ENQUADRADO

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Na rua Mill, 19, lar da família McClatchey, houve um instante de silêncio quando a gravação acabou e então Norrie
Calvert caiu em prantos. Benny Drake e Joe McClatchey, depois de se entreolharem por sobre a cabeça abaixada da
garota com a mesma expressão de O que eu faço agora?, abraçaram os ombros trêmulos de Norrie e seguraram o
pulso um do outro, num tipo de aperto de mão especial.
— Então é isso? — perguntou Claire McClatchey sem acreditar. A mãe de Joe não chorava, mas era por pouco;
os olhos brilhavam. Tinha nas mãos o retrato do marido, tirara-o da parede pouco depois de Joe chegar com os
amigose o DVD. Isso é tudo?
Ninguém respondeu. Barbie estava empoleirado no braço da poltrona onde Julia se sentara. Posso estar numa
encrenca daquelas agora, pensou. Mas não foi o seu primeiro pensamento; este foi o de que a cidade estava numa
encrenca daquelas.
A sra. McClatchey se levantou. Ainda segurava o retrato do marido. Sam fora à feira de usados que funcionava
todo sábado no autódromo de Oxford até que o tempo esfriasse demais, O seu passatempo era reformar móveis, e
ele costumava encontrar boas peças nas barraquinhas de lá. Três dias depois, ainda estava em Oxford, dividindo o
espaço do Motel Raceway com váriospelotõesde repórterese pessoalda TV; ele e Claire não podiam conversar por
telefone, mas mantinham contato por e-mail. Até então.
— O que aconteceu com o seu computador, Joey? — perguntou ela. — Explodiu?
Joe, o braço ainda em torno dosombrosde Norrie, a mão ainda segurando o pulso de Benny, fezque não.
— Acho que não — disse. — Provavelmente só derreteu. — Virou-se para Barbie. — O calor pode fazer o bosque
pegar fogo por lá. Alguém devia tomar alguma providência.
— Acho que não tem caminhão de bombeirosna cidade — comentou Benny. — Ou talvez só um ou dois velhos.
— Vou ver o que eu consigo fazer — disse Julia. Claire McClatchey se elevava acima dela; era bem fácil ver a
quem Joe puxara em termosde altura.
— Barbie, provavelmente vai ser melhor se eu cuidar disso sozinha.
— Por quê? — Claire parecia perplexa. Uma das lágrimas afinal transbordou e correu pelo rosto. — Joe disse que
o governo pôso senhor no comando, sr. Barbara... o presidente em pessoa!
— Eu tive um desentendimento com o sr. Rennie e o chefe Randolph por causa do vídeo — explicou Barbie. — Foi
meio tenso. Duvido que qualquer um deles receba bem meus conselhos agora. Julia, acho que também não vão
gostar muito dos seus. Ao menosnão por enquanto. Se o Randolph tiver alguma competência, vai mandar um monte
de agentespra lá com o que restou no corpo de bombeiros. No mínimo, vaihaver mangueirase extintoresportáteis.
Julia pensou no assunto e disse:
— Vamosali fora um instante, Barbie?
Ele olhou a mãe de Joe, mas Claire não lhes dava mais atenção. Afastara o filho e estava sentada junto de Norrie,
que tinha o rosto enfiado no seu ombro.
— Cara, o governo me deve um computador — disse Joe quando Barbie e Julia foram andando rumo à porta da
frente.
— Anotado — disse Barbie. — E obrigado, Joe. Você trabalhou bem.
— Muito melhor do que a porra do míssildeles — murmurou Benny.
Na escada da frente da casa dos McClatchey, Barbie e Julia ficaram em silêncio, olhando a praça da cidade, o
riacho Prestile e a ponte da Paz. Então, numa vozgrave e zangada, Julia disse:
— Ele não tem. Esse é o problema. Essa é a porra do problema. — Quem não tem o quê?
— Peter Randolph não tem competência alguma. Não tem nem o mínimo. Eu estudei com ele desde o jardim de
infância, quando era o campeão do xixi na calça, até o fim do primeiro grau, quando fazia parte da Brigada dos
Puxadores de Elástico de Sutiã. Tinha um cérebro nota 2 que levava 5 no boletim porque o pai era da diretoria, e a
capacidade cerebral dele não aumentou. O nosso sr. Rennie se cercou de imbecis. A Andrea Grinnell é uma
exceção, masé uma viciada em drogas. OxyContin.
— Doresnas costas — disse Barbie. — A Rose me contou.
As árvores da praça tinham perdido as folhas em quantidade suficiente para Barbie e Julia verem a rua principal.
Agora estava deserta — a maioria ainda estaria no Dipper’s discutindo o que tinha visto —, mas as calçadas logo se
encheriam de moradores estonteados e incrédulos voltando para casa. Homens e mulheres que ainda não ousariam
perguntar o que viria depois.
Julia suspirou e passou as mãospelo cabelo.
— O Jim Rennie acha que, se mantiver todo o controle nas mãos, tudo vai se resolver em algum momento. Ao
menos pra ele e pros amigos. É o pior tipo de político: egoísta, egocêntrico demais pra perceber que está dando um
passo muito maior que as pernas e, no fundo, um covarde por trás daquela casca de deixa-comigo. Quando a
situação ficar muito ruim, ele vai mandar a cidade pro inferno se achar que assim ele consegue se safar. O líder
covarde é o maisperigoso doshomens. Você é que devia estar dirigindo o espetáculo.
— Aprecio a sua confiança...
— Mas isso não vai acontecer, seja o que for que o seu coronel Cox e o presidente dos Estados Unidos queiram.
Não vai acontecer nem que 50 mil pessoas descessem marchando a Quinta Avenida em Nova York brandindo
cartazes com a sua cara. Não com essa merda de Redoma ainda sobre a nossa cabeça.
— Cada vezque eu te escuto falar, você parece menos republicana — observou Barbie.
Ela lhe deu um soco no bíceps com um punho surpreendentemente pesado.
— Não estou brincando.
— Não — concordou Barbie. — Não estamos brincando. É hora de convocar eleições. E insisto que você se
candidate a vereadora.
Ela o olhou suplicante.
— Acha que o Jim Rennie vai permitir eleições enquanto a Redoma estiver no lugar? Em que mundo você está
vivendo, amigo?
— Não subestime a vontade da cidade, Julia.
— E você, não subestime James Rennie. Ele manda aqui há séculos e todos passaram a aceitá-lo. E ele tem
muito talento na hora de encontrar bodes expiatórios. Um cara de fora daqui, sem eira nem beira, na verdade, seria
perfeito na atual situação. Será que a gente conhece alguém assim?
— Eu estava esperando uma ideia sua, não uma análise política.
Por um instante, ele achou que ela ia bater nele de novo. Então ela respirou fundo e sorriu.
— Você vem todo cheio de com-licença mas tem os seusespinhos, né?
O apito da Câmara de Vereadores começou a dar uma série de toques curtosno ar quente e parado.
— Alguém avisou de um incêndio — disse Julia. — Acho que a gente sabe onde.
Olharam para oeste, onde a fumaça que subia sujava o azul. Barbie achou que a maior parte tinha que vir do lado
de Tarker’s Mill, masque quase com certeza o calor teria causado pequenos incêndios também no lado de Chester.
— Quer uma ideia? Pois aqui está uma. Vou procurar a Brenda, que deve estar em casa ou no Dipper’s, como
todo mundo, e sugerir que ela assuma a operação de combate a incêndios.
— E se ela disser que não?
— Tenho quase certeza de que não vai dizer. Ao menos não tem vento, não desse lado da Redoma, então provavelmente é só mato e capim. Ela vai chamar alguns camaradas pra ajudar e vai escolher os certos. Vão ser os
que o Howie chamaria.
— Nenhum dosnovospoliciais, suponho.
— Isso é com ela, mas duvido que chame Carter Thibodeau ou Melvin Searles. Nem Freddy Denton. Ele é policial
há cinco anos, mas eu sei pela Brenda que Duke planejava demiti-lo. Freddy se fantasia de Papai Noel todo ano na
escola primária e as criançasadoram, ele tem um ótimo ho-ho-ho. Também tem um lado mau.
— Lá vem você com o Rennie de novo.
— E.
— Vingança pode dar merda.
— Eu também posso dar merda quando é preciso. Brenda também, quando se irrita.
— Então vai fundo. E vê se ela fala com aquele tal Burpee. Na hora de apagar fogo no mato, eu confio mais nele
do que em todosos restosde corpo de bombeirosda cidade. Ele tem de tudo naquela loja.
Ela fezque sim.
— É uma excelente ideia.
— Tem certeza de que não quer que eu vá junto?
— Você tem maiso que fazer. Bren te deu a chave de Duke do antirradiação?
— Deu.
— Então o incêndio pode ser exatamente a distração de que você precisa. Vai buscar o contador Geiger. — Ela
deu uns passos na direção do Prius, parou e se virou. — Provavelmente, encontrar o gerador, supondo que exista, é
a melhor solução pra cidade. Talveza única. E, Barbie?
— Estou aqui, senhora — disse ele, com um sorrisinho.
Ela não sorriu.
— Enquanto não ouvir o discurso eleitoralde Big Jim Rennie, não o subestime. Há razõespra ele durar tanto.
— Entendi, ele é bom na hora de matar a cobra e mostrar o pau.
— Poisé. E dessa veza cobra pode ser você.
Ela se foi, atrásde Brenda e Romeo Burpee Os que testemunharam a tentativa fracassada da Força Aérea de furar a Redoma saíram do Dipper’s mais ou
menos como Barbie havia imaginado: devagar, de cabeça baixa, sem falar muito. Vários estavam de braços dados
uns com outros, alguns choravam. Três carros da polícia da cidade estavam estacionados diante do Dipper’s e havia
meia dúzia de policiaisencostadosneles, preparadospara encrencas. Masnão houve nenhuma.
O carro verde da chefia de polícia estava estacionado mais acima, em frente ao terreno da Brownie’s (onde um
cartaz escrito à mão na vitrine dizia FECHADO ATÉ A “LIBERDADE!” PERMITIR REABASTECIMENTO DE
ESTOQUE). O chefe Randolph e Jim Rennie estavam dentro do carro, observando
— Pronto — disse Big Jim com satisfação inconfundível. — Espero que elesestejam contentes.
Randolph o olhou, curioso.
— Você não queria que funcionasse?
Big Jim fezuma careta quando o ombro dolorido deu uma pontada.
— Claro que queria, mas nunca achei que daria certo. E aquele sujeito com nome de mulher e a nova amiguinha
dele, a Julia, conseguiram deixar todo mundo animado e esperançoso, né? Ah, sim, pode apostar! Sabe que ela
nunca me apoiou naseleiçõesnaquele lixo que ela edita? Nenhuma vez.
Ele apontou ospedestresque seguiam como um rio de volta à cidade.
— Dá uma boa olhada, parceiro: eis aonde leva a incompetência, as falsas esperanças e o excesso de
informações. Agora eles estão só infelizes e desapontados, mas quando superarem isso vão ficar enlouquecidos.
Vamosprecisar de mais Polícia.
— Mais? Já temos18 policiais, contando osde meio expediente e osagentesnovos.
— Não é suficiente. E nós temos...
O apito da cidade começou a martelar o ar com toques curtos. Olharam para oeste e viram a fumaça subir.
— Nós temosque agradecer a Barbara e Shumway — terminou Big Jim.
— Talveza gente devesse cuidar daquele incêndio.
— É problema de Tarker’s Mill. E do governo americano, é claro. Eles provocaram o incêndio com aquele míssil
melequento, elesque cuidem disso.
— Mas se o calor provocar um incêndio do nosso lado...
— Para de agir feito uma velha e me leva de volta à cidade. Preciso encontrar Junior. Ele e eu precisamos
conversar. Brenda Perkinse a reverenda Piper Libbyestavam no estacionamento do Dipper’s, ao lado do Subaru de Piper.
— Eu nunca achei que daria certo — explicava Brenda —, mas mentiria se dissesse que eu não fiquei
desapontada.
— Eu também — concordou Piper. — Amargamente. Eu te daria carona até a cidade, mas tenho que visitar um
paroquiano.
— Espero que não seja na Bostinha — disse Brenda, apontando com o polegar a fumaça que subia.
— Não, do outro lado. Eastchester. Jack Evans. Perdeu a mulher no Dia da Redoma. Um acidente horroroso. Náo
que tudo isso não seja horroroso.
Brenda concordou.
— Eu viele no pasto do Dinsmore, levando um cartaz com a foto da mulher. Coitado.
Piper foi até a janela aberta do lado do motorista, onde Clover, sentado atrás do volante, observava a multidão
partir. Remexeu no bolso, lhe deu um biscoito e disse:
— Sai pra lá, Clove. Você sabe que não passou no exame de motorista. — A Brenda, confidenciou: — Ele não
sabe nem estacionar.
O pastor-alemão pulou para o lado do carona. Piper abriu a porta do carro e contemplou a fumaça.
— Tenho certeza de que a floresta do lado de Tarker’s Millsestá ardendo bem, mas isso não devia nospreocupar.
— Ela deu a Brenda um sorriso amargo. — Nós temosa Redoma pra nosproteger.
— Boa sorte — disse Brenda. — Dê os meuspêsamesao Jack. E o meu amor.
— Pode deixar... — disse Piper, e saiu. Brenda ia saindo do estacionamento com as mãos no bolso da calça
jeans, se perguntando como conseguiria passar o resto do dia, quando Julia Shumway chegou e a ajudou a descobrir. Os mísseis que explodiram contra a Redoma não acordaram Sammy Bushey; foi o estrondo de madeira caída,
seguido dosgritosde dor do Pequeno Walter, que a despertou.
Quando foram embora, Carter Thibodeau e os amigos levaram todo o fumo da geladeira, mas não revistaram o
lugar, e a caixa de sapatos com a caveira de ossos cruzados maldesenhada ainda estava no armário. Havia também
a seguinte mensagem, nas letras de imprensa mal traçadas e inclinadas para trás de Phil Bushey: ESSA MERDA É
MINHA! QUEM TOCAR, MORRE!
Não havia maconha dentro (Phil sempre desdenhara maconha como “droga de coquetel”), e ela não se
interessava pelo saco de cristal. Tinha certeza de que os “guardas” adorariam fumá-lo, mas achava que cristal era
merda de maluco pra gente maluca; quem mais inalaria fumaça com resíduo de lixa de acender fósforo marinado em
acetona? Mas havia outro saquinho menor que continha meia dúzia de sossega-leão, e quando o grupo de Carter foi
embora, ela engoliu um deles com a cerveja quente da garrafa guardada debaixo da cama onde agora dormia
sozinha.., quer dizer, a não ser quando levava Pequeno Walter para dormir com ela, Ou Dodee.
Ela pensou rapidamente em tomar todosos comprimidose dar fim ao lixo da sua vida infelizde uma vezpor todas;
já podia até ter feito isso, se não fosse o Pequeno Walter. Se ela morresse, quem cuidaria dele? Ele poderia até
morrer de fome no berço, uma idéia horrível.
Ela não considerava o suicídio, mas nunca se sentira tão triste, deprimida e ferida na vida. Suja, também. Já fora
degradada antes, bem sabia Deus, às vezes por Phil (que, antes de perder o interesse pelo sexo por completo,
gostava de trepadas chapadasa três), às vezespor outros, às vezespor si mesma; Sammy Busheynunca entendera
o conceito de ser sua própria melhor amiga.
Sem dúvida já fizera muito sexo casual, Certa vez, no secundário, depois que o time de basquete dos Wildcats
ganhou o campeonato da Série D, ela deu para quatro dos titulares, um atrásdo outro, numa festa pós-jogo (o quinto
havia apagado num canto). A ideia estúpida foi dela mesma. Ela também já havia vendido o que Carter, Mel e
Frankie DeLesseps tomaram à força. Geralmente para Freeman Brown, dono do Brownie’s, onde fazia quase todas
as compras porque ele lhe dava crédito. Era velho e não cheirava muito bem, mas vivia tarado e na verdade isso era
uma vantagem. Fazia com que fosse rápido. Seis bombadas no colchão do depósito costumava ser o limite, seguido
de um grunhido e uma careta. Nunca era o ponto alto da semana dela, mas era reconfortante saber que a linha de
crédito lá estava, ainda maisquando a grana acabava no fim do mêse o Pequeno Walter precisava de fraldas.
E Brownie nunca a tinha machucado.
O que acontecera na noite passada fora diferente. DeLessepsnão fora tão ruim assim, mas Carter a machucara lá
dentro e a fizera sangrar por baixo. O pior veio em seguida; quando Mel Searles baixou as calças, exibia uma
ferramenta como as que ela já vira nos filmes pornô a que Phil assistia antes que o interesse pelo cristal superasse o
interesse pelo sexo.
Searles entrara nela com tudo e, embora ela tentasse recordar o que fizera com Dodee dois dias antes, não
adiantou. Continuou tão seca quanto agosto sem chuva. Isso é, até que o que Carter Thibodeau apenasarranhara se
rasgou. Então houve lubrificação. Ela sentiu a poça embaixo dela, quente e grudenta. Também havia umidade no
rosto, lágrimas que corriam pela bochecha e se acumulavam no oco da orelha. Durante a cavalgada interminável de
Mel Searles, ela achou que ele poderia até matá-la. Se a matasse, o que aconteceria com o Pequeno Walter?
E, entretecida naquilo tudo, o guincho da voz de gralha de Georgia Roux: Fode ela, fode ela, fode essa piranha!
Fazela uivar!
E Sammyuivou mesmo. Uivou muito, e o Pequeno Walter também, no seu berço no quarto. No final, mandaram que ficasse de bico fechado e a deixaram sangrando no sofá, ferida mas viva. Ela vira as
lanternas se moverem pelo teto da sala e depois sumir quando partiram rumo à cidade. Então ficaram só ela e o
Pequeno Walter. Ela andara com ele para lá e para cá, para lá e para cá, só parando uma vez para vestir uma
calcinha (a cor-de-rosa, não; essa ela não queria usar nunca mais) e enfiar nela um monte de papel higiênico. Tinha
Tampax, masa ideia de pôr alguma coisa lá dentro era assustadora.
Finalmente, a cabeça de Pequeno Walter caiu pesada sobre o seu ombro, e ela sentiu a baba lhe umedecer a
pele: sinal seguro de que estava real e verdadeiramente adormecido. Ela o pôs de volta no berço (rezando para que
dormisse a noite toda) e depois tirou a caixa de sapato do armário. Primeiro o sossega-leão — algum tipo de sonífero
forte, ela não sabia direito qual — reduziu a dor Lá Embaixo e depoisapagou tudo. Ela dormiu maisde 12 horas.
E agora isso.
Os berros do Pequeno Walter eram como uma luz forte perfurando uma neblina pesada. Ela pulou da cama e
correu até o quarto dele, sabendo que o maldito berço, que Phil montara meio doidão, finalmente desmoronara. O
Pequeno Walter o sacudira muito na noite passada enquanto os “policiais” se ocupavam dela. O berço deve ter se
enfraquecido até que, naquela manhã, quando o menino acordou... Pequeno Walter caíra no chão com osdestroços.
Ele engatinhou na direção dela com sangue correndo de um corte na testa.
— Pequeno Walter! — ela gritou e o pegou no colo. Virou-se, tropeçou num pedaço quebrado do berço, caiu
sobre o joelho, se levantou e correu para o banheiro com o bebê chorando nosbraços. Abriu a torneira e obviamente
não saiu água: não havia energia para a bomba do poço funcionar. Agarrou uma toalha e limpou a seco o rosto dele,
expondo o corte — não era fundo, mas comprido e rasgado. Deixaria cicatriz. Ela apertou a toalha contra o corte com
o máximo de força que ousou, tentando ignorar os novos guinchos de dor e incômodo do Pequeno Walter. O sangue
pingou nos seus pés descalços em gotas do tamanho de moedas. Quando olhou para baixo, viu que a calcinha azul
que vestira depois que os “policiais” saíram estava agora encharcada e de um roxo lamacento. Primeiro pensou que
era sangue do Pequeno Walter. Masas coxas também estavam riscadasde sangue. Ela deu um jeito de fazer o Pequeno Walter ficar quieto até lhe pôr três band-aid de Bob Esponja na ferida e lhe
vestir uma camiseta e o único macacão limpo que restava (no babador, um bordado vermelho proclamava DIABINHO
DA MAMÃE). Vestiu-se enquanto o Pequeno Walter engatinhava em círculos no chão do quarto, os soluços
enlouquecidos reduzidos a fungadas frouxas. Começou jogando no lixo a calcinha ensopada de sangue e vestindo
outra. Encheu-a com um pano de prato dobrado e levou outro para mais tarde. Ainda sangrava. Não um jorro, mas
um fluxo bem maispesado do que nas Piores menstruações. E durara a noite toda. A cama estava ensopada.
Ela preparou a bolsa do Pequeno Walter e depois o pegou no colo. Ele era pesado e ela sentiu uma dor nova Lá
Embaixo: o tipo de dor de barriga soluçante que a gente tem quando come coisa estragada.
— Vamos pro Posto de Saúde — disse ela — e não se preocupa, Pequeno Walter, o dr. Haskell vai consertar a
gente. Além disso, cicatriz não é muito problema pra um menino. Às vezes as garotas acham até sexy. Vou o mais
rápido que puder e logo a gente chega lá. — Ela abriu a porta. — Vaidar tudo certo.
Mas o Toyota velho e enferrujado não estava nada certo. Os “policiais” não haviam feito nada com os pneus de
trás, mas haviam furado os dois da frente. Sammy olhou o carro por um bom tempo, sentindo se instalar uma
depressão ainda mais profunda. Uma ideia, passageira mas nítida, lhe passou pela cabeça: poderia dividir os
sossega-leão restantes com Pequeno Walter. Poderia esmagar os dele e colocá-los numa das mamadeiras Playtex
que ele chamava de “beque”. Podia disfarçar o gosto com leite achocolatado. Pequeno Walter adorava leite
achocolatado. Junto com a ideia veio o nome de um dos velhos discos de Phil: Nada importa e se importasse?
[Nothin’ Matters, And What If It Did?, álbum de 1980 do cantor John Cougar, também conhecido como John Cougar
Mellencamp e John Mellencamp]
Ela afastou a idéia.
— Não sou esse tipo de mãe — disse ao Pequeno Walter.
Ele a olhou de um modo que lembrava Phil, mas de um jeito bom: a expressão que parecia estupidez perplexa no
marido de quem se separara era bobinha e adorávelno filho. Ela lhe beijou o narize ele sorriu. Foibonito, um sorriso
bonito, masosband-aidsna testa estavam ficando vermelhos. Isso não era tão bonito.
— Mudança de planos — disse ela, e voltou a entrar. A princípio, não conseguiu achar o canguru, mas finalmente
o avistou atrás do Sofá da Curra, como o chamaria a partir daí. Conseguiu finalmente enfiar o Pequeno Walter nele,
embora levantá-lo fizesse tudo doer de novo. O pano de prato na calcinha estava agourentamente molhado, mas,
quando olhou o gancho da calça de moletom, não havia manchas. Isso era bom.
— Pronto para o passeio, Pequeno Walter?
Pequeno Walter só acomodou a bochecha no oco do ombro dela. As vezes, a sua falta de palavras a incomodava
— ela tinha amigas cujos filhos balbuciavam frases inteiras com menos de um ano e meio, e o Pequeno Walter só
sabia nove ou dezpalavras — masnão hoje. Hoje, ela tinha mais com que se preocupar.
O dia parecia desanimadoramente quente para a última semana de outubro; o céu lá em cima era de um azul
muito pálido, e a luz, um tanto borrada. Ela sentiu na mesma hora o suor vir ao rosto e ao pescoço, e a virilha
pulsava muito — parecia piorar a cada passo e ela só dera alguns. Pensou em voltar e pegar uma aspirina, mas isso
não faria a hemorragia piorar? E ela achava que nem tinha.
Também havia outra coisa, algo que mal ousava admitir. Se entrasse em casa de novo, não tinha certeza de que
teria disposição para sair outra vez.
Havia um pedaço branco de papel sob o limpador de para-brisa esquerdo. Tinha Só um bilhete de SAMMY
impresso no alto, cercado de margaridas. Tirado do bioquinho da cozinha dela. A ideia uma certa ofensa cansada. Rabiscado sob as margaridas, havia isso: Conta pra alguém e furamos mais do que os pneus. E embaixo,
com outra letra: Da próxima veza gente vira você e brinca do outro lado.
— Nem sonhando, seu filho da puta — disse ela, com voz fraca e cansada.
Amassou o bilhete, jogou-o ao lado do pneu furado — o coitado do Corolla parecia tão cansado e triste quanto ela
— e seguiu caminho até o fim da entrada, parando para se encostar alguns segundos na caixa do correio. O metal
estava quente na pele, o sol escaldante na nuca. E quase nenhum sopro de brisa. Outubro devia ser fresco e
revigorante. Talvez seja aquele troço de aquecimento global, pensou. Foi a primeira a ter essa ideia, mas não a
última, e a palavra que acabou pegando não foiglobal, mas local.
A estrada de Motton se estendia diante dela, deserta e sem encantos. A mais ou menos 1,5 quilômetro dali,
ficavam as casas novas e bonitas de Eastchester, para onde as mães e os pais trabalhadores da classe mais alta de
Mill voltavam no final do dia passado nas lojas, escritórios e bancos de Lewiston -Auburn À direita, ficava o centro de
Chester’s MilI. E o Posto de Saúde.
— Pronto, Pequeno Walter?
Pequeno Walter não disse que sim nem que não. Roncava no oco do ombro da mãe e babava na camiseta de
Donna, a Búfala, que ela usava. Sammy respirou fundo, tentou ignorar a pulsação que vinha da Terra Lá Embaixo,
levantou o canguru e partiu rumo à cidade.
Quando o assovio começou a tocar no alto da Câmara, com os toques curtos que indicavam incêndio, primeiro
achou que era sua cabeça, que decididamente estava estranha. Depois viu a fumaça, mas ficava longe, a oeste.
Nada que preocupasse a ela e ao Pequeno Walter... a menos que viesse alguém que quisesse olhar o fogo mais de
perto. Se isso ocorresse, sem dúvida seriam gentis o bastante para lhe dar uma carona até o Posto de Saúde no
caminho da empolgação.
Ela começou a cantar a música de James McMurtry que fizera sucesso no verão passado; chegou até “A gente
passa na calçada às oito e quinze, a cidade é pequena, não tem mais cerveja” e parou. A boca estava seca demais
para cantar. Ela piscou e viu que estava prestes a cair na sarjeta, e nem mesmo era aquela perto de onde estava
quando começara a andar. Ela atravessara a rua, um jeito ótimo de ser atropelada em vezde conseguir carona.
Olhou por cima do ombro, com esperanças de trânsito. Nada. A estrada para Eastchester estava vazia, o asfalto
quente masnão a ponto de cintilar.
Ela voltou para o lado que considerava seu, agora trocando as pernas, sentindo os joelhos moles. Marinheiro
bêbado, pensou. O que está fazendo com um marinheiro bêbado, de manhã tão cedo? Mas não era de manhã, era
de tarde, ela dormira o dia todo, e quando olhou para baixo, viu que o gancho da calça ficara roxo, como a calcinha
que usara antes. Isso não vai sair, e só tenho maisduas calçaspara usar. Então ela lembrou que uma delas tinha um
buracão no traseiro e começou a chorar. As lágrimaspareciam friasno rosto ardente.
— Tudo bem, Pequeno Walter — disse ela. — O dr. Haskell vaidar um jeito. Tudo bem. Bem demais. Bem como...
Então uma rosa preta começou a se abrir diante dos seus olhos, e as últimas forças se esvaíram das pernas.
Sammy a sentiu ir embora, correndo dos músculos como água. Ela caiu, agarrando-se a um último pensamento: De
lado, de lado, não vaiesmagar o bebê!
Isso ela conseguiu. Ficou caída no acostamento da estrada de Motton, imóvel sob o sol indistinto, como o de julho.
O Pequeno Walter acordou e começou a chorar. Tentou sair do canguru e não conseguiu; Sammy o abotoara muito
bem e ele estava preso. O Pequeno Walter começou a chorar com mais força. Uma mosca lhe pousou na testa,
provou o sangue que escorria entre as imagens de Bob Esponja e Patrick e saiu voando. Provavelmente para avisar
o QG das Moscasda deliciosa guloseima e convocar reforços.
Gafanhotos cantavam no capim.
O apito da cidade buzinava.
O Pequeno Walter, preso à mãe inconsciente, choramingou um pouco no calor, então desistiu e ficou calado, olhando em volta inquieto com o suor rolando pelo cabelo fino em grandesgotas transparentes. Em pé, ao lado da bilheteria fechada do Globe Theater e sob sua marquise meio torta (o Globe fechara cinco anos
antes), Barbie tinha boa visão da Câmara de Vereadores e da delegacia de polícia. Seu bom amigo Junior estava
sentado nos degraus desta última, massageando as têmporas como se o berreiro ritmado do apito lhe machucasse a
cabeça.
Al Timmons saiu da Câmara e desceu a rua andando. Usava o macacão cinzento de zelador, mas tinha binóculos
pendurados no pescoço e um extintor costal — sem água, pela facilidade com que o levava. Barbie adivinhou que Al
ligara o apito de incêndio.
Vaiembora, Al, pensou Barbie. Que tal?
Meia dúzia de caminhões subiu a rua. Os dois primeiros eram abertos, o terceiro fechado. Os três da frente eram
pintados de um amarelo tão vivo que quase gritava. Os abertos tinham LOJA DE DEPARTAMENTOS BURPEE
decalcado nas portas. O baú do caminhão fechado tinha o lendário lema QUE TAL UM AÇAÍ NO BURPEE? Romeo
em pessoa estava no caminhão da frente. O seu cabelo era a maravilha de sempre, com ondas e espirais. Brenda
Perkins ia no carona. Na traseira da picape havia pás, mangueiras e uma bomba de sucção nova em folha, ainda
emplastrada de adesivosdo fabricante.
Romeo parou ao lado de Al Timmons.
— Pula aí atrás, parceiro — convidou ele, e Al pulou. Barbie se afastou o mais que pôde na sombra da marquise
do teatro abandonado. Não queria ser convocado para ajudar a combater o incêndio na estrada da Bostinha; tinha
compromissosali mesmo na cidade.
Junior não se afastava da escada da delegacia e ainda esfregava as têmporas e segurava a cabeça. Barbie
esperou que os caminhões sumissem e depois atravessou a rua correndo. Junior não ergueu os olhos e, um
momento depois, foiencoberto da visão de Barbie pelo volume coberto de hera da Câmara de Vereadores.
Barbie subiu os degraus e parou para ler o cartaz no quadro de avisos: ASSEMBLEIA MUNICIPAL QUINTA-
FEIRA ÀS 19h SE A CRISE NÃO SE RESOLVER. Lembrou-se de Julia dizer: Enquanto não ouvir o discurso
eleitoral de Big Jim Rennie, não o subestime. Talvez tivesse uma oportunidade na noite da quinta-feira; sem dúvida
Rennie faria o seu discurso para se manter no controle da situação.
E ter maispoder, disse a vozde Julia na sua cabeça. Isso ele também vaiquerer, é claro. Pelo bem da cidade.
O prédio da Câmara fora construído de cantaria havia 160 anos, e o vestíbulo estava fresco e escuro. O gerador
estava desligado; não havia por que ligá-lo sem ninguém ali.
Só que havia alguém na sala das assembleias. Barbie ouviu vozes, duas, de crianças. As altas portas de carvalho
estavam escancaradas. Ele olhou lá dentro e viu um homem magro com um monte de cabelo grisalho sentado na
frente, à mesa dos vereadores. Diante dele havia uma menininha bonita de uns 10 anos. No meio dos dois, um
tabuleiro de xadrez; o cabeludo apoiava o queixo na mão, estudando a próxima jogada. Mais abaixo, no corredor
entre os bancos, uma moça pulava carniça com um menino de 4 ou 5 anos. Os jogadores de xadrez eram
estudiosos; a moça e o menino estavam rindo.
Barbie começou a se afastar, mas tarde demais. A moça ergueu osolhos,
— Ei! Oi!
Ela pegou o menino no colo e foina direção dele. Os jogadoresde xadrez também olharam. Adeus, furtividade.
A moça estendia a mão que não usava para segurar o traseiro do menininho.
— O meu nome é Carolyn Sturges. Aquele cavalheiro é o meu amigo Thurston Marshall. O garotinho é Aidan
Appleton. Fala oi, Aidan. — Oi — disse Aidan, baixinho, e depois enfiou o polegar na boca. Fitava Barbie com olhos redondos, azuis e
levemente curiosos.
A menina veio depressa pelo corredor e ficou ao lado de Carolyn Sturges. O cabeludo veio atrás mais devagar.
Parecia cansado e abalado.
— Eu me chamo Alice Rachel Appleton — disse ela. — Irmã mais velha do Aidan. Tira o dedo da boca, Aide.
Aide não tirou.
— Muito prazer em conhecer — disse Barbie. Não lhes revelou o nome. Na verdade, quase queria estar com um
bigode falso. Mas talvezdesse certo. Tinha quase certeza de que eram todos forasteiros.
— O senhor é autoridade na cidade? — perguntou Thurston Marshall. — Se for, eu quero apresentar queixa.
— Sou só o zelador — disse Barbie, e se lembrou de que, quase certeza, tinham visto Al Timmons sair. Droga,
talvezaté tivessem conversado com ele. — O outro zelador. Os senhores já devem conhecer o Al.
— Eu quero a minha mãe — disse Aidan Appleton. — Estou com saudades!
— Conhecemos, sim — respondeu Carolyn Sturges. — Ele disse que o governo disparou um míssil no que está
nosprendendo aqui, que só conseguiu ricochetear e provocar um incêndio.
— É verdade — disse Barbie, e antesque pudesse dizer mais Marshallo interrompeu.
— Quero registrar queixa. Na verdade, quero registrar uma ocorrência. Fui atacado por um suposto policial. Ele
me deu um soco no estômago. Tirei a vesícula faz alguns anos e estou com medo de ter sofrido lesões internas. E
Carolyn sofreu agressão verbal. Foi chamada de um nome que a degradava sexualmente.
Carolyn lhe pousou a mão no braço.
— Antesde fazermosacusações, Thurse, é bom lembrar que tínhamos BA-G-U-L-H-O.
— Bagulho! — disse Alice na mesma hora. — Às vezes mamãe fuma maconha, porque ajuda quando ela está M-
E-N-S-T-R-U-A-D-A.
— Ah — disse Carolyn. — Certo. — O seu sorriso era fraco.
Marshallesticou o corpo até ficar ereto.
— Posse de maconha é contravenção — explicou. — O que fizeram comigo é lesão corporal! E dóihorrivelmente!
Carolyn lhe deu um olhar em que o afeto se misturava à exasperação. De repente, Barbie entendeu o que havia
entre os dois. A Primavera Sexy encontrara o Outono Erudito e agora estavam presos um ao outro, refugiados na
Nova Inglaterra numa versão de Entre quatro paredes.
— Thurse... Acho que essa ideia de contravenção não vai dar em nada no tribunal. — Sorriu para Barbie como se
pedisse desculpas. — Nós tínhamos muito. Eles levaram.
— Talvez fumem asprovas — disse Barbie.
Ela riu. O namorado grisalho, não. As suas sobrancelhaspeludas se franziram.
— Ainda assim, eu pretendo apresentar queixa.
— Eu esperaria — disse Barbie. — A situação aqui... bom, digamos que um soco no estômago não vai ser
considerado grande coisa enquanto nósainda estivermos sob a Redoma.
— Eu considero grande coisa, meu jovem amigo zelador.
Agora a moça parecia maisexasperada do que afetuosa.
— Thurse...
— O bom disso é que também não vão dar muita atenção a um pouco de fumo — disse Barbie. — Talvez seja
uma aposta casada, como dizem os jogadores. Como acharam as crianças?
Os policiais que conhecemos na cabana de Thurston nos viram no restaurante — explicou Carolyn. — A dona
disse que estavam fechados até o jantar, mas ficou com pena de nós quando dissemos que éramos de
Massachusetts. Ela nos serviu sanduíchese café.
— Ela nos serviu manteiga de amendoim com geleia e café — corrigiu Thurston. —— Não havia opção, nem mesmo atum. Eu disse a ela que manteiga de amendoim gruda no céu da boca, mas ela disse que era o
racionamento. Não é a coisa mais maluca que já se ouviu?
Barbie também achava que era maluca, mas como a ideia fora dele, nada disse.
— Quando vi os policiais entrarem, me preparei pra mais problemas — disse Carolyn —, mas parece que Aide e
Alice amaciaram eles.
Thurston fungou.
— Não a ponto de pedirem desculpas. Ou será que eu puleiessa parte?
Carolyn deu um suspiro e se virou de novo para Barbie.
— Disseram que talvez a pastora da igreja Congregacional conseguisse nos achar uma casa vazia pra ficarmos
até isso acabar. Acho que seremospaisadotivos, ao menospor um tempo.
Ela acariciou o cabelo do menino. Thurston Marshall não parecia muito satisfeito com a ideia de virar pai adotivo,
maspôso braço nosombrosda menina, e Barbie gostou dele por isso.
— Um dos policiais era Juuuuu-nior— disse Alice. — Ele é legal. E gato Frankie não é tão bonito, mas também foi
legal. Ele deu chocolate pra gente. Mamãe dizque a gente não deve aceitar balasde estranhos, mas... — Ela deu de
ombrospara indicar que a situação mudara, fato que ela e Carolyn pareciam entender bem melhor do que Thurston.
— Não foram legaisantes — disse Thurston. — Não foram legaisquando me deram um soco no estômago, Caro.
— É preciso aceitar o doce e o amargo — filosofou Alice. — Minha mãe sempre diz.
Carolyn riu. Barbie também, e depois de um instante foi a vez de Marshall, embora segurasse a barriga ao rir e
olhasse a jovem namorada com certa censura.
— Subi a rua e bati na porta da igreja — disse Carolyn. — Ninguém atendeu e entrei. A porta estava destrancada,
masnão tinha ninguém lá. Tem alguma ideia de quando a pastora vai voltar?
Barbie fezque não.
— Se eu fosse vocês, pegaria o tabuleiro e iria até o presbitério. Fica nos fundos. Procurem uma mulher chamada
Piper Libby.
— Cherchez lafrmme — disse Thurston.
Barbie deu de ombros, e concordou.
— Ela é boa gente, e Deus sabe que há casas vazias em Mill. Vocês quase vão poder escolher. E é provável que
encontrem mantimentosna despensa de todaselas.
Isso o fezpensar de novo no abrigo antirradiação.
Enquanto isso, Alice agarrara aspeçasde xadrez, que enfiou no bolso, e o tabuleiro, que pegou no colo.
— O sr. Marshall ganhou de mim em todos os jogos até agora — disse a Barbie. — Ele fala que é pai-ternalismo
deixar crianças vencerem só porque são crianças. Maseu estou jogando melhor, não é, sr. Marshall?
Ela sorriu para ele. Thurston Marshall sorriu de volta. Barbie achou que esse quarteto improvável poderia se
entender.
— A juventude tem precedência, Alice querida — disse ele. — Masnão imediatamente.
— Eu quero a mamãe — queixou-se Aidan.
— Ah, se houvesse como entrar em contato com ela... — comentou Carolyn. — Alice, tem certeza de que não se
lembra do e-maildela? — E, para Barbie: — A mãe deixou o celular na cabana, logo isso não adianta.
— Ela tem hotmail — respondeu Alice. — Só sei isso. Às vezesela dizque já foihot, masque o papaideu um jeito
nisso.
Carolyn olhava o amigo mais velho.
— Vamos cair fora daqui?
— Vamos. É melhor ir pro presbitério e torcer pra pastora voltar logo da sua missão de misericórdia, seja ela qual
for. — O presbitério também pode estar destrancado — disse Barbie. — Se não estiver, olhem debaixo do capacho.
— Eu nunca presumiria — comentou ele.
— Eu, sim — disse Carolyn, e riu. O som fezo menininho sorrir.
— Pré-zuum! — gritou Alice Appleton, e saiu voando pelo corredor central com os braços abertos, abanando o
tabuleiro de xadreznuma das mãos. — Pré-zuum, pré-zuum, vamos, gente, vamospré-zumir!
Thurston suspirou e correu atrásdela.
— Se o tabuleiro quebrar, Alice, você nunca vai me vencer.
— Vou sim, porque a juventude tem precedência! — gritou ela por cima do ombro. — Além disso, se quebrar, a
gente cola! Vamos!
Aidan se remexeu com impaciência no colo de Carolyn. Ela o pôs no chão para correr atrás da irmã. Carolyn
estendeu a mão.
— Obrigada, senhor...
— De nada — disse Barbie, apertando a mão dela. Depois, se virou para Thurston. O homem tinha o aperto de
mão molenga que Barbie associava a homens cujo equilíbrio entre inteligência e exercício estava totalmente fora de
prumo.
Eles saíram atrás das crianças. Na porta de duas folhas, Thurston Marshall olhou para trás. Um raio de sol
nebuloso vindo das janelasaltas caiu sobre o seu rosto, fazendo com que parecesse mais velho do que era. Fazendo
com que parecesse ter 80 anos.
— Editei o número mais recente de Ploughshare — disse. A voz tremia de tristeza e indignação. — É uma
excelente revista literária, uma das melhoresdo país. Elesnão têm o direito de me dar um soco no estômago nem de
rir de mim.
— Não mesmo — concordou Barbie. — É claro que não. Cuidem bem dessesgarotos.
— Vamos cuidar — respondeu Carolyn, pegando o braço do outro e o apertando. — Vem, Thurse.
Barbie esperou até ouvir a porta externa se fechar e foi em busca da escada que levava à sala de reuniões e à
cozinha da Câmara de Vereadores. Julia dissera que o abrigo antirradiação ficava meio lance de escadas mais
abaixo. A primeira ideia de Piper foi que alguém deixara um saco de lixo à beira da estrada. Depois ela chegou mais perto
e viu que era um corpo.
Ela freou e saiu do carro tão depressa que caiu e ralou o joelho. Quando se levantou, viu que não era um corpo
só, eram dois: uma mulher e uma criança pequena. Ao menosa criança estava viva, mexendo osbraçosde leve.
Ela correu até eles e virou a mulher de costas. Era jovem e vagamente conhecida, mas não era da congregação
de Piper. O rosto e a testa estavam muito machucados. Piper soltou o menino do canguru e, quando o segurou no
colo e lhe acariciou o cabelo, ele começou um choro rouco.
Osolhosda mulher se abriram com o som, e Piper viu que as calçasdela estavam ensopadasde sangue.
— Pequen’oter — grunhiu a mulher, e Piper não entendeu direito.
— Não se preocupe, tenho água no carro. Fica quietinha. Eu peguei o menino, ele está bem. — Sem saber se
estava ou não. — Vou cuidar dele.
— Pequen’oter — disse de novo a mulher de calça ensanguentada, e fechou osolhos.
Piper correu até o carro com o coração batendo tão forte que dava para sentir nos olhos. A língua tinha gosto de
cobre. Deus, me ajude, rezou, e não conseguiu pensar em mais nada, então pensou de novo: Deus, meu Deus, me
ajude a ajudar essa mulher.
O Subaru tinha ar-condicionado, mas ela não o usava mesmo com o calor daquele dia; raramente o ligava.
Achava que não era muito ecológico. Mas agora ligou, a toda. Deitou o bebê no banco de trás, fechou as janelas,
bateu as portas, começou a voltar na direção da moça caída na terra e teve uma ideia terrível: e se a criança
conseguisse subir no banco, apertasse o botão errado e a deixasse trancada do lado de fora?
Meu Deus, como eu sou estúpida. A pior pastora do mundo numa verdadeira hora de crise. Ajude-me a não ser
tão estúpida.
Ela correu de volta, abriu de novo a porta do motorista, olhou por sobre o banco e viu o menino ainda deitado
onde o deixara, mas agora chupando o polegar. Os olhos dele se viraram rapidamente para ela, depois voltaram
para o teto, como se ele visse ali alguma coisa interessante. Desenhos animados mentais, talvez. Ele suara toda a
pequena camiseta debaixo do macacão. Piper torceu de um lado para o outro o controle eletrônico no pulso até que
se soltou do chaveiro. Depois correu até a mulher, que tentava se sentar.
— Não faz isso — disse Piper, ajoelhando-se ao lado e pondo o braço em torno dela. — Acho que você não
deve...
— Pequen’oter — grasnou a mulher.
Merda, esquecia água! Deus, por que me deixou esquecer a água?
Agora a mulher tentava ficar em pé. Piper não gostou da ideia, que ia contra tudo o que sabia sobre primeiros
socorros, mas que outra opção havia? A estrada estava deserta e não podia deixá-la ali no sol escaldante, isso seria
pior, muito pior. Então, em vezde fazê-la se sentar de novo, Piper a ajudou a se levantar.
— Devagar — disse, agora segurando a mulher pela cintura e guiando o melhor possível os seus passos
cambaleantes. — Devagar e sempre chegamos lá, devagar e sempre ganhamos a corrida. No carro está fresco. E lá
tem água.
— Pequen’oter! — A mulher balançou, se endireitou, tentou apressar um pouco o passo.
— Água — disse Piper. — Certo. Depoiseu te levo pro hospital.
— Post... Sud.
Isso Piper entendeu, e fezque não com a cabeça. — De jeito nenhum. Você vaidireto pro hospital. Você e o bebê, osdois.
— Pequen’oter — sussurrou a mulher. Parou, balançando, a cabeça baixa, o cabelo caindo na cara, enquanto
Piper abria a porta do carona e a ajudava a entrar.
Piper tirou a garrafa de Poland Spring do console do meio e a destampou. A mulher a agarrou antes que Piper a
entregasse e bebeu ansiosamente, com água escorrendo pelo pescoço e pingando do queixo até escurecer o alto da
camiseta.
— Como é seu nome? — perguntou Piper.
— Sammy Bushey. — Então, embora o estômago doesse com a água, aquela rosa negra começou a se abrir de
novo diante dosolhosde Sammy. A garrafa caiu da sua mão no tapete, gorgolejando quando ela desmaiou.
Piper dirigiu o mais depressa possível, o que era bem depressa, já que a estrada de Morton continuava deserta,
mas, quando chegou ao hospital, descobriu que o dr. Haskell morrera na véspera e que Everett, seu assistente, não
estava lá.
Sammy foiexaminada e internada pelo famoso médico especialista Dougie Twitchell. Enquanto Ginny tentava interromper a hemorragia vaginal de Sammy Bushey e Twitch dava soro ao
desidratadíssimo Pequeno Walter, Rusty Everett estava sentado em silêncio num banco na ponta da praça que dava
para a Câmara de Vereadores. O banco ficava sob os braços abertos de um abeto azul bem alto, e ele achou que a
sombra era escura o bastante para deixá-lo praticamente invisível. Desde que não se mexesse muito, é claro.
Havia coisas interessantespara olhar.
Planejara ir direto até o depósito nos fundos da Câmara (Twitch o chamara de barraco, mas o prédio comprido de
madeira que também guardava os quatro limpa-neves de Millera na verdade um tanto mais grandioso do que isso) e
verificar a situação do gás por lá, mas depois um dos carros da polícia parou com Frankie DeLesseps ao volante.
Junior Rennie saíra do lado do carona. Os dois conversaram alguns instantes e depois DeLesseps foi embora no
carro.
Junior foi até a escada da delegacia, mas, em vez de entrar, sentou-se ali, esfregando as têmporas como se
estivesse com dor de cabeça. Rusty decidiu esperar. Não queria ser visto conferindo o suprimento de energia da
cidade, menosainda pelo filho do segundo vereador.
Em certo momento, Junior tirou o celular do bolso, abriu, escutou, disse alguma coisa, escutou mais um pouco,
disse outra coisa e depois o fechou. Voltou a esfregar as têmporas. O dr. Haskell dissera alguma coisa sobre aquele
rapaz. Enxaqueca, não era? Parecia mesmo enxaqueca. Não era só a esfregação das têmporas; era o jeito como
mantinha a cabeça abaixada.
Pra minimizar a luz, pensou Rusty. Deve ter deixado em casa o Imitrex ou o Zomig. Supondo que Haskell tenha
receitado isso, é claro.
Rusty ia se levantando, querendo seguir pela travessa da Commonwealth até os fundosda Câmara de Vereadores
— era óbvio que Junior não andava muito observador —, quando viu outra pessoa e se sentou de novo. Dale
Barbara, o chapeiro que, segundo os boatos, fora promovido ao posto de coronel (pelo próprio presidente da
República, diziam alguns), estava em pé debaixo da marquise do Globe, ainda mais enfiado na sombra que o próprio
Rusty. E Barbara também parecia de olho no jovem sr. Rennie.
Interessante.
Aparentemente, Barbara chegou à mesma conclusão de Rusty: Junior não estava vigiando, só esperando. Talvez
que alguém o buscasse. Barbara atravessou a rua correndo e, assim que ficou protegido da possível vista de Junior
pela própria Câmara de Vereadores, parou para examinar o quadro de avisosna frente. Depois, entrou.
Rusty decidiu ficar mais um tempo sentado onde estava. Era bom ficar debaixo da árvore e estava curioso sobre
quem Junior esperava. Ainda havia gente voltando do Dipper’s (alguns iriam ficar lá por muito mais tempo se
houvesse bebida alcoólica). A maioria, como o rapaz sentado nos degraus lá do outro lado, estava de cabeça baixa.
Náo por causa de dores, supôs Rusty, mas por causa do desânimo. Ou talvez desse no mesmo. Certamente algo a
considerar.
Agora veio um bebedor de gasolina preto e quadrado que Rusty conhecia bem: o Hummer de Big Jim Rennie.
Buzinou impaciente para um trio de moradoresda cidade que andava pela rua, tocando-os como ovelhas.
O Hummer estacionou na delegacia. Junior ergueu os olhos mas não se levantou. A porta se abriu. Andy Sanders
saiu de trás do volante, Rennie, do banco do carona. Rennie deixando Sanders dirigir a sua amada pérola negra?
Sentado no seu banco, Rusty ergueu as sobrancelhas. Achava nunca ter visto ninguém que não fosse o próprio Big
Jim atrásdo volante daquela monstruosidade. Talvez tenha decidido promover Andyde criado a chofer, pensou, mas
quando viu Big Jim subir osdegrausaté onde o filho ainda estava sentado, mudou de ideia. Como a maioria dos paramédicos veteranos, Rusty era um ótimo diagnosticista a distância. Jamais basearia nisso
um tratamento, mas dá para diferenciar o homem que implantou uma prótese de quadril há seis meses do que sofre
de hemorroidas simplesmente pelo jeito de andar; dá para identificar o torcicolo pelo jeito como uma mulher vira o
corpo todo em vez de só olhar para trás por sobre o ombro; dá para ver a criança que pegou uma boa safra de
piolhos no acampamento de verão pelo modo como não para de coçar a cabeça. Ao subir a escada, Big Jim
mantinha o braço grudado à ladeira superior da considerável barriga, a linguagem corporal clássica de quem sofreu
recentemente um estiramento do ombro, da parte de cima do braço ou de ambos. Afinal de contas, não era tão
surpreendente que Sanders fosse delegado a piloto da fera.
Os três conversaram. Junior não se levantou, mas Sanders se sentou ao seu lado, remexeu o bolso e tirou algo
que cintilou à luz nebulosa do sol no fim da tarde. Os olhos de Rusty eram bons, mas ele estava ao menos 50 metros
longe demais para identificar o objeto. Vidro ou metal; era tudo o que sabia dizer com certeza. Junior o pôs no bolso
e depois os três conversaram mais um pouco. Rennie fez um gesto na direção do Hummer — fez isso com o braço
bom —, e Junior fezque não. Depois, Sandersapontou o Hummer. Junior negou de novo, baixou a cabeça e voltou a
massagear as têmporas. Os dois homens se entreolharam, Sanders dobrando o pescoço para trás porque ainda
estava sentado no degrau. E à sombra de Big Jim, o que Rusty achou adequado. Big Jim deu de ombros e abriu as
mãos — o gesto de o que se pode fazer?. Sanders se levantou e os dois entraram no prédio da delegacia, Big Jim
parando tempo suficiente para dar um tapinha no ombro do filho. Junior não reagiu a isso. Continuou sentado onde
estava, como se pretendesse ficar ali para sempre. Sanders se fez de porteiro para Big Jim, fazendo-o entrar antes
de ir atrás.
Osdois vereadores mal tinham saído daliquando um quarteto saiu da Câmara: um homem mais velho, uma moça,
uma menina e um menino. A menina segurava a mão do menino e levava um tabuleiro de xadrez. Rustyachou que o
menino parecia quase tão desconsolado quanto Junior... e olha só, também esfregava uma das têmporas com a mão
livre. Osquatro atravessaram a travessa da Commonwealth e passaram diretamente na frente do banco de Rusty.
— Oi — disse a menininha animada. — O meu nome é Alice. Esse é o Aidan.
— Vamos morar no peixestéril — disse muito sério o menininho chamado Aidan. Ainda esfregava a têmpora e
parecia muito pálido.
— Vai ser empolgante — disse Rusty. — Às vezeseu queria morar num peixestéril.
O homem e a mulher chegaram. Estavam de mãosdadas. Paie filha, supôs Rusty.
— Na verdade, só queremos conversar com a reverenda Libby — disse a mulher. — O senhor sabe se ela já
voltou?
— Não faço ideia — disse Rusty.
— Então vamos lá esperar. No peixestéril. — Ela sorriu para o homem mais velho ao dizer isso. Rusty decidiu que
talveznão fossem paie filha, afinalde contas. — Foio que o zelador disse que devíamos fazer.
— Al Timmons? — Rusty vira Alpular na traseira de um caminhão da Loja de Departamentos Burpee.
— Não, o outro — explicou o homem mais velho. — Disse que talvez a reverenda pudesse nos ajudar a encontrar
onde ficar.
Rusty fezque sim.
— Ele se chamava Dale?
— Acho que ele não chegou a dizer o nome — respondeu a mulher.
— Vamos! — O menino largou a mão da irmã e puxou a da mulher. — Quero brincar daquele outro jogo que você
falou. — Mas soava mais rabugento do que ansioso. Um leve choque, talvez. Ou algum mal-estar físico. Se fosse
este último, Rusty torceu para ser apenas um resfriado. A última coisa de que Mill precisava agora era um surto de
gripe.
— Perderam a mãe, ao menos temporariamente — disse a mulher em voz baixa. — Nós estamos tomando conta deles.
— Que bom — disse Rusty, e falava a sério. — Filho, está com dor de cabeça?
— Não.
— Dor de garganta?
— Não — respondeu o menino chamado Aidan. Os seus olhos solenes examinaram Rusty. — Sabe? Se não tiver
gostosurasou travessuraseste ano, não vou nem ligar.
— Aidan Appleton — gritou Alice, parecendo excessivamente chocada.
Rustydeu um pulinho no banco; não conseguiu impedir. Depois, sorriu.
— Não? Porquê?
— Porque mamãe é que leva a gente e mamãe foi comprar timento.
— Ele quisdizer mantimentos — explicou com superioridade a menina chamada Alice.
— Ela foi buscar bulinho — disse Aidan. Parecia um velhinho — um Velhinho preocupado. — Vô tê medo de ir pro
Halloweenin sem a mamãe.
— Vamos, Caro — disse o homem. — Temosque...
Rusty se levantou do banco.
— Posso falar com a senhora um minutinho? Vamosaté ali.
Caro parecia cansada e perplexa, mas foi com ele até o lado do abeto azul.
— O menino mostrou algum sintoma convulsivo? — perguntou Rusty. — Por exemplo, parar de repente o que está
fazendo... sabe, ficar parado algum tempo... ou com olhar fixo... estalando os lábios...
— Não, nada parecido — disse o homem, indo até eles.
— Não — concordou Caro, masparecia assustada.
O homem percebeu e franziu uma testa impressionante para Rusty
— O senhor é médico?
— Auxiliar médico. Acheique talvez...
— Bem, sem dúvida nósapreciamosa sua preocupação, senhor...
— Eric Everett. Podem me chamar de Rusty.
— Apreciamos a sua preocupação, sr. Everett, mas acredito que não se aplica. Lembre-se de que essas crianças
estão sem a mãe...
— E passaram duas noites sozinhas sem comer nada — acrescentou Caro. — Tentavam ir para a cidade por
conta própria quando aquelesdois... policiais — ela torceu o nariz, como se sentisse mau cheiro — osencontraram.
Rusty fezque sim com a cabeça.
— Acho que isso explica. Embora a menina pareça bem.
— As crianças reagem de jeitosdiferentes. E é melhor irmosandando. Elesestão se afastando de nós, Thurse.
Alice e Aidan corriam pela praça, chutando jorros coloridos de folhas caídas, com Alice agitando o tabuleiro de
xadreze gritando “Peixestéril! Peixestéril!” a plenospulmões. O menino acompanhava o seu passo e também gritava.
O menino teve uma figa momentânea, foi só, pensou Rusty. O resto foi coincidência. Nem isso. Que menino
americano não pensaria em Halloween na segunda metade de outubro? Uma coisa era certa: se lhes perguntassem
depois essas pessoas se lembrariam exatamente de onde e quando tinham visto Eric “Rusty” Everett. Adeus,
furtividade.
O homem grisalho ergueu a voz.
— Crianças! Maisdevagar!
A moça olhou bem para Rustye depois lhe estendeu a mão.
— Obrigada pela preocupação, sr. Everett. Rusty
— Talvez seja exagerada. Doença profissional. — Poisestá totalmente perdoado. Esse é o fim de semana mais maluco da história do mundo. Deve ser por isso.
— Pode apostar. E, se precisar de mim, vá ao hospital ou ao Posto de Saúde. — Apontou a direção do Cathy
Russell, que ficaria visívelentre asárvoresassim que o resto das folhas caísse. Se caísse.
— Ou neste banco — disse ela, ainda sorrindo.
— Ou neste banco, isso mesmo. — Também sorrindo.
— Caro! — Thurse parecia impaciente. — Vamos!
Ela deu a Rusty um pequeno aceno — não mais que uma mexidinha da ponta dos dedos — e depois correu atrás
dos outros. Corria de leve, graciosa. Rusty ficou pensando: será que Thurse sabia que moças que sabiam correr de
leve e graciosas quase sempre largavam os amantes mais velhos, mais cedo ou mais tarde? Talvez soubesse.
Talvez já tivesse lhe acontecido.
Rusty observou o grupo atravessar a praça na direção da torre da igreja Congregacional. Finalmente, as árvores
osencobriram. Quando olhou de volta o prédio da delegacia, Junior Rennie tinha sumido.
Rusty ficou sentado onde estava mais alguns instantes, batucando os dedos na coxa. Depois, tomou uma decisão
e se levantou. Procurar no depósito da cidade os cilindros de gás sumidos do hospital poderia esperar. Estava mais
curioso para descobrir o que o único oficialdo Exército de Mill fazia na Câmara de Vereadores. O que Barbie fazia enquanto Rusty cruzava a Commonwealth até a Câmara de Vereadores era assoviar
entredentes. O abrigo antirradiação tinha o comprimento de um vagão-restaurante da Amtrak e as prateleiras
estavam cheias de enlatados. A maior parte parecia suspeita: pilhas de sardinhas, fileiras de salmão e de um troço
chamado Fritadetes de Siri Snow, que Barbie torceu sinceramente para nunca ter que provar. Havia caixas de
produtos secos, inclusive muitos latões plásticos marcados ARROZ, TRIGO, LEITE EM PÓ e AÇÚCAR. Havia pilhas
de engradados rotulados ÁGUA POTÁVEL. Contou dez caixas grandes de EXCEDENTE BOLACHAS GOV. EUA.
Outras duas estavam rotuladas EXCEDENTE CHOCOLATE GOV. EUA. Na parede acima delas havia um cartaz
amarelado dizendo 700 CALORIAS POR DIA E A FOME SE SACIA.
— Vai sonhando — murmurou Barbie.
Havia uma porta na outra ponta. Ele a abriu num breu, tateou, achou um interruptor. Outro cômodo, não tão
grande, mas nada pequeno. Parecia velho e sem uso — sujo, não; ao menos Al Timmons devia saber que existia,
porque alguém andara tirando pó das prateleiras e passando um pano no chão —, mas com certeza abandonado. A
água armazenada estava em garrafasde vidro, e ele não as via desde um breve período na Arábia.
Esse segundo cômodo tinha uma dúzia de camas de campanha, cobertores azuis simples e colchões dentro de
capas plásticas fechadas com zíper, esperando o uso. Havia mais suprimentos inclusive meia dúzia de cilindros de
papelão rotulados KIT SANITÁRIO e uma dúzia marcados MÁSCARAS RESPIRATÓRIAS. Havia um pequeno
gerador auxiliar que poderia fornecer um pouco de energia. Estava funcionando; devia ter ligado quando ele acendeu
a luz. Ao lado do pequeno gerador havia duas prateleiras. Numa, havia um rádio que parecia ter sido novo lá para
1975, quando “Convoy”, de C. W. McCall, tocava no rádio. Na outra prateleira, havia dois aquecedores elétricos e
uma caixa de metal pintada de amarelo vivo. O logotipo na lateral era de uma época em que CD significa outra coisa
e não compact disc. Era o que ele viera buscar.
Barbie pegou a caixa e quase a deixou cair — era pesada. Na frente, havia um medidor escrito CONTAGEM POR
SEGUNDO. Quando se ligava o instrumento e se virava o sensor para alguma coisa, a agulha deveria ficar no verde,
subir para o meio amarelo do mostrador... ou ir até o vermelho. Isso Barbie supunha que não seria bom.
Ele o ligou. A lampadinha continuou apagada e a agulha tranquila contra o 0.
— Pilha gasta — disse alguém atrás dele. Barbie quase teve um troço. Virou-se e viu um homem louro, alto e
robusto em pé na porta entre osdois cômodos.
Por um instante, o nome lhe fugiu, embora o sujeito fosse ao restaurante quase toda manhã de domingo, às vezes
com a mulher, sempre com asduas filhinhas. Então se lembrou.
— Rusty Evers, certo?
— Quase; é Everett. — O recém-chegado estendeu a mão. Com uma certa cautela, Barbie foi até ele e a apertou.
— Vi você entrar. E isso — ele indicou o contador Geiger com a cabeça — provavelmente não é má ideia. Alguma
coisa deve estar mantendo aquilo no lugar. — Ele não disse o que era aquilo, nem precisava.
— Ainda bem que aprova. Você quase me provocou um enfarte. Mas acho que saberia cuidar disso. É médico,
não é?
— Auxiliar médico — disse Rusty. — Isso significa...
— Eu seio que significa.
— Muito bem, ganhou o sistema de cozinhar sem água! — Rusty apontou o contador. — Isso provavelmente usa
bateria seca de 6 volts. Tenho certeza de que vi algumas no Burpee. Mas não sei se tem alguém lá agora. Então...
talvezoutra missão de reconhecimento? — Exatamente o que nós vamos reconhecer?
— O depósito de suprimentos lá atrás.
— E nós vamos fazer isso porque...
— Aí depende do que encontrarmos. Se for o que nós perdemos no hospital, eu e você podemos trocar algumas
informações.
— Quer me contar o que perdeu?
— Gás, meu irmão.
Barbie pensou no caso.
— Que se dane. Vamosdar uma olhada. Junior ficou no pé da escada bamba que corria pela lateral da Drogaria Sanders, pensando se conseguiria subir
com a cabeça doendo daquele jeito. Talvez. Provavelmente. Por outro lado, achou que poderia chegar no meio e o
crânio explodir como fogos de réveillon. O ponto estava de volta na frente dos olhos, pulando e rebolando junto com
o coração, masnão era maisbranco. Agora ficara vermelho vivo.
Eu me sentiria bem no escuro, pensou. Na despensa, com as minhasnamoradas.
Se tudo desse certo, poderia ir para lá. Agora a despensa da casa dos McCain na rua Prestile parecia o lugar mais
desejável da face da terra. É claro que Coggins também estava lá, mas e daí? Junior podia empurrar para o lado
aquele panaca gritador de evangelho. E Coggins tinha que ficar escondido, ao menos por enquanto. Junior não tinha
interesse nenhum em proteger o pai (e não se surpreendeu nem se horrorizou com o que o velho fizera; sempre
soubera que, no fundo, Big Jim Rennie era um assassino), mas tinha interesse em acertar as contas bem
acertadinhas com Dale Barbara.
Se cuidarmos de tudo direito, poderemos fazer mais do que tirar ele do caminho, dissera Big Jim pela manhã.
Podemos usá-lo para unir a cidade diante dessa crise. E aquela jornalista melequenta. Estou pensando nela,
também. Ele pusera a mão quente e dramática no ombro de Junior. Somosuma equipe, meu filho.
Talvez não para sempre, mas por enquanto estavam no mesmo barco. E dariam um jeito em Baaarbie. Junior
chegou a pensar que Barbie era responsável pela sua dor de cabeça. Se ele estivera mesmo no exterior — Iraque,
diziam —, podia ter trazido para casa lembranças esquisitas do Oriente Médio. Veneno, por exemplo. Junior comera
muito no Rosa Mosqueta. Seria fácil para Barbara pôr um tiquinho na sua comida. Ou no café. E se Barbie não
estivesse trabalhando na chapa, poderia ter convencido Rose a pôr o veneno. Aquela arrombada estava sob o seu
feitiço.
Junior subiu a escada devagar, parando a cada quatro degraus. A cabeça não explodiu e, quando chegou ao fim,
vasculhou o bolso atrás da chave do apartamento que Andy Sanders lhe dera. A princípio não a encontrou e achou
que poderia ter perdido mas finalmente osdedosderam com ela debaixo de algumas moedinhas.
Olhou em volta. Algumas pessoas ainda voltavam do Dipper’s, mas ninguém olhava para ele ali, no patamar em
frente ao apartamento de Barbie. A chave girou na fechadura e ele entrou.
Não acendeu a luz, embora o gerador de Sandersdevesse estar alimentando o apartamento. A penumbra tornava
menos visível o ponto pulsante diante dos olhos. Curioso, olhou em volta. Havia livros: prateleiras e mais prateleiras.
Baaarbie planejava deixá-los para trás quando desse o fora da cidade? Ou combinara com alguém — talvez com
Petra Searles, que trabalhava no andar de baixo — para mandá-los para algum lugar? Se assim fosse, talvez tivesse
combinado coisa parecida para a remessa do tapete do chão da sala — um artefato com cara de jóquei de camelo
que provavelmente Barbie catara no bazar local quando náo havia suspeitos para torturar nem menininhos para
enrabar.
Junior decidiu que ele não combinara a remessa das coisas. Nem precisaria, porque nunca planejara ir embora.
Depois que essa ideia lhe ocorreu, Junior se perguntou por que não vira isso logo. Baaarbie gostava dali; jamais iria
embora de livre vontade. Era feliz como um verme em vômito de cachorro.
Acha algo que ele não possa repudiara instruíra Big Jim. Algo que só possa ser dele. Está me entendendo?
O que você acha que eu sou, pai, estúpido? pensava Junior agora. Se sou como é que tireio seu cu da reta ontem
à noite?
Mas o pai tinha um pulso poderoso quando ficava puto, isso era inegável,. Nunca batera nem espancara Junior
quando criança, algo que o rapaz sempre atribuíra à influência benigna da falecida mãe. Agora suspeitava que era porque o pai sabia, no fundo do coração, que se começasse talveznão conseguisse parar.
— Talpai, tal filho — disse Junior com uma risadinha. A cabeça doeu, mas ele riu mesmo assim. Como era aquele
ditado que dizia que o riso era o melhor remédio?
Entrou no quarto de Barbie, viu a cama feita com perfeição e pensou rapidamente como seria maravilhoso dar
uma boa cagada bem alino meio. É, e depois se limpar com a fronha. Será que você ia gostar, Baaarbie?
Em vez disso, foi até a cômoda. Três ou quatro jeans na gaveta de cima, mais dois shorts cáqui. Debaixo dos
shorts havia um celular, e por um instante achou que era o que procurava. Mas não. Era um aparelho baratinho,
daquelesque osgarotosda faculdade chamavam de descartável. Barbie poderia dizer que não era dele.
Havia meia dúzia de conjuntos de camiseta sem manga e cueca e outros quatro ou cinco pares de meias
esportivas simplesna segunda gaveta. Nada na terceira gaveta.
Olhou debaixo da cama, a cabeça dando chutes e pancadas — é, então não melhorara. E nada lá embaixo, nem
poeira. Baaarbie era arrumadinho. Junior pensou em tomar o Imitrex que estava no bolso do peito, mas não tomou.
Já tomara dois, sem absolutamente nenhum efeito além do gosto metálico no fundo da garganta. Sabia de que
remédio precisava: a despensa escura na rua Prestile. E a companhia dasnamoradas.
Enquanto isso, estava ali. E tinha que haver alguma coisa.
— Uma coisinha — sussurrou. — Tem que ter alguma coisinha.
Voltou à sala, limpando a água do canto do latejante olho esquerdo (sem notar que estava manchada de sangue)
e parou, tomado por uma idéia. Voltou à cômoda e reabriu a gaveta de meias e roupa de baixo. As meias estavam
enroladas. Na época do colégio, Junior às vezes escondia um baseado ou bolinhas nas meias enroladas; certa vez,
escondera uma das calcinhas fio dental de Adriette Nedeau. As meias eram um bom esconderijo. Tirou as bolinhas
bem feitasuma de cada vez, apertando-as.
Acertou em cheio na terceira bola, algo que parecia uma chapinha de metal. Não, duas. Desenrolou as meias e
sacudiu a que estava pesada em cima da cômoda.
O que caiu foram asplacasde identificação de Dale Barbara. E, apesar da terríveldor de cabeça, Junior sorriu.
Enquadrado, Baaarbie, pensou. Fodido e enquadrado. No lado de Tarker’s Millda estrada da Bostinha, o incêndio provocado pelos mísseis Fasthawkainda ardia, masao
anoitecer estaria apagado, os bombeiros de quatro cidades, reforçados por um destacamento misto de soldados do
Exército e fuzileiros navais, trabalhavam nele e estavam ganhando. Teria se apagado ainda mais cedo, avaliou
Brenda Perkins, se os bombeiros de lá não tivessem que brigar com um vento forte. Do lado de Mill, não havia esse
problema. Hoje, era uma bênção. Mais tarde, poderia ser uma maldição. Não havia como saber.
Naquela tarde, Brenda não ia deixar o problema incomodá-la, porque se sentia bem. Se alguém lhe indagasse
naquela manhã quando achava que voltaria a se sentir bem, teria dito Talvez ano que vem. Talvez nunca. E tinha
inteligência bastante para saber que a sensação provavelmente não duraria. Noventa minutos de exercício intenso
tinham muito a ver com aquilo; exercício liberava endorfinas, quer numa corrida, quer batendo no mato com as
costas da pá. Mas era mais do que as endorfinas. Era estar encarregada de um serviço importante, que ela podia
fazer.
Outros voluntários foram até a fumaça. Havia 14 homense três mulheresdosdois ladosda Bostinha, algunsainda
segurando as pás e os tapetes de borracha que tinham usado para apagar as chamas rastejantes, alguns com os
extintores portáteis que estiveram nas costas agora soltos e pousados no piso de terra socada da estrada. Al
Timmons, Johnny Carver e Nell Toomey enrolavam mangueiras e as jogavam na traseira do caminhão de Burpee.
Tommy Anderson, do Dipper’s, e Lissa Jamieson — meio Nova Era, mas também forte como um cavalo — levavam
para um dos outros caminhões a bomba de sucção que tinham usado para tirar água do riacho da Bostinha. Brenda
ouviu risose percebeu que não era a única que sentia nessa hora o barato da endorfina.
O mato dos dois lados da estrada estava enegrecido e ainda fumegava várias árvores tinham ardido, mas era
tudo. A Redoma bloqueara o vento e ajudara de outra maneira também, represando parcialmente o riacho e
transformando a área deste lado num pântano em formação. O fogo do outro lado foi bem diferente. Os homens que
o combatiam lá eram aparições cintilante vistasatravésdo calor e da fuligem que se acumulava sobre a Redoma.
Romeo Burpee foi andando até ela. Segurava numa das mãos uma vassoura encharcada e na outra, um tapete
de borracha. A etiqueta de preço ainda estava colada no lado de baixo do tapete. As palavras nela estavam
chamuscadas, mas legíveis: NO BURPEE, TODO DIA É DIA DE LIQUIDAÇÃO! Ele o largou e estendeu a mão suja.
Brenda ficou surpresa, masgostou. Apertou-a com firmeza.
— Por que isso, Rommie?
— Por ter feito aquium serviço danado de bom — disse ele.
Ela riu, sem graça mas contente.
— Qualquer um teria feito, dadas as condições. Foi só um fogo de contato, e a terra está tão molhada que
provavelmente se apagaria sozinho até o pôr do sol.
— Talvez — disse ele; depois, apontou por entre as árvores uma clareira rala com um muro de pedra caindo aos
pedaços serpenteando por ela. — Ou talvez pegasse naquele mato alto, depois nas árvores do outro lado, e depois
ia ser um Deusnosacuda. Poderia arder uma semana ou um mês. Ainda mais sem o maldito corpo de bombeiros. —
Ele virou a cabeça de lado e cuspiu. — Mesmo sem vento, o fogo pode arder se tiver o que queimar. Tem minas lá
no sul que queimaram por vinte, trinta anos. Li na National Geographic. Sem vento debaixo da terra. E como saber
se não ia aparecer um vento? Não sabemosnadica do que essa coisa fazou não faz.
Ambosolharam a Redoma. A fuligem e as cinzas tinham-na deixado visível — maisou menos — até uma altura de
uns 30 metros. Também se reduzira a vista do lado de Tarker, e Brenda não gostou disso. Não era nada em que
quisesse pensar profundamente, porque poderia roubar um pouco da sensação boa do trabalho daquela tarde, mas não; ela não gostava mesmo daquilo. E a fez se lembrar do estranho pôr do sol manchado da véspera.
— Dale Barbara precisa ligar pro seu amigo em Washington — disse ela. — Dizer que, quando apagarem o fogo
do lado deles, vão ter que lavar essa coisa. Não podemos fazer isso do nosso lado.
— Boa idéia — disse Romeo. Mas ele pensava em outra coisa. — Está percebendo alguma coisa no seu pessoal,
senhora? Porque eu percebo.
Brenda ficou espantada.
— Não são o meu pessoal.
— Ah, são sim — disse ele. — Era você que dava ordens, por isso viraram o seu pessoal. Está vendo algum
policial?
Ela deu uma olhada.
— Nenhum — disse Romeo. — Nem Randolph, nem Henry Morrison, nem Freddy Denton, nem Rupe Libby, nem
Georgie Frederick... e nenhum dosnovos também. Aquelesgarotos.
— Provavelmente estão ocupados com... — Ela se calou.
Romeo fezque sim.
— Isso. Ocupados com o quê? Você não sabe, nem eu. Mas não importa o que seja, acho que não gosto disso.
Nem acho que vale a pena se preocupar com isso. Vai ter uma assembleia municipal na quinta-feira à noite e, se a
situação ainda estiver assim, acho que devia haver algumas mudanças. — Ele parou.
— Talvez eu esteja sendo inconveniente, mas acho que você devia se candidatar a chefe dos Bombeiros e da
Polícia.
Brenda pensou a respeitos pensou no arquivo que encontrara chamado VADER e depois balançou a cabeça
devagar.
— É cedo demaispra algo assim.
— Que tall só chefe dos Bombeiros? Que tall? — O sotaque afrancesado de Lewiston mais forte agora na voz
dele.
Brenda olhou em volta, para o mato fumegante e as árvores velhas e chamuscadas. Feio, claro, como algo saído
da foto de um campo de batalha da Primeira Guerra Mundial, mas não mais perigoso. Os que foram até lá tinham
cuidado bem disso. O pessoal. O seu pessoal.
Ela sorriu.
— Nisso eu posso pensar. Na primeira vez que desceu o corredor do hospital, Ginny Tomlinson corria, respondendo a um bipe que berrava
más notícias, e Piper não teve oportunidade de falar com ela. Sequer tentou. Ficara na sala de espera tempo
suficiente para entender o quadro: três pessoas — duas enfermeiras e uma adolescente desembrulhadora de balas
chamada Gina Buffalino — encarregadasde um hospital inteiro. Estavam conseguindo mas male mal. Quando Ginny
voltou, andava devagar. Osombrosestavam caídos. Uma ficha médica pendia de uma das mãos.
— Ginny? — perguntou Piper. — Tudo bem?
Piper achou que Ginny brigaria com ela, mas a outra lhe deu um sorriso cansado em vez de um rugido. E se
sentou ao seu lado.
— Tudo. — Só cansada. — Ela fezuma pausa. — E Ed Cartyacabou de morrer.
Piper lhe segurou a mão.
— Sinto muito saber disso.
Ginny lhe apertou osdedos.
— Não precisa. Sabe como as mulheres falam sobre ospartos? Que esse foi fácil, aquele foidifícil?
Piper fezque sim.
— A morte também é assim. O sr. Cartyestava há muito tempo em trabalho de parto, masagora acabou.
Para Piper, a idéia pareceu bonita. Achou que poderia usá-la num sermão... só que dava para adivinhar que
ninguém ia querer ouvir sermões sobre a morte no próximo domingo. Não se a Redoma ainda estivesse lá.
Ficaram um pouco sentadas, Piper tentando pensar na melhor maneira de perguntar o que tinha que perguntar.
No final, nem precisou.
— Ela foi estuprada — disse Ginny. — Provavelmente mais de uma vez. Fiquei com medo de que Twitch tivesse
que tentar uma sutura, mas consegui estancar com um tampão vaginal. — Ela fez uma pausa. — Fiquei chorando.
Ainda bem que a moça estava maldemaispra notar.
— E o menino?
— Um ano e meio, saudável, normal, mas nos deu um susto. Teve uma miniconvulsão. Provavelmente, insolação.
Maisdesidratação... fome... e também estava ferido. — Ginnydesenhou uma linha na testa.
Twitch veio pelo corredor e se sentou junto delas. Parecia estar a anos-luzdo seu modo alegre de sempre.
— Os homens que curraram ela também machucaram o bebê? — A voz de Piper estava calma, mas uma fissura
fina e vermelha se abria na sua mente.
— O Pequeno Walter? Acho que ele só caiu — disse Twitch. — Sammy disse alguma coisa sobre o berço ter se
desmanchado. Não foi muito coerente, masacho que foium acidente. Ao menosessa parte.
Piper o olhava pensativa.
— Era isso que ela estava dizendo. Acheique era “pouco d’água”.
— Claro que ela queria água — disse Ginny —, mas o primeiro nome do bebê de Sammy é Pequeno, segundo
nome Walter. Acho que se inspiraram num gaitista de blues. Ela e Phil... — Ginny fezo gesto de sugar um baseado e
prender a fumaça.
— Ah, Philera muito maisdo que xinxeiro — disse Twitch. — No quesito drogas, Phil Busheyera multitarefa.
— Ele morreu? — perguntou Piper.
Twitch deu de ombros.
— Desde a primavera que não vejo. Se tiver morrido, já foi tarde.
Piper lhe deu um olhar reprovador. Twitch baixou um pouco a cabeça.
— Desculpe, reverenda. — Virou-se para Ginny. — Alguma notícia de Rusty?
— Ele precisava dar uma saída — foia resposta —, e eu disse que tudo bem. Vai voltar logo, tenho certeza.
Piper ficou sentada entre os dois, calma por fora. Por dentro, a fissura vermelha crescia. O gosto na boca era
amargo. Ela se lembrou de uma noite em que o pai a proibiu de ir ao rinque de patinação do shopping porque ela
dera uma resposta ríspida à mãe (quando adolescente, Piper Libby fora uma fonte abundante de respostas ríspidas).
Ela subira, ligara para a amiga com quem combinara se encontrar e disse a essa amiga, com voz perfeitamente
agradável e tranquila, que surgira um imprevisto e que não poderia se encontrar com ela. Que tal na semana que
vem? Claro, hã-hã, pode apostar, divirta-se, não, tudo bem, té logo. Depois, quebrara o quarto todo. Terminou
arrancando da parede o adorado pôster do Oasis e rasgando-o em pedaços. A essa altura já chorava
convulsivamente, não de tristeza, mas com uma daquelas fúriasque devastaram os seusanosde adolescência como
furacões de categoria cinco. Em certo momento, o pai subiu e ficou à porta, olhando. Quando finalmente o viu ali, ela
o fitou desafiadora, ofegante, pensando em como o odiava. Como odiava ambos os pais. Se morressem, ela poderia
morar com a tia Ruth em Nova York. A tia Ruth sabia se divertir. Não era como certas pessoas. Ele lhe estendeu as
mãosabertas. Fora um gesto um tanto humilde, que esmagara a fúria da filha, e quase lhe esmagara o coração.
Se não controlar seu temperamento, seu temperamento vai controlar você, disse o pai, e depois se afastou,
descendo o corredor de cabeça baixa. Ela não bateu a porta atrásdele. Fechou-a com cuidado e silêncio.
Foi naquele ano que ela fez do seu temperamento tão frequentemente vil a sua prioridade máxima. Matá-lo por
completo seria como matar parte de si mesma, mas ela achou que, se não fizesse algumas mudanças fundamentais,
uma parte importante dela continuaria com 15 anos por muito, muito tempo. Começou a se esforçar para impor o
controle, e quase sempre conseguiu. Quando sentia o controle escorregar, lembrava-se do que o pai dissera e
daquele gesto de mãos abertas, e dos passos lentos dele pelo corredor do andar de cima da casa onde ela se criou.
Ela falou no funeraldo pai, nove anosdepois: O meu pai me disse a coisa mais importante que já ouvi. Não revelou o
que era essa coisa, masa mãe sabia; estava sentada no banco da frente da igreja na qualhoje a filha era pastora.
Nos últimos vinte anos, quando sentia ânsia de explodir com alguém — muitas vezes a ânsia era quase
incontrolável, porque as pessoas podiam ser muito estúpidas, muito burras de propósito —, ela lembrava a voz do
pai: Se não controlar seu temperamento, seu temperamento vai controlar você.
Mas agora a fissura vermelha se alargava, e ela sentia a antiga ânsia de jogar tudo longe. De arranhar a pele até
fazer o sangue sair.
— Perguntou a ela quem foi?
— Claro que sim — disse Ginny. — Ela não quer dizer. Está apavorada.
Piper recordou que primeiro pensou que a mãe e o bebê caídos à beira da estrada eram um saco de lixo. E é
claro que eram um saco de lixo para quem fizera aquilo. Ela se levantou.
— Vou conversar com ela.
— Talvezagora não seja boa ideia — disse Ginny. — Ela tomou um sedativo e...
— Deixa ela tentar — disse Twitch. O rosto dele estava pálido. As mãos estavam cruzadas entre os joelhos. Os
nósdosdedosestalavam sem parar. — Vai fundo, reverenda. Osolhosde Sammyestavam a meio-pau. Abriram-se devagar quando Piper se sentou ao lado do leito.
— Você... foi você que...
— Fui — disse Piper, e pegou a mão dela. — Sou Piper Libby.
— Obrigada — disse Sammy. Os seusolhos começaram a se fechar de novo.
— Agradeça me dizendo o nome doshomensque te curraram.
No quarto obscurecido — quente, com o ar-condicionado do hospitaldesligado —, Sammy fezque não.
— Disseram que iam me machucar. Se eu falasse. — Ela olhou Piper. Foi um olhar bovino, cheio de resignação
surda. — Podem machucar o Pequeno Walter também.
Piper fezque sim.
— Eu entendo que esteja assustada — disse. — Agora me dizquem foi. Dizosnomes.
— Você não me ou viu? — Agora sem olhar Piper. — Disseram que iam machucar...
Piper não tinha tempo para isso; a moça apagaria a qualquer momento. Ela segurou com força o pulso de
Sammy.
Eu quero osnomes, e você vai me contar.
— Não tenho coragem! — Sammy começou a derramar lágrimas.
— Você vai me contar porque, se eu não aparecesse, você talvez já estivesse morta. — Ela parou e depois enfiou
o resto da adaga. Mais tarde talvez se arrependesse, mas não agora. Agora a moça na cama era só um obstáculo
entre ela e o que precisava saber. — Sem falar do seu filho. Ele também poderia estar morto. Salvei a sua vida,
salveia dele e eu quero osnomes.
— Não. — Mas a moça já estava enfraquecendo, e parte da reverenda Piper Libby estava até gostando daquilo.
Mais tarde se enojaria; mais tarde pensaria Você não é tão diferente assim daqueles rapazes, forçar a barra é forçar
a barra. Mas agora, sim, havia prazer, assim como houvera prazer em arrancar o precioso pôster da parede e rasgá-
lo em pedacinhos.
Eu gosto porque é amargo, pensou. E porque é o meu coração.
Ela se inclinou sobre a moça que chorava.
— Limpa a cera dos ouvidos, Sammy, porque você precisa ouvir uma coisa. O que eles fizeram vão fazer de novo.
E quando fizerem, quando alguma outra moça aparecer ensanguentada e talvez grávida do filho de um estuprador,
eu vou vir te procurar, e vou dizer...
— Não! Para!
— “Você participou. Você estava lá, instigando eles.”
— Não! — gritou Sammy. — Eu não, foia Georgia! Foia Georgia que ficou instigando eles!
Piper sentiu um nojo frio. Uma mulher. Uma mulher estivera lá. Na cabeça dela, a fissura vermelha se abriu mais.
Logo começaria a cuspir lava.
— Me dizosnomes — ordenou.
E Sammy disse. Jackie Wettington e Linda Everett estavam estacionadas diante do Food City. Ia fechar às cinco da tarde, em vez
das oito da noite. Randolph as mandara lá achando que fechar mais cedo poderia causar problemas. Uma ideia
ridícula, porque o supermercado estava quase vazio. Não havia nem uma dúzia de carros no estacionamento, e os
poucos compradores que restavam andavam num estupor lento, como se tivessem o mesmo pesadelo. As duas
policiais só viram um caixa, um adolescente chamado Bruce Yardley. O garoto dava o troco em dinheiro e anotava
vales em vez de passar cartões de crédito. O balcão das carne parecia vazio, mas ainda havia muito frango e as
prateleirasde secose enlatadosestavam quase todas cheias.
Esperavam que os últimos fregueses saíssem quando o celular de Linda tocou. Ela olhou a identificação da
chamada e sentiu uma pontada de medo na boca do estômago. Era Marta Edmunds, que cuidava de Janelle e Judy
quando Linda e Rusty trabalhavam — como acontecia, quase sem parar, desde que a Redoma caíra. Ela retornou a
ligação.
— Marta? — disse, rezando para não ser nada, Marta perguntando se podia levar as meninas à pracinha, algo
assim. — Está tudo bem?
— É... Está. Quer dizer, acho que está. — Linda detestou a preocupação que sentiu na voz de Marta. — Mas..,
sabe aquela história das convulsões?
— Meu Deus... Ela teve outra?
— Acho que sim — confirmou Marta, e continuou sem pausas: — Agora estão ótimas, na outra sala, colorindo.
— O que aconteceu? Diga!
— Estavam no balanço. Eu estava cuidando das flores, preparando pro inverno...
— Marta, por favor — disse Linda, e Jackie lhe pôsa mão no braço.
— Desculpe. Audi começou a latir e eu me virei. Disse “Querida, você está bem?” Ela não respondeu, só saiu do
balanço e se sentou embaixo, sabe, onde tem aquele buraco de tanto os pés passarem ali. Ela não caiu nem nada,
só sentou. Olhava bem pra frente e dava aquelesestalos com a boca que você me disse para observar. Corriaté lá...
sacudiela.., e ela disse... deixa eu lembrar...
Aí vem, pensou Linda. Acaba com o Halloween, você tem que acabar com o Halloween,
Masnão. Era algo totalmente diferente.
— Ela disse: “As estrelas cor-de-rosa estão caindo. As estrelas cor-de-rosa estão caindo em linha.” Depois, disse:
“Está tão escuro, e tudo fede.” Depois, acordou, e agora está tudo bem.
— Graçasa Deus — respondeu Linda, e só então pensou na filha de 5 anos. — Judyestá bem? Ficou nervosa?
Houve uma longa pausa na linha e, então, Marta disse:
— Ah.
— Ah? O que você quer dizer com ah?
— Foia Judy, Linda. Não foia Janelle. Dessa vez foia Judy. Quero brincar daquele outro jogo que você falou, dissera Aidan a Carolyn Sturges quando pararam na praça para
conversar com Rusty. O outro jogo em que ela pensara era “batatinha frita um, dois, três”, embora Carolyn não se
lembrasse direito das regras — o que não surpreende, já que não brincava daquilo desde que tinha 6 ou 7 anos.
Mas assim que ficou em pé ao lado de uma árvore no quintal espaçoso do “peixestéril” se lembrou das regras. E
também, inesperadamente Thurston, que parecia não só disposto como ansioso para brincar.
— Lembrem-se — disse ele às crianças (que pareciam nunca ter conhecido o prazer de Batatinha Frita um dois
três) —, ela pode dizer “batatinha frita um, dois, três” com a rapidez que quiser e quem ela pegar se mexendo
quando se virar tem que voltar pro início.
— Ela não vai me pegar — disse Alice.
— Nem eu — acrescentou Aidan, decidido.
— Isso vamos ver — disse Carolyn, e se virou para a árvore. — Ba-ta-ti-nha.. fri-ta... UM DOIS TRÊS!
Ela se virou. Alice estava parada com um sorriso nos lábios e uma das pernas esticada num grande passo de
gigante. Thurston, também sorrindo, estava com os braços esticados com garras de Fantasma da Ópera. Ela
percebeu um leve movimento de Aidan, mas nem pensou em mandá-lo voltar. Ele parecia contente e ela não tinha a
mínima intenção de estragar nada.
— Ótimo — disse. — Que lindas estátuas. Vamos lá de novo. — Ela se virou para a árvore e repetiu a cantilena,
invadida pelo medo antigo, infantil e delicioso de saber que havia gente chegando enquanto estava de costas. —
Batatinhafrita UMDOISTRÊS!
Ela girou. Agora Alice estava a apenas vinte passos. Aidan estava mais ou menos uns dez passos atrás dela,
tremendo num pé só, a casca de um machucado bem visível no joelho. Thurse estava atrás do menino, uma mão no
peito como um orador, sorrindo. Alice é que a alcançaria, mas tudo bem; no segundo jogo a menina iria para a árvore
e o irmão ganharia. Disso ela e Thurse cuidariam.
Carolyn se virou de novo para a árvore.
— Batatinhafri...
Então Alice gritou.
Carolyn se virou e viu Aidan Appleton caído no chão. A princípio achou que ele ainda tentava brincar. Um dos
joelhos — o machucado — estava erguido, como se ele tentasse correr de costas. Os olhos arregalados fitavam o
céu. Os lábios estavam curvados num biquinho em O. Havia uma mancha escura se espalhando no short. Ela correu
até lá.
— O que aconteceu com ele? — perguntou Alice. Carolyn viu toda a tensão daquele fim de semana terrível se
amontoar no seu rosto. — Ele está bem?
— Aidan? — perguntou Thurse. — Está bem, parceiro?
Aidan continuava a tremer, os lábios parecendo sugar um canudinho invisível. A perna curvada desceu e chutou.
Osombros se contorceram.
— Ele está tendo algum tipo de convulsão — disse Carolyn. — Talvez pelo excesso de excitação. Acho que vai
ficar bem se a gente der alguns...
— As estrelas cor-de-rosa estão caindo — disse Aidan. — Elas deixam linhas atrás. É bonito. Assusta. Todo
mundo está olhando. Nada de gostosuras, só travessuras. Difícil respirar. Ele diz que se chama Chef. A culpa é dele.
Ele é o culpado.
Carolyn e Thurston se entreolharam. Alice estava ajoelhada ao lado do irmão, segurando a mão dele. — Estrelas cor-de-rosa — disse Aidan. — Caem, caem, ca...
— Acorda!— berrou Alice bem junto ao rosto dele. — Para de assustar a gente!
Thurston Marshall tocou de leve o ombro da menina.
— Querida, acho que isso não ajuda.
Alice não lhe deu atenção.
— Acorda, seu... seu CABEÇA DE BAGRE!
E Aidan acordou. Olhou sem entender o rosto riscado de lágrimas da irmã. Depois olhou Carolyn e sorriu — o
sorriso maisdoce que ela já vira na vida.
— Ganhei? — perguntou ele. O gerador do depósito da Câmara de Vereadores estava malcuidado (alguém enfiara uma antiga pia de estanho
galvanizado debaixo dele para recolher o óleo que pingava e, na avaliação de Rusty, era tão eficiente no gasto de
energia quanto o Hummer de Big Jim). Masele estava mais interessado no cilindro prateado preso ao aparelho.
Barbie olhou rapidamente o gerador, fezuma careta com o cheiro e foiaté o cilindro.
— Não é tão grande quanto eu esperava — disse, embora fosse muito maior do que os cilindros que usavam no
Rosa Mosqueta ou o que trocara para Brenda Perkins.
— É o chamado “tamanho municipal” — disse Rusty. — Eu lembro disso na assembléia da cidade ano passado.
Sanders e Rennie fizeram o maior rebu porque com os cilindros menores economizaríamos muita grana “nesses
temposde energia cara”. Cada um contém 3 mil litros.
— O que significa um peso de... de quê? Três toneladas? — Rusty fezque sim. — Maiso peso do cilindro. É muito
pra levantar, seria preciso uma empilhadeira ou um macaco hidráulico, mas não pra carregar. Uma picape Ram está
na categoria das 3 toneladas e provavelmente pode levar mais. Um desses cilindros de tamanho médio caberia na
caçamba. Saindo um pouquinho por trás e pronto. — Rusty deu de ombros. — Basta pendurar uma bandeira
vermelha nele e tudo bem.
— É o único que tem aqui — disse Barbie. — Quando acabar, a luzda Câmara vaiapagar.
— A não ser que Rennie e Sanders saibam onde tem mais — completou Rennie. — E eu aposto que sabem.
Barbie passou a mão sobre as letrasazuispintadasno cilindro: HOSP
— Foi isso que você perdeu.
— Não perdemos; foi roubado. É o que eu estou pensando. Só que devia ter mais cinco cilindros nossos aqui,
porque sumiu um totalde seis.
Barbie examinou o longo depósito. Apesar dos limpa-neves guardados e dos caixotes de peças de reposição, o
lugar parecia vazio. Principalmente em torno do gerador.
— Nem estou pensando no que roubaram do hospital; cadê o resto dos cilindrosda cidade?
— Não sei.
— E pra que estariam sendo usados?
— Não sei — respondeu Rusty —, maspretendo descobrir.

Under The DomeOnde histórias criam vida. Descubra agora