminhão carregado de madeira, mas houve problemas. É claro que houve. Se o equivalente a um
muro de pedra invisível surge de repente em volta de uma cidade inteira, tem de haver problemas.
No mesmíssimo instante em que a marmota caiu em dois pedaços, um espantalho fez o mesmo na plantação de
abóboras de Eddie Chalmers, não muito longe da estrada do Belo Vale. O espantalho estava exatamente sobre a
linha que separava Mill do TR-90. A sua postura dividida sempre havia divertido Eddie, que chamava o seu
amedrontador de pássaros de Espantalho Sem Terra — Sr. EST, para resumir. Metade do sr. EST caiu em Mill; a
outra caiu “no TR”, como diziam os moradores locais.
Segundos depois, um bando de corvos que seguia para as abóboras de Eddie (os corvos nunca tiveram medo do
sr. EST) bateu em alguma coisa onde antesnunca houvera nada. A maioria quebrou o bico e caiu numa massa preta
na estrada do Belo Vale e nos campos dos dois lados. Por toda parte, de ambos os lados da Redoma, pássaros se
chocaram e caíram mortos; os corpos seriam uma das maneiraspara delinear finalmente a nova barreira.
Na estrada do Riacho de Deus, Bob Roux arrancava batatas. Parou para voltar para o almoço (mais conhecido
como “janta” naquela região), sentado no velho trator Deere e escutando a música do iPod novinho em folha,
presente da mulher no aniversário que seria o seu último. A casa ficava a apenas 800 metros do campo onde
trabalhava, mas, infelizmente para ele, o campo ficava em Motton e a casa, em Chester’s Mill. Ele bateu na barreira a
25 km/h enquanto escutava James Blunt cantar You’re Beautiful. Não segurava com firmeza o volante do trator
porque dava para ver o caminho todo até a casa e não havia nada no meio. Assim, quando o trator parou com o
choque, com o arrancador de batatas se erguendo atrás e batendo no chão com força, Bob foi lançado à frente por
sobre o bloco do motor e bateu direto na Redoma. O iPod explodiu no largo bolso da frente do macacão jeans, mas
isso ele nunca sentiu. Quebrou o pescoço e fraturou o crânio naquele nada em que colidiu e morreu na terra pouco
depois, ao lado da roda alta do trator que ainda girava. Todos sabem que nada roda melhor do que um Deere.
Em nenhum ponto a estrada de Motton passava mesmo por Motton; ela ficava dentro dos limites da cidade de
Chester’s Mill. Ali havia novas residências numa área que se chamava Eastchester desde 1975, mais ou menos. Os
donos eram trintões e quarentões que iam trabalhar em Lewiston-Auburn, onde tinham empregos bem pagos,
geralmente burocráticos. Todas aquelas residências ficavam em Mil!, mas muitos quintais estavam em Motton. Foi o
caso de Jack e Myra Evans, na estrada de Motton, 379. Myra tinha uma horta atrás da casa e, embora a maior parte
dosprodutos tivesse sido colhida, ainda havia umasgordasabóboras Blue Hubbard, além das morangas restantes (e
muito podres). Ela estendeu o braço para uma delas quando a Redoma caiu e, embora os joelhos estivessem em
Chester’s Mill, por acaso ela estendia a mão para uma Blue Hubbard que crescia a uns 30 centímetros além da
fronteira de Motton.
Não gritou, poisnão houve dor. Não de início. Foi rápido, afiado e limpo demaispara isso.
Jack Evans estava na cozinha, batendo ovos para a omelete do almoço. O LCD Soundsystem tocava North
American Scum e Jack cantava junto quando uma vozinha disse o seu nome atrás dele. A princípio, ele não
reconheceu a voz como pertencente àquela que era sua esposa havia 14 anos; parecia a voz de uma criança. Mas,
quando se virou, viu que era mesmo Myra. Ela estava em pé à porta, segurando o braço direito junto ao corpo.
Trouxera lama para o chão, o que não era coisa dela. Em geral, ela tirava os sapatos da horta na soleira. A mão
esquerda, envolta numa luva de jardinagem imunda, segurava a mão direita, e uma coisa vermelha corria pelos
dedos enlameados. Primeiro ele pensou suco de cranberry, mas só por um segundo. Era sangue. Jack deixou cair a
terrina que segurava. Ela se estilhaçou no chão.
Myra disse o seu nome de novo naquela vozinha pequena e trêmula de criança.
— O que aconteceu? Myra, o que aconteceu com você?
— Foi um acidente — disse ela e lhe mostrou a mão direita. Só que não havia luva direita de jardinagem
enlameada para combinar com a esquerda, nem mão direita. Só um toco a jorrar. Ela lhe deu um sorriso fraco e
disse “Opa”. Os olhos rolaram para cima e ficaram brancos. A frente dos jeans de jardinagem escureceu quando a
urina correu. Então os joelhos também cederam e ela caiu. O sangue que jorrava do pulso aberto — um corte de
aula de anatomia — misturou-se com osovosbatidosderramadosno chão.
Quando Jack se ajoelhou ao lado dela, um caco da terrina entrou profundamente no seu joelho. Ele mal notou,
embora fosse vir a mancar daquela perna pelo resto da vida. Agarrou o braço dela e apertou. O jorro terrível de
sangue do pulso se reduziu, mas não parou. Ele arrancou o cinto da calça e o prendeu em torno do antebraço. Isso
funcionou, masele não conseguiu apertar bem o cinto; a volta estava muito longe da fivela.
— Jesus Cristo — disse ele à cozinha vazia. — Jesus Cristo.
Percebeu que estava mais escuro do que antes. A luz tinha se apagado. Dava para ouvir o computador no
escritório tocando o seu chamado de angústia. O LCD Soundsystem estava bem, porque a caixinha de som da pia
tinha pilhas. Não que Jackdesse alguma importância; perdera o gosto pelo techno.
Sangue demais. Demais.
As perguntas sobre como ela perdera a mão foram embora da sua mente. Tinha preocupações mais imediatas.
Não podia soltar o torniquete para pegar o telefone; ela voltaria a sangrar e podia já estar perto de perder sangue
demais. Ela teria de ir com ele. Ele tentou puxá-la pela camisa, mas primeiro ela saiu da. calça e depois o colarinho
começou a enforcá-la — ele ouviu a respiração ficar mais forte. Então, ele enrolou a mão no cabelo castanho e
comprido e a puxou até o telefone como um homem das cavernas.
Era um celular e funcionou. Ele discou 911 e estava ocupado.
— Não é possível! — gritou para a cozinha vazia cujas luzes estavam apagadas (embora na caixa de som o grupo
continuasse a tocar). — A merda do 911 não pode estar ocupado!
Ele apertou redial.
Ocupado.
Jack ficou sentado na cozinha com as costas contra a pia, segurando o torniquete com o máximo de força, fitando
o sangue e os ovos batidos no chão, apertando periodicamente redial no telefone, sempre recebendo o mesmo dâ-
dâ-dâ estúpido. Alguma coisa explodiu não muito longe, mas ele mal ouviu por causa da música, que estava mesmo
alta (e ele nunca escutou a explosão do Seneca). Queria desligar a música, mas para alcançar a caixa de som teria
de erguer Myra. Erguer ou largar o cinto por dois ou três segundos. Ele não queria fazer nada disso. E ficou ali
sentado e North American Scum deu lugar a SomeGreat e Someone Great deu lugar a All My Friends, e depois de
mais algumas músicas finalmente o CD, que se chamava Sound of Silver, acabou. Quando acabou, quando houve
silêncio, a não ser pelas sirenes da polícia a distância e pelo tilintar interminável do computador ali perto, Jack
percebeu que a esposa não respirava mais.
Mas eu ia fazer o almoço, pensou. Um bom almoço, daqueles que a gente não teria vergonha de convidar Martha
Stewart para comer.
Encostado na pia, ainda segurando o cinto (reabrir os dedos seria intensamente doloroso), a perna inferior direita
das calças escurecendo com o sangue do joelho lacerado, Jack Evans embalou a cabeça da esposa contra o peito e
começou a chorar.
Não muito longe dali, numa estrada abandonada da floresta de que nem mesmo o velho Clay Brassey se
lembraria, um veado comia brotos tenros à beira do charco Prestile. Por acaso o pescoço estava espichado por
sobre o limite da cidade de Motton e, quando a Redoma caiu, a sua cabeça tombou. Foi cortada com tanta perfeição
que a façanha poderia ter sido realizada com a lâmina de uma guilhotina.
Demos a volta na forma de meia que é Chester’s Mill e voltamos à rodovia 119. E, graças à magia da narração,
nem um instante se passou desde que o sujeito sessentão do Toyota bateu de cara em algo invisível mas muito duro
e quebrou o nariz. Ele está sentado e encara Dale Barbara com total perplexidade. Uma gaivota, provavelmente na
viagem diária de volta do bufê saboroso do lixão da cidade de Motton para o lixão levemente menos saboroso do
depósito de Chester’s Mill, despenca feito pedra e cai a menos de um metro do boné dos Sea Dogs do sessentão,
que o pega, limpa e põe de volta na cabeça.
Os dois homens erguem os olhos para onde veio o pássaro e vêem mais uma coisa incompreensível num dia que
acabaria cheio delas.
O primeiro pensamento de Barbie foi estar vendo uma imagem residual da explosão do avião, do jeito que às
vezes a gente vê um grande ponto azul flutuando depois que alguém dispara um flash perto da nossa cara. Só que
não era um ponto, não era azul e, em vez de continuar flutuando quando ele olhava em outra direção — nesse caso,
na do seu novo conhecido —, o borrão que pendia no ar ficava exatamente onde estava.
Sea Dogs erguia e esfregava os olhos. Parecia ter esquecido o nariz quebrado, os lábios inchados, a testa que
sangrava. Ficou em pé, quase perdendo o equilíbrio por virar muito o pescoço para trás.
— O que é aquilo? — perguntou. — Que diabosé aquilo, moço?
Uma grande mancha preta — em forma de chama de vela, se a gente usasse mesmo a imaginação — descobria o
céu azul.
— Será... uma nuvem? — perguntou Sea Dogs. A vozduvidosa sugeria que sabia que não.
Barbie respondeu:
— Acho... — Ele realmente não queria se ouvir dizendo aquilo. — Acho que foionde o avião bateu.
— Acha o quê? — perguntou Sea Dogs, mas, antes que Barbie pudesse responder, um pássaro preto de bom
tamanho passou a uns 15 metros de altura. Não bateu em nada — nada que conseguissem ver, ao menos — e caiu
não muito longe da gaivota.
— Viu isso? — perguntou Sea Dogs.
Barbie fez que sim e apontou a área de capim seco em chamas à esquerda. Aquele e os dois ou três trechos à
direita da estrada soltavam grossas colunas de fumaça negra para se unir à fumaça que subia dos pedaços do
Seneca desmembrado, mas o fogo não se espalharia; chovera muito na véspera e o mato ainda estava úmido. Foi
uma sorte, senão haveria fogo no mato correndo em ambasasdireções.
— Está vendo aquilo? — perguntou Barbie a Sea Dogs.
— Não dá pra acreditar — disse Sea Dogs depois de dar uma boa olhada. O fogo queimara um pedaço de mato
de uns 20 metros de lado, avançando até ficar quase em frente ao ponto onde Barbie e Sea Dogs se encaravam. E
ali se espalhava — para oeste até a beira da estrada, para leste rumo ao hectare e meio de pasto de um criador de
gado de leite —, não de forma irregular, não do jeito como o fogo costuma avançar no mato, um pouco mais à frente
num ponto, um tiquinho para trásnoutro — mas como se seguisse uma régua.
Outra gaivota veio voando na direção deles, essa no rumo de Motton em vezde Mill.
— Olha lá — disse Sea Dogs. — Olha aquele pássaro.
— Talvez não sofra nada — disse Barbie, erguendo os olhos e protegendo-os com a mão. — Talvez o que tem ali
só impeça que elespassem se vierem do sul.
— A julgar pelo avião destruído ali, duvido — disse Sea Dogs. Falava com a voz sonhadora dos homens
profundamente perplexos.
A gaivota que ia para fora bateu na barreira e caiu diretamente dentro do maior pedaço do avião em chamas.
— Impede a passagem deles nos dois sentidos — disse Sea Dogs. Falava com a voz dos homens que recebem a
confirmação de uma convicção muito forte, masainda não provada. — É um tipo de campo de força, como nos filmes
de Star Trick.
— Trek — disse Barbie.
— Hein?
— Ai, caralho! — disse Barbie. Olhava por sobre o ombro de Sea Dogs.
— Hein? — Sea Dogsolhou por cima do próprio ombro. — Puta que pariu!
Lá vinha um caminhão de lenha. Um dos grandes, carregado com troncos imensos bem acima do limite legal de
peso. Também vinha bem acima do limite de velocidade. Barbie tentou calcular qual seria a distância necessária para
um monstro daquelesparar e não conseguiu nem começar a imaginar.
Sea Dogs saiu correndo rumo ao Toyota, que estacionara atravessado na linha branca tracejada do meio da
estrada. O sujeito atrás do volante do caminhão — talvez cheio de bola, talvez fumado de metanfetamina, talvez só
jovem, com pressa, se sentindo imortal — o viu e meteu a mão na buzina. Não ia desacelerar.
— Vai se foder! — gritou Sea Dogs ao se jogar atrás no volante. Ligou o motor e tirou o Toyota da estrada de ré
com a porta do motorista batendo. A pequena picape caiu na vala à beira da estrada com o nariz quadrado apontado
para o céu. Sea Dogs saiu no instante seguinte. Tropeçou, caiu sobre o joelho e depois saiu correndo pelo campo.
Barbie, pensando no avião e nos pássaros — pensando naquele esquisito borrão preto que poderia ter sido o
ponto de impacto do avião — também correu para o pasto, dando um pique primeiro pelas chamas baixas e pouco
entusiasmadasque soltavam baforadasde cinza preta. Viu um tênisde homem — grande demaispara ser de mulher
— com o pé do homem ainda dentro.
Piloto, pensou. E depois: Tenho que parar de correr desse jeito.
— DEVAGAR, SEU IDIOTA! — gritou Sea Dogspara o caminhão com voz fina e em pânico, masera tarde demais
para tais instruções. Barbie, olhando para trás por sobre o ombro (impossível não olhar), achou que o caubói do
caminhão tentou frear no último minuto. Deve ter visto os destroços do avião. Seja como for, não adiantou. Bateu no
lado de Motton da Redoma a mais de 90 por hora, levando uma carga de quase 18 toneladas de troncos. A cabine
se desintegrou ao parar de repente. O reboque sobrecarregado, prisioneiro da física, continuou avançando. Os
tanques de combustível foram jogados debaixo dos troncos, se esfacelando e soltando fagulhas. Quando explodiram,
a carga já estava no ar, caindo por sobre onde estivera a cabine, agora um acordeão de metal verde. Os troncos
jorraram para a frente e para cima, atingiram a barreira invisível e ricochetearam em todas as direções. Fogo e
fumaça preta ferveram para o alto num penacho grosso. Houve um baque terrível que rolou pelo dia como um
rochedo. Depois choveram troncos sobre o lado de Motton, caindo na estrada e nos campos em volta como um
enorme pega-varetas. Um deles atingiu o teto da picape de Sea Dogs e o esmagou, derramando o para-brisa no
capô num borrifo de migalhasde diamante. Outro caiu bem na frente do próprio Sea Dogs.
Barbie parou de correr e só ficou olhando.
Sea Dogs se pôs de pé, caiu, se segurou no tronco que quase lhe esmagou a vida e se levantou de novo. Ficou
ali, oscilando de olhos arregalados. Barbie correu na direção dele e, depois de 12 passos, bateu em algo que parecia
um muro de tijolos. Cambaleou para trás e sentiu um calor descer do nariz por sobre os lábios. Limpou um punhado
de sangue, olhou-o sem acreditar e depoispassou a mão na camisa.
Agora vinham carros de ambas as direções, de Motton e de Chester’s Mill. Três figuras correndo, embora ainda
pequenas, cortavam caminho pelo pasto vindas de uma casa de fazenda na outra ponta. Vários carros buzinavam,
como se isso pudesse resolver todos os problemas. O primeiro carro a chegar pelo lado de Motton parou no
acostamento, bem antesdo caminhão em chamas. Duas mulheresdesceram do carro e pararam boquiabertas com a
coluna de fogo e fumaça, protegendo osolhos com as mãos.
— Merda — disse Sea Dogs. Falava com voz miúda e sem fôlego. Aproximou-se de Barbie pelo campo, traçando
uma diagonal prudente para o leste, para longe da pira ardente. O caminhoneiro podia estar sobrecarregado e
correndo demais, pensou Barbie, masao menos recebera um funeralde viking.
— Viu onde aquele tronco caiu? Quase me matou. Esmagado feito barata.
— Tem celular? — Barbie teve de levantar a vozpara ser ouvido acima do caminhão, que ardia furiosamente.
— Na picape — disse Sea Dogs. — Vou tentar buscar se você quiser.
— Não, espera — respondeu Barbie. Ele percebeu, com alívio súbito, que tudo aquilo podia ser um sonho do tipo
irracional em que andar de bicicleta debaixo d’água ou falar da vida sexual numa língua que a gente nunca estudou
parece normal.
A primeira pessoa a chegar do seu lado da barreira foi um sujeito gorducho numa velha picape GM. Barbie o
reconheceu do Rosa Mosqueta: Ernie Calvert, ex-gerente do Food City, agora aposentado. De olhos arregalados,
Ernie fitava a bagunça em chamas na estrada, mas estava com o celular na mão e não parava de falar. Barbie mal
conseguia escutá-lo acima do rugido do caminhão incendiado, mas entendeu “Parece bem ruim” e imaginou que
Ernie falava com a polícia. Ou com os bombeiros. Se fossem os bombeiros, Barbie esperava que fossem de Castle
Rock. Havia dois carros-pipa no minúsculo corpo de bombeiros de Chester’s Mill, mas Barbie achou que, se
aparecessem por ali, o máximo que conseguiriam seria apagar um fogo no mato que ia se apagar sozinho dali a
pouco. O caminhão em chamasestava perto, mas Barbie achou que não conseguiriam chegar até ele.
É um sonho, disse consigo mesmo. Se ficar dizendo isso o tempo todo, você consegue agir.
Às duas mulheres do lado de Motton tinha se juntado meia dúzia de homens que também protegiam os olhos.
Agora havia carros estacionados em ambos os acostamentos. Mais gente saía deles e se unia à multidão. O mesmo
acontecia do lado de Barbie. Era como se dois camelódromos concorrentes, ambos cheios de pechinchas
suculentas, tivessem sido abertosali: um no lado de Motton, outro no lado de Chester’s Mill.
O trio da fazenda chegou — o fazendeiro e os filhos adolescentes. Os meninos corriam facilmente, o fazendeiro
vinha corado e ofegante.
— Caralho! — disse o menino mais velho, e o pai lhe deu um tapa na cabeça. O garoto nem notou. Os olhos
pareciam saltar. O menino maisnovo estendeu a mão e, quando o mais velho a segurou, o menor começou a chorar.
— O que aconteceu aqui? — perguntou o fazendeiro a Barbie, parando para uma inspiração profunda entre
aconteceu e aqui.
Barbie o ignorou. Avançou devagar na direção de Sea Dogs com a mão direita erguida num gesto de pare. Sem
falar, Sea Dogs fez o mesmo. Quando se aproximou do lugar onde sabia que estava a barreira — só precisava olhar
aquela estranha borda reta de chão queimado —, Barbie foi maisdevagar. Já batera com a cara; não queria que isso
acontecesse de novo.
De repente, foi varrido por um calafrio. O arrepio o percorreu dos tornozelos à nuca, onde os cabelos se mexeram
e tentaram se erguer. Seu saco vibrou como um diapasão e, por um instante, houve um gosto metálico azedo na
boca.
A um metro e meio dele — um metro e meio e cada vez mais perto — os olhos já arregalados de Sea Dogs se
arregalaram ainda mais.
— Sentiu?
— Senti — respondeu Barbie. — Mas já passou. E você?
— Também — concordou Sea Dogs.
As mãos estendidas não chegaram a se tocar, e mais uma vez Barbie pensou numa vidraça: pôr a mão de dentro
contra a mão de algum amigo do lado de fora, osdedos juntos mas sem se tocar.
Ele puxou a mão de volta. Era a que usara para limpar o sangue do nariz, e ele viu a forma vermelha dos próprios
dedospendendo no ar. Enquanto olhava, o sangue começou a se coagular. Como faria num vidro.
— Santo Deus, o que é isso? — sussurrou Sea Dogs.
Barbie não sabia a resposta. Antes que conseguisse dizer alguma coisa, Ernie Calvert lhe deu um tapinha nas
costas.
— Liguei pra polícia — disse. — Estão vindo, mas ninguém atende no Corpo de Bombeiros; só uma gravação que
me manda ligar para Castle Rock.
— Certo, faz isso — disse Barbie. Então outra ave despencou a uns 6 metros, caindo no pasto do fazendeiro e
sumindo. Ver isso trouxe uma nova idéia à mente de Barbie, talvez provocada pelo tempo que passou carregando
uma arma do outro lado do mundo. — Mas antes, acho que é melhor chamar a Guarda Aérea Nacional, lá em
Bangor.
Ernie olhou-o boquiaberto.
— A Guarda?
- Chester’s Mill — disse Barbie. — E acho melhor que façam isso logo.

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