ATAQUE DE MÍSSIL IMINENTE

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“ATENÇÃO! AQUI FALA A POLÍCIA DE CHESTER’S MILL! ESTA ÁREA ESTÁ SENDO EVACUADA! SE ESTÁ
ESCUTANDO, VENHA NA DIREÇÃO DA VOZ! ESTA ÁREA ESTÁ SENDO EVACUADA!”
Thurston Marshall e Carolyn Sturges sentaram-se na cama, escutando esse estranho alarido e entreolhando-se
com olhos arregalados. Eram professores do Emerson College, em Boston: Thurston, catedrático de Inglês (e editor
convidado do último número de Ploughshares); Carolyn, professora-assistente do mesmo departamento. Eram
amantes já há seis meses e o botão estava longe de cair da roseira. Estavam na cabaninha que Thurston tinha em
Chester Pond, que fica entre a estrada da Bostinha e o riacho Prestile. Tinham ido lá passar o fim de semana
prolongado e ver as “folhas de outono” caírem, mas a maior parte da folhagem que admiraram desde a tarde de
sexta-feira fora da variedade pubiana. Não havia TV na cabana; Thurston Marshall abominava. Havia rádio, mas não
tinham ligado. Eram oito e meia da manhã de segunda-feira, 23 de outubro. Nenhum deles fazia a mínima ideia de
que havia algo errado até aquela vozestridente osacordar.
“ATENÇÃO! AQUI FALA A POLÍCIA DE CHESTER’S MILL! A ÁREA...”
Maisperto. Se aproximando.
— Thurston! O bagulho! Onde você deixou?
— Fica tranquila — disse ele, maso tremor na voz indicava que era incapazde seguir o próprio conselho.
Era um homem alto e magro com um monte de cabelo grisalho que costumava amarrar num rabo de cavalo.
Agora estava solto, quase nosombros. Tinha 60 anos; Carolyn, 23.
— Todos esses acampamentozinhos ficam desertos nessa época do ano, eles só vão e voltam até a estrada da
Bost...
Ela lhe deu um soco no ombro — nunca fizera isso antes.
— O carro está na entrada! Vão ver o carro!
Um hum, merda nasceu no rosto dele.
— ... EVACUADA! SE ESTÁ ESCUTANDO, VENHA NA DIREÇÃO DA VOZ! ATENÇÃO! ATENÇÃO! — Agora
bem perto. Thurston ouvia outras vozes amplificadas também, gente usando megafone, policiais usando megafone,
mas esse estava quase em cima deles. — A ÁREA ESTÁ SENDO EVAC... — Houve um momento de silêncio. E
depois: — OLÁ, CABANA! SAIAM DAÍ! PRA FORA!
Ah, era um pesadelo.
— Onde você deixou o bagulho? — Ela o socou de novo.
O bagulho estava na sala. Num saco plástico agora semivazio, ao lado de um prato com o queijo e as bolachas da
noite anterior. Se alguém entrasse, seria a primeira coisa que veria.
— AQUI É A POLÍCIA! NÃO ESTAMOS AQUI DE BOBEIRA! ESTA ÁREA ESTÁ SENDO EVACUADA! SE
ESTIVEREM AÍ, SAIAM ANTES QUE A GENTE PRECISE ARRASTAR VOCÊS!
Porcos, pensou ele. Porcosde cidade pequena com cabeça de porco de cidade pequena.
Thurston pulou da cama e correu pelo quarto, o cabelo ao vento, a bunda magra contraída.
O avô construíra a cabana depoisda Segunda Guerra Mundiale ela só tinha dois cômodos: um grande quarto que
dava para o lago e a sala/cozinha. A luz vinha de um velho gerador Henske, que Thurston desligara antes de irem se
deitar; seu ruído irregular não era exatamente romântico. As brasas do fogo da noite passada — não realmente
necessário, mas très romantique — ainda piscavam de sono na lareira.
Talvezeu esteja errado, quem sabe eu puso bagulho de volta na pasta...
Infelizmente, não. O bagulho estava lá, bem ao lado dos restos de queijo brie que tinham saboreado antes de começar a fodelança da véspera.
Ele correu até lá, e veio uma batidinha na porta. Não, uma martelada na porta.
— Um minutinho! — gritou Thurston, todo atrapalhado. Carolyn estava parada na porta do quarto enrolada num
lençol, mas ele mal notou. A mente de Thurston, que ainda sofria de paranoia residual devido aos excessos da noite
anterior, rolava com idéias desconexas: perda da cátedra, polícia do pensamento de 1984, perda da cátedra, a
reação enojada dos três filhos (de duas esposas anteriores) e, é claro, perda da cátedra. — Um minutinho, um
segundo, deixa eu me vestir...
Mas a porta se abriu, e, contrariando diretamente umas nove garantias constitucionais diferentes, dois rapazes
entraram. Um tinha um megafone. Ambos usavam jeans e camisas azuis. Os jeans eram quase reconfortantes, mas
as camisas tinham ombreirase distintivos.
Não precisamos de porra de distintivo nenhum, pensou Thurston, entorpecido. [Alusão a um diálogo famoso do
filme O tesouro de Sierra Madre (1948), de John Huston]
— Saiam daqui! — guinchou Carolyn.
— Dá só uma olhada, Junes — disse Frankie DeLesseps. — É Tesudo e Cachorra — Feitos Um Para o Outro.
Thurston agarrou o saco plástico, escondeu-o nas costase o jogou na pia.
Junior observava o equipamento que essa ação revelou.
— É a piroca mais magra e comprida que já vi — disse. Parecia cansado e a aparência se justificava de forma
honesta só dormira duas horas, mas se sentia bem, absolutamente ótimo como sempre. Nem vestígio de dor de
cabeça.
Esse trabalho combinava com ele.
— FORA! — berrou Carolyn.
— É melhor calar a boca, querida, e vestir alguma coisa — disse Frankie. — Todo mundo desse lado da cidade
está sendo evacuado.
— Essa casa é nossa! CAI FORA, SEU MERDA!
Frankie estava sorrindo. Nisso, parou. Passou pelo homem magro e nu parado junto à pia (tremendo junto à pia
seria maisexato) e agarrou Carolyn pelosombros. Deu-lhe uma sacudida forte.
— Não seja desbocada, querida. Estou tentando evitar que você acabe fritando o seu cu. Você e o seu namor...
— Tira as mãosde mim! Você vaipra cadeia por isso! O meu paié advogado! Ela tentou lhe dar um tapa. Frankie,
que não era de acordar cedo, nunca fora, lhe agarrou a mão e a dobrou para trás. A força não foi muita, mas Carolyn
gritou. O lençol caiu no chão.
— Epa! Que baita airbag! — confidenciou Junior ao boquiaberto Thurston Marshall. — Consegue dar conta disso,
velhinho?
— Vistam-se, vocês dois — disse Frankie. — Não seiaté que ponto vocês são burros, mas bastante burros devem
ser, porque ainda estão aqui. Não sabem que...
Ele parou. Olhou do rosto da mulher para o do homem. Ambos igualmente aterrorizados. Igualmente
desconcertados.
— Junior! — disse.
— O quê?
— A Peituda da Silva e o enrugadinho não sabem o que está acontecendo.
— Não ouse me chamar de nenhum nome sexista, seu...
Junior ergueu a mão.
— Senhora, vá se vestir. Os senhores têm que sair daqui. A Força Aérea dos Estados Unidos vai disparar um
míssil Cruise contra esta parte da cidade... — ele olhou o relógio — em pouco menosde cinco horas.
— VOCÊ TÁ LOUCO? — berrou Carolyn.
Junior deu um profundo suspiro. Ele achava que agora entendia um pouco melhor aquilo de ser policial. Era um
ótimo emprego, mas como aspessoa eram estúpidas.
— Se ricochetear, a senhora só vaiouvir uma explosão forte. Talvez faça a senhora mijar nas calças, se estiver de
calças, mas não vai machucar ninguém. Mas, se passar, o mais provável é que a senhora seja grelhada, já que é um
míssilbem grande e os senhoresestão a menosde 3 quilômetrosdo lugar onde dizem que será o ponto de impacto.
— Ricochetear no que, seu idiota? — perguntou Thurston. Com o bagulho jogado na pia, ele agora usava uma das
mãos para cobrir as partes pudendas... ou ao menos tentava; sua máquina do amor era mesmo muito comprida e
magra.
— A Redoma — disse Frankie. — E não gostei do seu jeito de falar. — Deu um passo comprido à frente e socou
no estômago o atual editor convidado de Ploughshares. Thurston soltou um uuufe áspero, se dobrou para a frente,
cambaleou, quase se aguentou de pé, caiu de joelhos e vomitou o equivalente a uma xícara de gosma branca e fina
que ainda cheirava a queijo brie.
Carolyn segurava o pulso que inchava.
— Você vai pra cadeia por isso — prometeu ela a Junior, com voz baixa e trêmula. — Bush e Cheney já foram faz
tempo. Isso aquinão é maisos Estados Unidosda Coréia do Norte.
— Eu sei — disse Junior, com paciência admirável para quem pensava que não seria nada mau estrangular um
pouquinho; havia um escuro monstro-de-gila no seu cérebro que achava que uma estranguladinha seria o modo
perfeito de começar o dia.
Mas não. Não. Ele tinha que cumprir o seu papel e terminar a evacuação. Tinha feito o Juramento do Dever, ou o
que quer que fosse aquela merda lá.
— Eu sei disso — repetiu ele. — Mas o que vocês imbecis de Massachusetts não sabem é que também não estão
mais nos Estados Unidos da América. Agora vocês estão no Reino de Chester e, se não se comportarem direitinho,
vão acabar nas Masmorras de Chester. Juro. Sem telefone, sem advogado, sem devido processo legal. Estamos
tentando salvar a vida de vocêsaqui. São burrosdemaispara entender isso?
Ela o encarava, espantada. Thurston tentou se levantar, não conseguiu e rastejou na direção dela. Frankie o
ajudou com um chute no traseiro. Thurston gritou de choque e dor.
— Isso é por nos atrasar, vovô — disse Frankie. — Admiro o seu bom gosto pra garotas, mas nós temos muito
que fazer.
Junior olhou a moça. Bela boca. Lábios de Angelina. Apostava que ela conseguiria, como dizia o outro, chupar o
cromado de um engate de trailer.
— Se ele não conseguir se vestir sozinho, ajuda ele. Temos que verificar mais quatro cabanas e, quando
voltarmos, é bom vocêsestarem naquele Volvo de vocêsa caminho da cidade.
— Não estou entendendo nada! — choramingou Carolyn.
— Não me espanta — disse Frankie, pescando na pia o saco de maconha. — Não sabia que esse troço deixa a
gente estúpido? Ela começou a chorar.
— Não se preocupe — disse Frankie. — Vou confiscar e daqui a alguns dias, pronto, vocês voltam a ficar espertos
sozinhos.
— Você nem leu osnossosdireitos — chorava ela.
Junior se espantou. Depois, riu.
— Vocês têm o direito de saírem correndo daqui e calarem a porra da boca, ti? Nessa situação, são os únicos
direitosque vocês têm. Entendido?
Frankie examinava a erva confiscada.
— Junior — disse —, quase não tem semente aqui. É da boa!
Thurston alcançara Carolyn. Levantou-se, peidando alto ao se erguer. Junior e Frankie se entreolharam. Tentaram
se segurar — afinalde contas, eram homensda lei — e não conseguiram. Caíram na gargalhada ao mesmo tempo.
— Charlie Trombone voltou à cidade! — berrou Frankie, e osdoisbateram naspalmasdas mãosum do outro.
Thurston e Carolyn, na porta do quarto, cobriam a nudez mútua num abraço, encarando os intrusos que não
paravam de rir. Ao fundo, como vozes num pesadelo, os megafones continuavam a anunciar que a área estava
sendo evacuada. ora a maioria das vozesamplificadas recuava na direção da Bostinha.
Não quero ver esse carro quando voltarmos — disse Junior. — Ou eu fodo com vocês.
Eles saíram. Carolyn se vestiu e ajudou Thurston — o estômago doía demais para que ele se curvasse e calçasse
os sapatos. Quando terminaram, os dois choravam. No carro, no caminho que levava à estrada da Bostinha, Carolyn
tentou falar com o paipelo celular. Só obteve silêncio.
No cruzamento da Bostinha com a 119, havia um carro da polícia estacionado no meio da estrada. Uma policial
robusta de cabelo vermelho apontou para o acostamento sem asfalto e acenou para que o usassem. Em vez disso,
Carolyn parou e desceu. Ergueu o pulso inchado.
— Nós fomosatacados! Por dois carasque diziam ser policiais! Um se chama Junior e o outro, Frankie! Eles...
— Tira o teu cu daqui, senão quem vai atacar vocês sou eu — disse Georgia Roux. — E eu estou falando sério,
queridinha.
Carolyn a fitou, espantada. Enquanto ela dormia, o mundo inteiro virara de cabeça para baixo e caíra num
episódio de Além da imaginação. Só podia ser; nenhuma explicação fazia sentido. A qualquer momento, ouviriam a
vozde Rod Serling.
Ela voltou ao Volvo (o adesivo no para-choque, desbotado mas ainda legível: OBAMA 2012! SIM, NÓS AINDA
PODEMOS) e contornou o carro da polícia. Havia outro policial mais velho lá dentro, verificando itens numa
prancheta. Ela pensou em apelar para ele, depoisachou melhor não.
— Tenta o rádio — disse ela. — Vamos ver se está mesmo acontecendo alguma coisa.
Thurston ligou o rádio e só captou Elvis Presleye os Jordanaires, cantando How Great Thou Arte.
Carolyn desligou o rádio, pensou em dizer O pesadelo está oficialmente completo, mas não disse. Só queria cair
fora de Estranhópoliso maisdepressa possível.
No mapa, a estradinha de Chester Pond era uma linha fina parecida com um anzol, quase inexistente. Depois de
sair da cabana dos Marshall, Junior e Frankie ficaram por algum tempo sentados no carro de Frankie, estudando o
mapa.
— Não deve ter mais ninguém pra lá — disse Frankie. — Não nessa época do ano. O que você acha? Ligamos o
foda-se e voltamos pra cidade? — Ele apontou o polegar para a cabana. — Eles já devem estar indo, e se não
estiverem, quem dá a mínima?
Junior pensou no caso um instante e depois fez que não. Tinham feito o Juramento do Dever. Além disso, ele não
estava com vontade de voltar e enfrentar o pai enchendo o saco dele para saber o que fizera com o corpo do
reverendo. Agora Coggins fazia companhia às namoradas na despensa dos McCain, mas o pai não tinha
necessidade de saber disso. Ao menos não até o velho descobrir como culpar Barbara por aquilo. E Junior
acreditava que o paidescobriria. Big Jim Rennie era ótimo nisso de jogar a culpa nosoutros.
Agora não importa nem que ele descubra que eu larguei a faculdade, pensou Junior, porque eu sei de coisa pior
sobre ele. Muito pior.
Não que largar a faculdade parecesse muito importante agora; era trocado miúdo comparado ao que estava
acontecendo em Mill. Mas ainda assim era preciso ter cuidado. Junior não achava o pai incapaz de jogar a culpa
nele, se a situação exigisse.
— Junior? Terra chamando Junior...
— Tou aqui — disse ele, um pouco irritado.
— Voltamospra cidade?
— Vamos conferir as outras cabanas. São menos de 500 metros e, se a gente voltar pra cidade, o Randolph vai
arranjar alguma coisa pra gente fazer.
— Eu queria fazer uma boquinha.
— Onde? No Mosqueta? Quer veneno de rato nosovos mexidos, cortesia de Dale Barbara?
— Ele não ousaria.
— Tem certeza?
— Tá bom, tá bom. — Frankie ligou o carro e voltou para a estradinha de terra. As folhas de cores vivas pendiam
imóveis das árvores, e o ar parecia sufocante. Mais para julho do que para outubro. — Mas é melhor que aqueles
imbecis de Massachusetts tenham ido embora quando a gente voltar, ou eu vou ter que apresentar a Peituda da
Silva ao meu vingador de capacete.
— Pode deixar que eu seguro ela — disse Junior. — Iipii-ai-ai, filha da puta.
As trêsprimeiras cabanasestavam visivelmente vazias; elesnem se deram ao trabalho de descer do carro. A essa
altura, a estradinha de terra se resumia a um par de marcas de pneus com uma lombada coberta de capim entre
elas. Asárvoresa cobriam dosdois ladose algunsgalhos maisbaixosquase raspavam o teto do carro.
— Acho que a última é logo depois dessa curva — disse Frankie. — A estrada acaba nesse ancoradourozinho de
mer...
— Cuidado! — berrou Junior.
Saíram da curva e havia dois garotos, um menino e uma menina, em pé na estrada. Não fizeram nenhuma
tentativa de sair da frente. O rosto deles estava vazio, chocado. Se Frankie não tivesse medo de destruir o sistema
de exaustão do Toyota na lombada do meio da estradinha, se estivesse indo um tiquinho mais depressa que fosse,
teria atropelado osdois. Em vezdisso, meteu o pé no freio e o carro parou a meio metro deles.
— Meu Deus, foiquase — disse. — Acho que eu vou ter um enfarte.
— Se o meu painão teve, você também não vai ter — disse Junior.
— Há?
— Nada, nada.
Junior saiu do carro. As crianças ainda estavam ali. A menina era mais alta e mais velha. Talvez 9 anos. O menino
parecia ter uns 5. O rosto dos dois estava sujo e pálido. Ela segurava a mão dele. Ergueu os olhos para Junior, mas
o menino olhava à frente, como se examinasse algo interessante no faroldo Toyota do lado do motorista.
Junior viu o terror no rosto dela e se ajoelhou bem à sua frente.
— Tá tudo bem, querida?
Foio menino que respondeu. Falou enquanto ainda examinava o farol.
— Eu quero a minha mãe. E quero café da minhã.
Frankie foiaté lá.
— Eles são de verdade? — Falou isso numa voz que dizia Estou brincando, mas não muito. Estendeu a mão e
tocou o braço da menina.
Ela se assustou um pouco e o olhou.
— A mamãe não voltou. — A menina falava em vozbaixa.
— Como é o seu nome, querida? — perguntou Junior. — E quem é a sua mãe?
— Eu me chamo Alice Rachei Appleton — respondeu ela. — Ele se chama Aidan Patrick Appleton. A nossa mãe
se chama Vera Appleton. O nosso pai se chama Edward Appleton, mas ele e a mamãe se divorciaram ano passado
e agora ele mora em Piano, lá no Texas. A gente mora em Weston, Massachuetts, Oak Way, número 16. Nosso
telefone é... — Ela o recitou com a exatidão tonaldasgravaçõesde auxílio à lista.
Junior pensou, Caceta. Mais imbecis de Massachusetts. Mas fazia sentido; quem mais ia queimar gasolina tão
cara só para ver aquelas merdasde folha caírem daquelas merdasde árvores?
Agora Frankie também estava de joelhos.
— Alice — disse ele —, presta atenção, querida. Onde a sua mãe tá agora?
— Não sei. — Lágrimas, grandes globos transparentes, começaram a escorrer pelo seu rosto. — A gente veio ver
as folhas. E também a gente ia andar de caiaque. A gente gosta de caiaque, não gosta, Aide?
— Tô com fome — disse Aidan com tristeza, e também começou a chorar.
Ver os dois assim fez Junior ficar com vontade de chorar também. Ele se lembrou de que era policial. Policiais não
choravam, ao menos não em serviço. Perguntou outra vez à menina onde estava a mãe, mas foi o menino que respondeu.
— Ela foibuscar bulinho.
— É bolinho recheado — disse Alice. — Mas foi buscar outras coisas também. Porque o sr. Killian não cuidou da
cabana como ele devia. A mamãe disse que eu tinha que cuidar do Aidan porque eu já sou grande e ela não ia
demorar, ia só alino Yoder. Ela disse que era pra não deixar o Aide chegar perto do lago.
Junior estava começando a entender a situação. Parece que a mulher esperara encontrar a cabana cheia de
comida — ao menos as coisas básicas —, mas, se ela conhecesse Roger Killian direito, saberia que não se devia
confiar nele. O homem era um imbecil classe A e passara a falta de intelecto para a prole toda. Yoder era uma lojinha
nojenta do outro lado da fronteira de Tarker’s Mills, especializada em cerveja, café com aguardente e espaguete em
lata. Em geral, seriam vinte minutospara ir, vinte para voltar. Só que ela não voltara, e Junior sabia por quê.
— Ela foino sábado de manhã? — perguntou. — Foi isso, não foi?
— Eu quero ela! — chorava Aidan. — E quero o meu café da manhã! Minha barriga tá doendo!
— Foi — disse a menina. — No sábado de manhã. A gente tava vendo desenho animado, só que agora não pode
ver maisnada, porque a luzacabou.
Junior e Frankie se entreolharam. Duas noites sozinhos no escuro. A menina com uns 9 anos, o menino com 5.
Junior não gostava de pensar naquilo.
— Têm alguma coisa pra comer? — perguntou Frankie a Alice Appleton. Querida? Alguma coisa?
— Tinha uma cebola na gaveta dos legumes — sussurrou ela. — A gente dividiu ao meio. Com açúcar.
— Caralho — disse Frankie. E depois: — Eu não disse isso. Vocêsnão me ouviram dizer isso. Um momentinho.
Ele voltou ao carro, abriu a porta do passageiro e começou a vasculhar o porta-luvas.
— Aonde você ia, Alice? — perguntou Junior.
— Pra cidade. Procurar a mamãe e achar comida. A gente ia andar até o acampamento de lá e cortar caminho
pelo bosque. — Ela apontou vagamente para o norte. — Acheique ia ser mais rápido. — Junior sorriu, masgelou por
dentro. Ela não apontava para Chester’s Mill; apontava na direção do TR-90. Quilômetros de mata secundária
fechada e trechos pantanosos. Mais a Redoma, é claro. Lá, quase com certeza Alice e Aidan morreriam de fome;
João e Maria sem o final feliz.
E nós chegamos muito perto de dar meia-volta. Jesus.
Frankie voltou. Tinha uma barra de chocolate recheada. Parecia velha e amassada, mas ainda estava na
embalagem. O jeito que as crianças fixaram os olhos nela fez Junior pensar nos garotos que às vezes a gente vê nos
noticiários. Aquele olhar em rostosamericanosera horrível, irreal.
— Foi só o que eu achei — disse Frankie, rasgando a embalagem. — Na cidade a gente arranja coisa melhor.
Ele quebrou a barra de chocolate ao meio e deu um pedaço a cada criança. O doce sumiu em cinco segundos.
Quando terminou sua parte, o menino enfiou os dedos na boca. As bochechas se esvaziaram ritmicamente quando
ele os chupou.
Como um cachorro lambendo a gordura de uma varinha, pensou Junior.
Ele se virou para Frankie.
— Não vamos esperar até chegar à cidade. Vamos parar na cabana onde estavam o velho e a garota. E o que
eles tiverem lá essesgarotos vão comer.
Frankie concordou e pegou o menino no colo. Junior pegou a menininha. Sentiu o cheiro do suor, do medo dela.
Acariciou o seu cabelo como se assim pudesse afastar aquele fedor oleoso.
— Está tudo bem, querida — disse ele. — Você e o seu irmão também. Vocêsestão bem. Estão em segurança.
— Jura?
— Juro. — Osbraçosdela se apertaram no pescoço dele. Foiuma das melhores coisasque Junior sentiu na vida.
O lado oeste de Chester’s Mill era a parte menos povoada da cidade e, às 9h15 daquela manhã, estava quase
totalmente deserto. O único carro da polícia que restava na Bostinha era a Unidade 2. Jackie Wettington dirigia e
Linda Everett ia no banco do carona. O chefe Perkins, policial de cidade pequena das antigas, jamais mandaria duas
mulheres juntas, mas é claro que o chefe Perkins não estava mais no comando e as próprias mulheres gostaram da
novidade. Homens, principalmente policiais com as suasbravatas intermináveis, eram muito chatos.
— Pronta pra voltar? — perguntou Jackie. — O Rosa Mosqueta vai estar fechado, mas talvez a gente consiga
implorar uma xícara de café.
Linda não respondeu. Pensava no lugar onde a Redoma cortava a Bostinha. Ir até lá havia sido inquietante, e não
só porque as sentinelas ainda estavam em pé de costas e nem se mexeram quando ela lhes deu bom-dia pelo alto-
falante no teto do carro. Havia sido inquietante porque agora havia um enorme X vermelho pintado com spray na
Redoma, pendendo no ar como um holograma de ficção científica. Era o ponto de impacto previsto. Parecia
impossível que um míssil disparado a 300 ou 500 quilômetros dali conseguisse atingir um ponto tão pequeno, mas
Rusty lhe garantira que era possível.
—Lin?
— Ela voltou ao aquie agora.
— Claro, eu estou pronta se você estiver.
O rádio estalou.
— Unidade 2, Unidade 2, está ouvindo, câmbio?
Linda soltou o microfone.
— Base, aquié o 2. Estou ouvindo, Stacey, masa recepção por aquinão é muito boa, câmbio?
— Todo mundo diz a mesma coisa — comentou Stacey Moggin. — É pior perto da Redoma, melhor mais perto da
cidade. Mas vocêsainda estão na Bostinha, não é? Câmbio.
— É — respondeu Linda. — Acabamos de verificar os Killian e os Boucher. Todos já foram. Se aquele míssil
atravessar, o Roger Killian vai ter um monte de galinhasassadaspor lá.
— Agente fazum piquenique. Pete quer falar com você. Chefe Randolph, quero dizer. Câmbio.
Jackie estacionou o carro ao lado da estrada. Houve uma pausa com estalos de estática e depois Randolph falou.
Ele não usava câmbios, nunca usara.
— Verificou a igreja, Unidade 2?
— A Sagrado Redentor? — perguntou Linda. — Câmbio.
— É a única que eu conheço por aí, policial Everett. A não ser que uma mesquita hinduísta tenha brotado da noite
pro dia.
Linda achava que os hinduístas não frequentavam mesquitas, mas não parecia a hora certa de fazer correções.
Randolph estava com voz cansada e ranzinza.
— A Sagrado Redentor não estava no nosso setor — disse ela. — Estava no setor de dois policiais novos.
Thibodeau e Searles, acho. Câmbio.
— Verifique de novo — disse Randolph, soando mais irritado do que nunca. — Ninguém viu o Coggins, e uns
paroquianosdele querem se conjugar com ele, ou sei lá como eles falam.
Jackie pôs o dedo na têmpora e fingiu dar um tiro em si mesma. Linda, que queria voltar e ver as filhas na casa de
Marta Edmunds, concordou.
— Certo, Chefe — disse Linda. — Pode deixar. Câmbio.
— Verifique também o presbitério. — Houve uma pausa. — E a estação de rádio. Aquela maldita coisa não para
de berrar, e deve ter alguém por lá.
— Pode deixar. — Ela começou a dizer câmbio e desligo, mas pensou em outra coisa. — Chefe, tem algo de novo
na TV? O presidente disse alguma coisa? Câmbio?
— Não tenho tempo pra ficar escutando tudo o que aquele pateta abre a boca pra dizer. Vai, cata o pastor e diz
pra ele sentar o bundão dele bem aqui. E eu quero o bundão de vocêsbem sentado aqui também. Já.
Linda prendeu o microfone no lugar e olhou Jackie.
— O nosso bundão bem sentado lá? — perguntou Jackie. — O nosso bundão?
— Ele é um bundão — disse Linda.
A observação devia ser uma piada, mas soou sem graça. Por um instante, só ficaram sentadas no carro em
marcha lenta, sem conversar. Então, Jackie falou numa vozque era quase baixa demaispara ser ouvida.
— Isso é tão ruim.
— Randolph no lugar de Perkins, é isso?
— Isso e os novos policiais. — Ela pôs aspas verbais nesta última palavra. — Aqueles garotos. Quer saber?
Quando eu bati o cartão, Henry Morrison me disse que Randolph contratou mais dois hoje de manhã. Vieram da rua
com Carter Thibodeau e o Pete simplesmente contratou, sem perguntar nada.
Linda sabia o tipo de gente que andava com Carter, no Dipper’s e no Posto & Mercearia, cuja garagem usavam
para tunar as motos financiadas.
— Maisdois? Por quê?
— O Pete disse ao Henry que nós podemos precisar deles se o míssil não funcionar. “Pra garantir que a situação
não saia do controle”, disse ele. E você sabe quem pôsessa idéia na cabeça dele.
Linda sabia muito bem.
— Ao menosnão estão armados.
— Alguns estão. Não armas do departamento; armas pessoais. Amanhã, se isso não acabar hoje, quero dizer,
todos vão estar. E hoje de manhã o Pete deixou eles irem juntos, em vez de colocar cada um em dupla com um
policial de verdade. Que belo treinamento, hein? Vinte e quatro horas, pegar ou largar. Já percebeu que agora esses
garotos são maisnumerososque nós?
Em silêncio, Linda pensou a respeito.
— Juventude Hitlerista — disse Jackie. — Não paro de pensar nisso. Talvez seja exagero, mas peço a Deus que
isso termine hoje e eu não precise descobrir.
— Não consigo ver Peter Randolph como Hitler.
— Nem eu. Ele se parece mais com Hermann Goering. Quando penso em Hitler, penso no Rennie. — Ela
engrenou o carro, fezo retorno e seguiu rumo à Igreja do Sagrado Cristo Redentor.
A igreja estava destrancada e vazia, o gerador desligado. O presbitério estava em silêncio, mas o Chevrolet do
reverendo Coggins estava parado na pequena garagem. Olhando lá dentro, Linda conseguiu ler dois adesivos no
para-choque. O da direita: SE EU FOR ARREBATADO HOJE, QUE ALGUÉM SEGURE O VOLANTE! O da
esquerda se gabava: O MEU OUTRO CARRO TEM 10 MARCHAS.
Linda chamou a atenção de Jackie para o segundo.
Ele tem uma bicicleta, já viele andando nela. Masela não está na garagem, logo talvezele tenha ido à cidade. Pra
poupar gasolina.
— Pode ser — respondeu Jackie. — E acho bom darmosuma olhada na casa pra garantir que ele não escorregou
no chuveiro e quebrou o pescoço.
Quer dizer que vamos ter que ver ele nu?
— Ninguém disse que o trabalho da polícia era bonito — disse Jackie. — Vamos.
A casa estava trancada, mas em cidades nas quais boa parte da população é de moradores sazonais, a polícia
sabe como entrar. Verificaram os lugares mais comuns para deixar uma chave extra. Foi Jackie quem a achou,
pendurada num ganchinho atrásdo basculante da cozinha. Abriu a porta dos fundos.
— Reverendo Coggins? — chamou Linda, enfiando a cabeça pela porta. — É a polícia, reverendo Coggins, o
senhor está aí?
Nenhuma resposta. Entraram, O andar térreo estava limpo e arrumado, mas deu a Linda uma sensação
desconfortável. Ela disse a si mesma que era só por estar na casa dos outros. A casa de um religioso, e sem ser
convidada.
Jackie subiu a escada.
— Reverendo Coggins? Polícia. Se o senhor estiver aí, responda, por favor.
Linda ficou no pé da escada, olhando para cima. A casa tinha alguma coisa errada. Isso a fez pensar em Janelle,
tremendo durante a convulsão. Aquilo também fora errado. Uma certeza esquisita lhe entrou na cabeça: se Janelle
estivesse ali agora, teria outra convulsão. E começaria a falar de coisas esquisitas. O Halloween e a Grande
Abóbora, talvez.
Era um lance de escadas perfeitamente normal, mas ela não queria subir, só queria que Jackie dissesse que o
lugar estava vazio para que pudessem ir para a estação de rádio. Mas, quando a parceira a chamou lá em cima,
Linda subiu.
Jackie estava no meio do quarto de Coggins. Havia uma cruz simples de madeira numa das paredes e uma placa
na outra. A placa dizia O SENHOR OLHA PELOS PASSARINHOS. A colcha da cama estava virada. Havia marcas
de sangue no lençolembaixo.
— E isso — disse Jackie. — Dá a volta aqui.
Com relutância, Linda deu. Caído no chão de madeira polida, entre a cama e a parede, havia um pedaço de corda
com nós. Osnósestavam ensanguentados.
— Parece que alguém bateu nele — disse Jackie, de cara feia. — Talvez com força suficiente para que ele
desmaiasse. Depoispuseram ele na... — Ela olhou a outra mulher. — Não?
— Estou vendo que você não teve uma família religiosa — disse Linda.
— Tive sim. Adorávamos a Santíssima Trindade: Papai Noel, o Coelhinho da Páscoa e a Fada dos Dentes. E
você?
— Batistasnormais, mas já ouvi falar de coisasassim. Acho que ele estava se flagelando.
— Argh! Aspessoas faziam isso quando pecavam, não é?
— É. E acho que nunca saiu totalmente de moda.
— Então faz sentido. Maisou menos. Vaino banheiro e olha o vaso sanitário.
Linda não se mexeu. A corda com nós já era bastante ruim, a sensação da casa — meio que vazia demais — era
pior.
— Pode ir. Não vai morder você, e aposto um dólar contra um centavo que você já viu coisa pior.
Linda entrou no banheiro. Havia duas revistas em cima da tampa do vaso sanitário. Uma era devocional, O andar
de cima. A outra se chamava Xotinhas orientais. Linda duvidava que essa fosse vendida em muitas livrarias
religiosas.
— Então — disse Jackie. — Já dá pra ver o quadro? Ele senta no vaso, estrangula o sabiá...
— Estrangula o sabiá? — Linda deu uma risadinha, apesar dosnervos. Ou por causa deles.
— Era como a minha mãe costumava dizer — explicou Jackie. — Seja como for, depois que acaba, faz uma
sessãozinha de corda pra expiar os pecados, aí se deita e tem alegres sonhos asiáticos. Hoje de manhã, se levanta,
renovado e sem pecado, fazasorações matinaise vaipra cidade de bicicleta. Faz sentido?
Fazia. Só não explicava por que a casa lhe parecia tão errada.
— Vamos verificar a estação de rádio — disse ela. — Depois, vamosnóspra cidade tomar café. Eu pago.
— Ótimo — disse Jackie. — Quero o meu puro. De preferência, na seringa.
7
O estúdio da WCIK, um prédio baixo, quase todo de vidro, também estava trancado, mas alto-falantes montados
sob o telhado tocavam GoodNight, Sweet Jesus, na interpretação daquele famoso cantor soul Perry Como. Atrás do
estúdio, se projetava a torre de transmissão, as luzes vermelhas que piscavam do alto mal visíveis na luz forte da
manhã. Perto da torre havia uma estrutura comprida, parecida com um celeiro, que Linda supôsabrigar o gerador da
emissora e os suprimentos de que precisasse para continuar transmitindo o milagre do amor de Deus para o oeste
do Maine, o leste de New Hampshire e talvezosplanetas maispróximosdo sistema solar.
Jackie bateu de leve, depois com força.
— Acho que não tem ninguém aí — disse Linda... masaquele lugar também parecia errado. E o ar tinha um cheiro
engraçado, abafado e podre. Lembrou-lhe o cheiro da cozinha da mãe, mesmo depois de bem arejada. Porque a mãe fumava feito chaminé e acreditava que tudo que valia a pena comer era frito numa frigideira pelando bem
untada com muita banha de porco.
Jackie balançou a cabeça.
— Escutamos alguém não foi? — Linda não tinha como responder, porque era verdade. Ao virem do presbitérios
escutaram um DJde voz macia anunciar a gravação seguinte como “Outra mensagem do amor de Deusem música”.
Dessa vez, a caçada à chave foi maisdemorada, mas Jackie finalmente a encontrou num envelope colado com fita
adesiva debaixo da caixa do correio. Junto dela havia um pedaço de papelno qualalguém rabiscara 1 6 9 3.
A chave era uma cópia e agarrava um pouco, mas, depois de certa insistência, funcionou. Assim que entraram,
ouviram o bipe agudo do sistema de segurança. O tecladinho ficava na parede. Quando Jackie digitou os números,
os bipes desistiram. Agora só havia música. Perry Como dera lugar a algo instrumental; Linda achou que soava
suspeitosamente como o solo de órgão de In-A-Gadda-Da-Vida. Ali, os alto-falantes eram mil vezes melhores do que
osde fora, e a música maisalta, quase como se estivesse viva.
Alguém trabalha nessa barulheira santíssima e virtuosa?, quis saber Linda. Atende ao telefone? Faz negócios?
Como é que conseguem?
Ali também havia algo errado. Linda tinha certeza. O lugar lhe parecia mais do que assustador; era absolutamente
perigoso. Quando viu que Jackie abrira o coldre da pistola automática de serviço, Linda fez o mesmo. A sensação da
coronha sob a mão era boa. A Tua coronha e o Teu cajado me consolam, pensou ela.
— Olá! — chamou Jackie. — Reverendo Coggins? Alguém aí?
Ninguém atendeu. A mesa da recepção estava vazia. À esquerda dela, havia duas portas fechadas. Bem à frente,
uma janela que corria pelo comprimento todo da sala principal. Dava para Linda ver luzes piscando lá dentro. O
estúdio da emissora, supôs.
Jackie empurrou as portas fechadas com o pé para abri-las, mantendo-se bem longe. Atrás de uma delas havia
um escritório. Atrás da outra, uma sala de reuniões de luxo surpreendente dominada por uma gigantesca TV de tela
plana. Estava ligada, mas sem som. Anderson Cooper, quase em tamanho natural parecia fazer o seu programa na
rua principal de Castle Rock. Os prédios estavam cobertos de bandeiras e fitas amarelas. Linda viu um cartaz na loja
de ferragens que dizia: LIBERTEM MILL. Isso fez Linda se sentir ainda mais estranha. O letreiro que corria pelo pé
da tela dizia FONTES DO DEPARTAMENTO DE DEFESA AFIRMAM QUE CHOQUE DE MÍSSIL É IMINENTE.
— Por que a televisão está ligada? — perguntou Jackie.
— Porque quem estava cuidando do galinheiro deixou do jeito que...
— Uma voz tonitruante a interrompeu.
— Essa foia versão de Raymond Howellpara Christ, MyLord and Leader.
Asduas mulherespularam.
— E aqui fala Norman Drake, para lembrar você de três fatos importantes: você está ouvindo a Hora do
Avivamento na WCIK, Deus ama você e mandou o seu Filho para morrer por você na cruz do Calvário. São 9h25 da
manhã e, como sempre gostamos de lembrar, o tempo é curto. Já entregou o seu coração ao Senhor? Voltamos em
seguida.
Norman Drake deu lugar a um diabo eloquente que vendia a Bíblia inteira em DVD, e o melhor era que se podia
pagar em prestações mensais e devolver o produto se não ficasse tão feliz quanto um pinto no lixo. Linda e Jackie
foram até a janela do estúdio da emissora e olharam. Nem Norman Drake nem o diabo eloquente estavam lá, mas
quando o comercial terminou e o DJ voltou para anunciar a próxima música de louvor, uma luz verde ficou vermelha
e uma luz vermelha ficou verde. Quando a música começou, outra luz vermelha ficou verde.
— É automático! — exclamou Jackie. — A porra toda!
— Então por que dá pra sentir que tem alguém aqui? E não diga que não tá sentindo.
Jackie não disse.
— Porque é esquisito. O DJ dá até a hora certa. Querida, essa aparelhagem deve ter custado uma fortuna! E
ainda falam sobre fantasmasna máquina... Quanto tempo você acha que ainda vai funcionar?
— Provavelmente até o gás acabar e o gerador parar. — Linda avistou outra porta e a abriu com o pé, como
Jackie fizera... só que, ao contrário de Jackie, ela sacou a arma e a segurou, com a trava de segurança e o gatilho
para baixo, ao lado da perna.
Era um banheiro e estava vazio. No entanto, na parede havia o retrato de um Jesus muito caucasiano.
— Eu não sou religiosa — disse Jackie —, de forma que você vai ter que me explicar por que alguém ia querer
Jesus vendo ele cagar.
Linda balançou a cabeça.
— Vamos sair daqui antes que eu enlouqueça — disse ela. — Esse lugar a versão radiofônica de um navio
fantasma.
Jackie olhou em volta inquieta.
— Bom, o clima é medonho, com isso eu concordo.
De repente ela ergueu a voz num grito áspero que fez Linda pular. Quis dizer a Jackie para não gritar assim.
Porque alguém poderia escutar e vir. Ou alguma coisa.
— Ei! Olá! Tem alguém aí? Última chance!
Nada. Ninguém.
Lá fora, Linda respirou fundo.
— Uma vez, quando eu era adolescente, fui com uns amigos a Bar Harbor, e paramos pra fazer piquenique num
retorno de onde se via a paisagem. Nós éramos meia dúzia. Estava um dia bonito e dava pra ver praticamente tudo
até a Irlanda. Quando acabamos de comer, eu disse que queria tirar uma foto. Os meus amigos não paravam de
brincar e bagunçar e eu continuava andando pra trás, tentando enquadrar todo mundo. Então uma das moças —
Arabella, a minha melhor amiga na época — parou de tentar pôr chifrinhos no parceiro e berrou: “Para, Linda, para!”
Eu pareie olheiem volta. Sabe o que eu vi?
Jackie fezque não.
— O oceano Atlântico. Eu tinha recuado até o precipício na beirada da área de piquenique. Tinha uma placa
avisando, mas nenhuma cerca nem parapeito. Mais um passo e eu teria caído. E o jeito como eu me senti lá foi o
jeito como eu me sentiaqui.
— Lin, estava vazio.
— Acho que não. E acho que você também acha.
— Era mesmo muito estranho. Masnósolhamosas salas...
— O estúdio, não. Além disso, a televisão tava ligada, e a música, alta demais. Acha que eles deixam sempre tão
alta assim?
— Como é que eu vou saber o que os fanáticos religiosos fazem? — perguntou Jackie. — Talvez estivessem
esperando o Apocalipe.
— Lipse.
— Pode ser. Quer verificar o depósito?
— De jeito nenhum — disse Linda, e isso fez Jackie dar um risinho debochado.
— Certo. O relatório é nenhum sinaldo reverendo, certo?
— Certo.
— Então vamospra cidade. E pro café.
Antes de entrar no banco do carona da Unidade 2, Linda deu mais uma olhada no prédio do estúdio, ali envolto
em chatíssima alegria radiofônica. Não havia outros sons; ela percebeu que não escutava nenhum passarinho cantar, e se perguntou se todos tinham se suicidado, jogando-se na Redoma. Claro que isso não era possível. Ou era?
Jackie apontou o microfone.
— Quer que eu chame alguém pelo alto-falante? Dizendo que, se tiver alguém escondido aí, é melhor que vá
direto pra cidade? Porque... acabeide pensar nisso... podem estar com medo da gente.
— O que eu quero é que você pare de zanzar por aquie que a gente vá embora.
Jackie não discutiu. Desceu de ré a entradinha curta até a Bostinha e seguiu com o carro na direção de Mill.
O tempo passou. A música religiosa tocou. Norman Drake voltou e anunciou que eram 9h34, Horário de Verão
Deus Te Ama. Isso foi seguido por um anúncio dos Carros Usados de Jim Rennie, com a voz do segundo vereador
em pessoa. “É a nossa Liquidação Espetacular de Outono, e, rapaz, veja só quantos carros nós temos!”, disse Big
Jim com uma voz tristonha de eu-é-que-me-dou-mal. “Temos Fords, Chevrolets, Plymouths! Temos um raro Dodge
Ram e um Mustang mais raro ainda! Pessoal, tenho um, dois, não, três Mustangs que parecem novos, um deles o
famoso conversível V6, e todos com a famosa Garantia Cristã de Jim Rennie. Cuidamos do que vendemos,
financiamos e fazemos tudo a preço baixo. E agora” — ele deu uma risadinha mais triste do que nunca — “Temos
que limpar o PÁTIO! Então venham! A cafeteira está sempre ligada, amigo, comprar com Big Jim é gostoso assim!”
Uma porta que nenhuma das duas notara se abriu nos fundos do estúdio. Lá dentro havia mais luzes piscantes —
toda uma galáxia. A sala era pouco mais que um cubículo lotado de fios, derivadores, roteadores e caixas
eletrônicas. Dava para achar que não havia lugar para um homem. Mas o Chef era mais do que magro; era
emaciado. Os olhos eram apenas faíscas afundadas no crânio. A pele era pálida e manchada. Os lábios se
dobravam frouxos para dentro sobre gengivas que tinham perdido quase todos os dentes. A camisa e as Calças
estavam imundas, e os quadris eram asas fluas; agora, os dias de cueca do Chef tinham ficado na lembrança.
Dificilmente Sammy Bushey reconheceria o marido desaparecido. Numa das mãos, segurava um sanduíche de
geleia e manteiga de amendoim (agora só podia comer coisas macias) e, na outra, uma Glock9mm.
Foi até a janela que dava para o estacionamento, pensando em correr até lá e matar as intrusas se ainda
estivessem ali; quase o fizera quando estavam lá dentro. Só que ficara com medo. Porque na verdade não se pode
matar demônios. Quando seus corpos humanos morriam, bastava voar para outro hospedeiro. Quando estavam
entre corpos, os demônios pareciam melros-pretos. Chef vira isso em sonhos muito reais que vinham nas ocasiões
cada vez mais rarasem que dormia.
Maselas tinham ido embora. O seu atmã fora forte demaispara elas.
Rennie lhe dissera que tinha que ficar trancado lá nos fundos, e Chef Bushey ficara, mas talvez tivesse que ligar
de novo um dos panelões, porque na semana passada houvera uma grande remessa para Boston e estavam quase
sem estoque. Ele precisava fumar. Era disso que o seu atmã se alimentava hoje em dia.
Mas por enquanto era suficiente. Ele abrira mão do blues tão importante para ele na época de Phil Bushey — B.
B. King, Koko e Hound Dog Taylor, Muddy e Howlin’ Wolf, até o imortal Little Walter — e desistira de trepar;
praticamente desistira de usar o intestino, estava com prisão de ventre desde julho. Mas tudo bem. O que humilhava
o corpo alimentava o atmã.
Ele conferiu mais uma vez o estacionamento e a estrada mais além para garantir que os demônios não estavam
escondidose, depois, enfiou a automática nas costasdo cinto e seguiu para o depósito, que hoje em dia, na verdade,
era maisuma fábrica. Uma fábrica que estava fechada, masele podia mudar isso e mudaria se necessário.
Chef foibuscar o cachimbo.
Rusty Everett olhava o depósito atrás do hospital. Usava uma lanterna, porque ele e Ginny Tomlinson — agora
chefe administrativa dos serviços médicos de Chester’s Mill, por mais louco que isso fosse — decidiram apagar a luz
de todasas instalaçõesque não precisassem absolutamente de iluminação. À esquerdasno seu abrigo, ele escutava
o grande gerador rugindo, comendo cada vez mais fundo o atual cilindro comprido de gás.
A maior parte dos cilindros sumiu, dissera Twitch, e por Deus, sumido mesmo. De acordo com a ficha na porta,
devia haver sete, mas só há dois.
Nisso, Twitch estava errado. Só havia um. Rusty passou o facho da lanterna pelo CR HOSP azul pintado com
estêncilna lateralprateada do tanque, abaixo do logotipo da empresa de entregas Dead River.
— Eu falei — disse Twitch atrásdele, fazendo Rustypular.
— Falou errado. Só tem um.
— Bobagem! — Twitch passou pela porta. Olhou enquanto Rusty passava o facho da lanterna, iluminando caixas
de suprimentos cercando uma área centralgrande, e grandemente vazia. E disse: — Não é bobagem.
— Não.
— Líder destemido, alguém está roubando o nosso gás.
Rustynão queria acreditar nisso, masnão havia outra explicação.
Twitch se acocorou.
— Olha aqui — Rusty se apoiou no joelho. O terreno atrás do hospital fora asfaltado no verão anterior e, sem o
tempo frio para rachá-lo ou fazê-lo ceder, ao menos, ainda não, a área era um lençol preto e liso. Era fácil ver o
rastro de pneusdiante dasportasde correr do depósito.
— Parece que foium caminhão-guincho — observou Twitch.
— Ou qualquer outro caminhão grande.
— Ainda assim, talvez seja bom verificar o depósito atrás da Câmara de Vereadores. Twitch não confia no Grande
Chefe Rennie. Ele ser mau.
— Por que levaria o nosso gás? Os vereadores têm bastante por lá. Foram até a porta que dava para a lavanderia
do hospital, também fechada, ao menospor enquanto. Havia um banco ao lado da porta. Um cartaz colado nos tijolos
dizia FUMAR AQUI SERÁ PROIBIDO A PARTIR DE 1º DE JANEIRO. PARE AGORA E EVITE A CORRERIA!
Twitch puxou os Marlboros e os ofereceu a Rusty Este os rejeitou, depois pensou melhor e aceitou um. Twitch os
acendeu.
— Como sabe? — perguntou.
— Como seio quê?
Que eles têm bastante gás. Você foiolhar?
Não — disse Rusty — Mas se iam roubar, por que de nós? Além de gente fina achar que roubar do hospital localé
falta de educação, a agência do Correio está logo aquiao lado. Lá também deve ter.
— Talvez Rennie e os amigos já tivessem roubado o gás do Correio. Quanto teriam, de qualquer modo? Um
cilindro? Dois? Migalhas.
— Não entendo por que precisaram. Não faz sentido.
— Nada disso faz nenhum sentido — disse Twitch, e deu um bocejo tão imenso que Rusty escutou os maxilares
estalarem.
— Você terminou o seu turno, não é? — Rusty teve um momento para pensar na característica surreal daquela
pergunta. Desde a morte de Haskell, Rusty se tornara o médico-chefe, e Twitch, enfermeiro há apenas três dias, era agora o que Rusty fora: auxiliar médico.
— É. — Twitch suspirou. — O sr. Cartynão vai viver até o fim do dia.
Rusty pensara a mesma coisa sobre Ed Carty, que sofria de câncer terminal no estômago, uma semana atrás, e
ainda se aguentava.
— Em coma?
— Exato, sensei.
Twitch podia contar os outros pacientes nos dedos de uma das mãos — o que, como Rusty sabia, era uma sorte
extraordinária. Achou que talvezaté se sentisse privilegiado se não estivesse tão cansado e com tanta preocupação
— George Werner eu consideraria estável.
Werner, morador de Eastchester, 60 anos e obeso, sofrera um enfarte no Dia da Redoma. Rusty pensou que
sobreviveria... desta vez.
— Quanto a Emily Whitehouse... — Twitch deu de ombros. — Não é bom, sensei.
Emmy Whitehouse, 40 anos e sem um quilo a mais, sofrera o seu enfarte uma hora mais ou menos depois do
acidente de Rory Dinsmore. Fora muito pior do que o de George Werner, porque ela era maníaca por exercícios e
sofrerra o que o dr. Haskell chamava de “explosão de academia”.
— A menina Freeman está melhorando, Jimmy Sirois está se aguentando e Nora Coveland está superlegal. Alta
depoisdo almoço. No total, não é tão ruim assim.
— Não — disse Rusty —, mas vai piorar, garanto. E... se você uma lesão catastrófica na cabeça, ia querer que eu
operasse você?
— Claro que não — disse Twitch. — Fico torcendo pro Gregory House aparecer.
Rusty apagou o cigarro na lata e olhou o depósito quase vazio. Talvez devesse dar uma olhada no depósito atrás
da Câmara de Vereadores... que mal faria?
Dessa vez, foiele que bocejou.
— Quanto tempo você aguenta? — perguntou Twitch. Toda a caçoada sumira da sua voz. — Só pergunto porque
agora a cidade só tem você.
— Quanto for preciso. O que me preocupa é ficar tão cansado que acabe cometendo erros. E enfrentar coisas
muito além da minha capacidade. — Pensava em Rory Dinsmore... e em Jimmy Sirois. Pensar em Jimmy era pior
que Roryagora estava além da possibilidade de erros médicos. Jimmy, por outro lado...
Rusty se viu de volta à sala de cirurgia, escutando o bipe suave do equipamento. Viu-se olhando a perna nua e
pálida de Jimmy, com uma linha preta desenhada no lugar onde teria que cortar. Pensou em Dougie Twitchell
experimentando o seu talento de anestesista. Sentiu Ginny Tomlinson pôr um bisturi na sua mão enluvada e depois
olhá-lo por cima da máscara com aquelesolhos friose azuis.
Que Deus me poupe disso, pensou.
Twitch pôsa mão no braço de Rusty.
— Calma — disse ele. — Um dia de cada vez.
— Caralho, uma hora de cada vez — disse Rustye se levantou. —Tenho que ir ao Posto de Saúde, ver o que está
havendo por lá. Graças a Cristo isso não aconteceu no verão; teríamos nas mãos 3 mil turistas e 700 crianças no
acampamento.
— Quer que eu vá?
Rusty fezque não..
— Dá uma olhada de novo no Ed Carty tá? Pra ver se ele ainda está na terra dos vivos.
Rusty deu mais uma olhada no depósito; depois, contornou a quina do prédio e andou na diagonal rumo ao Posto
de Saúde, do outro lado da rua Catherine Russell.
É claro que Ginny estava no hospital; ela daria ao novo pacote de alegria da sra. Coveland uma última pesada antes de mandar os dois para casa. A recepcionista de plantão no Posto de Saúde era Gina Buffalino, de 17 anos,
com exatamente seis semanas de experiência clínica. Como desembrulhadora de balas. Quando Rusty entrou, ela
deu uma olhada de bicho no meio da estrada que fez o coração dele se apertar, mas a sala de espera estava vazia,
e isso era bom. Muito bom.
— Alguma ligação? — perguntou Rusty
— Uma. A sra. Venziano, lá na estrada Serra Negra. O bebê ficou com a cabeça presa na grade do chiqueirinho.
Ela queria uma ambulância. Eu... eu disse a ela pra passar azeite na cabeça do bebê e ver se conseguia tirar ele
assim. Deu certo.
Rusty sorriu. Talvez ainda houvesse esperança para esse bebê. Gina, parecendo divinamente aliviada, sorriu de
volta.
— Ao menoso lugar está vazio — disse Rusty. — O que é ótimo.
— Vazio, não. A sra. Grinnell está aqui... Andrea? Eu pedi que ficasse na três. — Gina hesitou. — Ela parecia
muito nervosa.
O coração de Rusty, que já se animava, afundou de novo. Andrea Grinnell. Nervosa, O que significava que queria
aumentar a receita de OxyContin. Que ele, em sã consciência, não poderia lhe dar, mesmo supondo que Andy
Sanders tivesse estoque suficiente para lhe vender.
— Certo. — Ele seguiu para a sala de exames número três, no corredor, parou e olhou para trás. — Você não me
mandou mensagem.
Gina corou.
— Ela pediu especificamente que não mandasse.
Isso deixou Rusty intrigado, mas só um segundo. Andrea podia ter um problema com remédios, mas não era
burra. Sabia que, se estivesse no hospital, provavelmente Rustyestaria com Twitch. E por acaso Dougie Twitchellera
o irmão caçula dela, que mesmo com 39 anos tinha que ser protegido dos fatos ruinsda vida.
Rusty parou na porta com o 3 preto decalcado, tentando se recompor. Ia ser difícil. Andrea não era um dos
alcoólatras desafiadores que afirmavam que o álcool não fazia parte dos seus problemas de jeito nenhum; nem era
um dos viciados em metanfetamina que vinham surgindo com frequência cada vez maior no último ano. A
responsabilidade de Andrea pelo seu problema era mais difícil de identificar, e isso complicava o tratamento. Sem
dúvida ela sentira muita dor depois da queda. O Oxy fora a melhor coisa para ela e lhe permitira aguentar a dor para
dormir e começar a terapia. Não foi culpa dela se o remédio que lhe permitia isso era aquele que os médicos às
vezes chamavam de heroína de caipira.
Ele abriu a porta e entrou, ensaiando a recusa. Gentil, mas com firmeza, disse a si mesmo. Gentil, mas com
firmeza.
Ela estava sentada na cadeira do canto debaixo do cartaz sobre colesterol, joelhos unidos, a cabeça baixa sobre a
bolsa no colo. Era uma mulher grande que agora parecia pequena. De certa forma, diminuída. Quando ergueu a
cabeça para olhá-lo e ele viu como o rosto dela estava exausto — as linhas fundas cercando a boca, a pele das
olheiras quase preta —, mudou de idéia e decidiu afinal redigir a receita num dos blocos cor-de-rosa do dr. Haskell.
Talvez depois que a crise da Redoma acabasse ele tentasse levá-la para um programa de desintoxicação; podia
ameaçar contar ao irmão, se preciso fosse. Agora, no entanto, daria o que ela precisava. Porque raramente a vira
tão acabada.
— Eric... Rusty... Eu estou numa encrenca.
— Eu sei. Dá pra ver. Vou te passar uma...
— Não! — Ela o olhava quase com horror. — Nem que eu implore! Sou viciada em drogas e tenho que me livrar!
Não passo de uma maldita viciada! — O rosto dela se dobrou sobre si mesmo. Ela tentou forçá-lo a se endireitar,
mas não conseguiu. Então, pôs as mãos por cima. Grandes soluços contorcidos e difíceis de escutar lhe passaram pelosdedos.
Rusty foiaté ela, ajoelhou-se e a envolveu com o braço.
— Andrea, é bom que queira parar, é excelente, mas talveznão seja a melhor hora...
Ela o olhou com olhos vermelhos, as lágrimasescorrendo.
— Tem razão, é a pior hora, mas tem que ser agora! E você não pode contar pro Dougie nem pra Rose. Pode me
ajudar? Isso é possível? Porque eu não consegui, não sozinha. Aqueles odiosos comprimidos cor-de-rosa! Ponho
eles no armário dos remédios, digo “Hoje chega”, e uma hora depois estou tomando de novo! Nunca estive numa
situação assim, nunca na minha vida toda.
Ela baixou a voz, como se confessasse um grande segredo.
— Acho que não são mais as minhas costas, acho que é o meu cérebro mandando as costas doerem para eu
continuar tomando aquelas malditaspílulas.
— Por que agora, Andrea?
Ela só balançou a cabeça.
— Pode me ajudar ou não?
— Posso, mas se você está pensando em parar de vez, não faz isso. Em primeiro lugar, você pode...
Por um breve instante, ele viu Jannie tremendo na cama, balbuciando sobre a Grande Abóbora.
— Você pode ter convulsões.
Ela não registrou isso ou não deu importância.
— Quanto tempo?
— Pra superar a parte física? Duas semanas. Talvez três. — E isso se for acelerado, pensou, masnão disse.
Ela lhe agarrou o braço. A mão estava muito fria.
— Lento demais.
Uma idéia extremamente desagradável surgiu na mente de Rusty Talvez apenas paranoia transitória causada pelo
estresse, mas convincente.
— Andrea, alguém está chantageando você?
— Está brincando? Todo mundo sabe que eu tomo esses comprimidos, a cidade é pequena. — O que, para Rusty,
na verdade não respondia à pergunta. — Qualo tempo mais curto possível?
— Com injeçõesde B2, mais tiamina e vitaminas, você pode conseguir em dezdias. Mas vai se sentir horrível. Não
vai conseguir dormir, vai ter síndrome de pernas inquietas. E não vai ser leve; o termo não é “chutar o vício” à toa. E
vai precisar de alguém pra te dar doses reduzidas, alguém que guarde os comprimidos e não entregue a você
quando pedir. Porque você vaipedir.
— Dez dias? — Ela pareceu esperançosa. — E até lá isso pode ter acabado também, não é? Essa coisa da
Redoma?
— Talvezhoje à tarde. É o que todosnósesperamos.
— Dezdias — disse ela.
— Dezdias.
E, pensou ele, você vaidesejar essa coisa maldita pelo resto da vida. Mas isso ele também não disse em voz alta.
O Rosa Mosqueta estivera movimentadíssimo para uma manhã de segunda-feira... mas é claro que nunca houve
uma manhã de segunda-feira como aquela na história da cidade. Ainda assim, os fregueses foram embora de boa
vontade quando Rose anunciou que a chapa estava desligada e que só voltaria a ligá-la às cinco da tarde.
— Até lá, talvez vocês todos possam jantar no Moxie, em Castle Rock! — terminou ela. Isso gerou aplausos
espontâneos, ainda que o Moxie fosse um famoso poço imundo de gordura.
— Sem almoço? — perguntou Ernie Calvert.
Rose olhou Barbie, que ergueu as mãosaté o ombro. Não me pergunte.
— Sanduíches — disse Rose. — Até acabar.
Isso gerou mais aplausos. Todos pareciam surpreendentemente animados naquela manhã; houve risos e
zombarias. Talvezo melhor sinalda melhora da saúde mentalda cidade estivesse nos fundosdo restaurante, onde a
mesa do papo furado reabrira a sessão.
A TV sobre o balcão, agora ligada direto na CNN, era boa parte da razão. Os locutores tinham pouco a divulgar
além de boatos, mas a maioria deles estava esperançosa. Vários cientistas entrevistados disseram que havia uma
boa probabilidade de o Cruise passar e dar fim à crise. Um deles estimou a probabilidade de sucesso como “mais do
que 80%”. Masé claro que ele está no MIT, em Cambridge, pensou Barbie. Pode se dar ao luxo de ser otimista.
Agora, enquanto raspava a chapa, bateram à porta. Barbie virou-se para olhar e viu Julia Shumway com três
crianças amontoadas em volta. Faziam com que ela parecesse uma professora de oitava série num passeio no
campo. Barbie foiaté a porta, enxugando as mãosno avental.
— Se deixarmos entrar todo mundo que quer comer, os mantimentos acabam num instante — disse Anson,
irritado, enquanto limpava as mesas. Rose fora ao Food City comprar mais carne.
— Acho que ela não quer comer — disse Barbie, e estava certo.
— Bom dia, coronel Barbara — disse Julia com o seu sorrisinho de Mona Lisa. — Vivo com vontade de chamar
você de major Barbara. Como na...
— Na peça, eu sei. — Barbie já ouvira isso algumas vezes. Umas10 mil. — Essa é a sua milícia?
Um dos meninos era altíssimo e magérrimo, com um chumaço de cabelo castanho-escuro; outro era um baixinho
de bermudas largas e uma camiseta desbotada do 50 Cent; a terceira era uma mocinha bonita com um raio na
bochecha. Um decalque e não uma tatuagem, mas ainda lhe dava um certo savoir-faire. Ele percebeu que, se lhe
dissesse que ela parecia uma versão colegialde Joan Jett, ela não saberia do que ele estava falando.
— Norrie Calvert — disse Julia, tocando o ombro da fera. — Benny Drake. E esse copo d’água fino e comprido é
Joseph McClatchey. A manifestação de protesto de ontem foi ideia dele.
— Maseu não queria que ninguém se machucasse — disse Joe.
— E não foipor culpa sua que se machucaram — retrucou Barbie. — Fica frio.
— É você mesmo que manda no galinheiro? — perguntou Benny, olhando-o de cima a baixo.
Barbie riu.
— Não — disse ele. — Não vou nem tentar mandar no galinheiro, a menosque seja absolutamente necessário.
— Mas você conhece os soldados lá fora, não é? — perguntou Norrie.
— Pessoalmente, não. Pra começar, são fuzileirosnavais. Eu era do Exército.
— Segundo o coronel Cox, você ainda é do Exército — disse Julia. Usava o sorrisinho frio, mas os olhos
dançavam de empolgação. — Podemos conversar? O jovem sr. McClatchey teve uma ideia e eu achei brilhante. Se
der certo.
— Vaidar certo — disse Joe. — Quando se trata de mer... coisasde computador, eu é que mando no galinheiro.
— Vamosaté o escritório — disse Barbie, e osescoltou até o balcão.
Era brilhante, isso era, mas já eram dez e meia e, se queriam mesmo que aquilo acontecesse, teriam que correr.
Ele se virou para Julia.
— Está com o seu cel...
Julia o colocou habilmente na palma da mão dele antesque terminasse.
— O número do Coxestá na memória.
— Ótimo. Agora, se eu soubesse acessar a memória...
Joe pegou o telefone.
— De onde você veio, da Idade das Trevas?
— Isso! — respondeu Barbie. — Quando os cavaleiros eram corajosos e as belas damas andavam sem roupa de
baixo.
Norrie riu muito com isso e, quando ergueu a mão fechada, Barbie bateu o seu punho grande no pequeno punho
dela.
Joe apertou algunsbotõesno teclado minúsculo. Escutou e depoisentregou o celular a Barbie.
Cox devia estar sentado com a mão no fone, porque já estava falando quando Barbie pôs o celular de Julia no
ouvido.
— Como vai, coronel? — perguntou Cox.
— Basicamente, ok.
— Já é um bom começo.
Pra você é fácil falar, pensou Barbie.
— Imagino que tudo ficará basicamente okaté o míssil ricochetear ou passar e causar muitosdanosà floresta e às
fazendasdo nosso lado, o que os cidadãosde Chester’s Mill vão adorar. O que vocêsacham?
— Não sei. Ninguém está fazendo previsões.
— Não é o que nósestamosouvindo na TV.
— Não tenho tempo de acompanhar os apresentadores. — A voz de Cox indicava a Barbie que ele estava dando
de ombros. — Estamosesperançosos. Achamosque vai ser um tiro certeiro. Pra cunhar uma expressão.
Julia abria e fechava as mãosnum gesto de E daí?
— Coronel Cox, estou aqui sentado com quatro amigos. Um deles é um rapaz chamado Joe McClatchey que teve
uma idéia muito boa. Vou passar o telefone pra ele agora... — Joe balançava a cabeça negativamente com força
suficiente para fazer o cabelo voar. Barbie não lhe deu atenção. — ... pra ele explicar. — E entregou o celular a Joe.
— Fala — disse.
— Mas...
— Não discute com o chefe do galinheiro, meu filho. Fala.
Joe falou, a princípio com vergonha, com muitos ahs e hãs e sabe, mas conforme a ideia tomava conta dele, se
apressou, ficou mais articulado. Depois, escutou. Dali a pouco, começou a sorrir. Alguns instantes mais tarde, disse:
“Sim, senhor! Obrigado, senhor!” e devolveu o celular a Barbie.
— Olha, vão tentar aumentar a nossa wi-fi antes de atirar o míssil! Caralho, isso é quente! — Julia lhe segurou o
braço e Joe disse: — Desculpa, sra. Shumway, eu quisdizer caramba!
— Isso não importa, você consegue mesmo fazer a coisa funcionar?
— Tá brincando? De boa.
— Coronel Cox? — perguntou Barbie. — É verdade isso sobre a internet?
— Não podemos impedir nada que vocêsaí queiram tentar — disse Cox.
— Acho que foi você quem me fez ver isso. Portanto, também podemos ajudar. Vocês terão a internet mais rápida
do mundo, ao menoshoje. Você tem um garoto bem inteligente aí, aliás.
— Sim, senhor, foi essa a minha impressão — disse Barbie, e mostrou a Joe o polegar levantado. O garoto
resplandecia.
— Se a idéia do menino der certo e você gravar — disse Cox —, vê se nos manda uma cópia. É claro que nós
vamos fazer a nossa gravação, mas os cientistas encarregados dessa coisa vão querer ver como fica o choque do
seu lado da Redoma.
— Acho que podemos fazer melhor do que isso — disse Barbie. — Se Joe conseguir montar tudo, acho que quase
toda a cidade vai ser capazde assistir ao vivo.
Dessa vez, foi Julia que ergueu o punho. Sorrindo, Barbie bateu com o dele.
Mas que meeerda — disse Joe. O espanto no seu rosto o deixou com cara de 8 anos em vez de 13. A confiança
de chicote sumira da sua voz. Ele e Barbie estavam em pé a uns 30 metros de onde a estrada da Bostinha corria
contra a Redoma. Não era para os soldados que olhava, embora eles tivessem se virado para observar; o que o
fascinou foia faixa de alerta e o grande X vermelho Pintado na Redoma com tinta spray.
— Estão mudando o lugar do bivaque, ou sei lá como vocêsdizem — Comentou Julia. — Asbarracas sumiram.
— Claro. Em cerca de... — Barbie olhou o relógio — noventa minutos, vai ficar bem quente por lá. Filho, é melhor
pôr mãosà obra.
Masagora que estavam realmente ali, na estrada deserta, Barbie começou a duvidar que Joe pudesse fazer o que
prometera.
— É, mas... tá vendo asárvores?
A princípio, Barbie não entendeu. Olhou Julia, que deu de ombros. Então Joe apontou, e ele viu. As árvores do
lado de Tarker dançavam com um vento moderado de outono, soltando folhas em jorros coloridos a flutuar em torno
dos fuzileiros de sentinela que observavam. No lado de Mill, os galhos mal se mexiam e a maioria das árvores ainda
estava com a folhagem completa. Barbie tinha quase certeza de que passava ar pela barreira, mas não com força. A
Redoma amortecia o vento. Ele se lembrou de quando ele e Paul Gendron, o sujeito com boné dos Sea Dogs,
chegaram ao riachinho e viram a água se amontoar.
— As folhas lá, veja... — disse Julia. — Não sei... apáticas sei lá. Moles.
— É porque eles têm vento do lado deles e nós, só uma baforada de brisa — disse Barbie, e depois se perguntou
se era isso mesmo. Ou só isso. Mas de que adiantava especular sobre a qualidade atual do ar de Chester’s Mill, se
não havia nada que pudessem fazer?
— Vamos, Joe. Faz o seu serviço. — Tinham passado pela casa dos McClatchey no Prius de Julia para pegar o
PowerBook de Joe. (A sra. McClatchey fizera Barbie jurar que cuidaria da segurança do filho, e Barbie assim jurara.)
Agora, Joe apontava a estrada.
— Aqui?
Barbie ergueu as mãosaté o lado do rosto e olhou o X vermelho.
— Um pouco à esquerda. Dá pra experimentar? Ver como está?
— Dá. — Joe abriu o PowerBook e o ligou. O som de carrilhão do Mac ao ligar soou bonito como sempre, mas
Barbie achou que nunca vira nada tão surreal quanto o computador prateado pousado no asfalto remendado da
estrada da Bostinha com a tela para cima. Parecia resumir com perfeição osúltimos trêsdias.
— A bateria está cheia, e deve funcionar pelo menos seishoras — disse Joe.
— Não vaidormir? — perguntou Julia.
Joe lhe deu um olhar indulgente de Mãe, por favor. Depois, se virou para Barbie.
— Se o míssilassar o meu Pro, promete me comprar outro?
— O Tio Sam te compra outro — prometeu Barbie. — Eu mesmo faço a requisição.
— Massa. — Joe se curvou sobre o PowerBook. Havia um barrilzinho prateado no alto da tela. Joe lhes dissera
que aquilo era algum milagre computadorizado atual chamado iSight. Passou o dedo no touchpad do computador,
teclou ENTER e, de repente, a tela se encheu com uma imagem brilhante da estrada da Bostinha. No nível do solo,
cada lombadinha e cada irregularidade do asfalto pareciam uma montanha. A meia distância, Barbie conseguia ver,
até os joelhos, os fuzileirosde sentinela.
— Senhor, ele tem a imagem, senhor? — perguntou um deles.
Barbie ergueu osolhos.
— Digamos assim, fuzileiro... Se eu estivesse fazendo uma inspeção, você estaria fazendo flexões com o meu pé
na sua bunda. Tem um arranhão na sua bota esquerda. Inaceitávelnuma missão que não é de combate.
O fuzileiro olhou a bota, que estava mesmo arranhada. Julia riu. Joe, não. Estava absorto.
— Está baixo demais. Sra. Shumway, a senhora tem alguma coisa no carro que a gente possa usar pra... — Ele
ergueu a mão a maisou menosum metro de altura da estrada.
— Tenho — respondeu ela.
— E pega a minha sacolinha da academia, por favor. — Ele mexeu mais um pouco no PowerBook e depois
estendeu a mão. — Celular.
Barbie o entregou. Joe apertou osbotõezinhos com velocidade ofuscante. E depois:
— Benny? Ah, Norrie, ok. Vocês tão aí?... Ótimo. Aposto que nunca estiveram numa cervejaria. Prontos?
Excelente. Esperem. — Ele escutou, depois sorriu. — Tá brincando? Cara, pelo que estou vendo, a conexão é
fantástica. O wi-fi tá bombando. Vai voar. — Ele fechou o celular e o devolveu a Barbie.
Julia voltou com a sacola da academia de Joe e uma caixa de papelão contendo exemplares não distribuídos da
edição extra do Democrata de domingo. Joe pôs o PowerBook em cima da caixa de papelão (a elevação súbita da
imagem do níveldo chão deixou Barbie meio zonzo), conferiu e declarou que estava tudo pronto. Remexeu na sacola
da academia, tirou uma caixa preta com uma antena e a ligou no computador. Os soldados estavam agrupados do
outro lado da Redoma, observando com interesse. Agora sei como o peixe se sente no aquário, pensou Barbie.
— Parece tudo certo — murmurou Joe. — Sinal verde.
— Você não devia ligar pro...
— Se estiver funcionando, eles vão me ligar — disse Joe. E depois: — Oh, oh, temosproblemas.
Barbie pensou que se referia ao computador mas o garoto nem o olhava. Barbie seguiu os olhos de Joe e viu o
carro verde do chefe de polícia. Não vinha depressa masas luzespiscavam.
Pete Randolph saiu de trás do volante. Pelo lado do carona (o carro balançou um pouco quando o seu peso saiu
da suspensão), Big Jim Rennie emergiu.
— Que diabos vocêspensam que estão fazendo? — perguntou.
O telefone na mão de Barbie zumbiu. Ele o entregou a Joe sem tirar os olhos do vereador e do chefe de polícia
que se aproximavam.
A placa acima da porta do Dipper’s dizia BEM-VINDOS AO MAIOR SALÃO DE DANÇA DO MAINE!, e, pela
primeira vez na história da casa, aquele salão estava lotado às 11h45 da manhã. Tommy e Willow Anderson
recebiam à porta quem chegava, um pouco como os ministros que recebem paroquianos na igreja. Nesse caso, a
Primeira Igreja das Bandasde Rock Diretamente de Boston.
A princípio a platéia ficou em silêncio, porque na grande tela só havia uma palavra azul: ESPERA. Benny e Norrie
tinham ligado o seu equipamento e passado a recepção da TV para Input 4. Então, de repente, a estrada da
Bostinha apareceu ao vivo, até com as folhas coloridas regirando em torno dos fuzileirosde sentinela.
A multidão explodiu em gritose aplausos.
Benny e Norrie bateram as mãos abertas, mas para Norrie isso não bastou; ela o beijou na boca, e com força. Foi
o momento mais felizda vida de Benny, melhor ainda do que ficar na verticalpor um fullpipe.
— Liga pra ele! — exigiu Norrie.
— Agora mesmo — respondeu Bennie. O rosto ardia como se fosse pegar fogo, masele sorria. Apertou REDIAL e
pôso telefone no ouvido. — Cara, conseguimos! A imagem é tão radicalque...
Joe interrompeu.
— Houston, temosum problema.
— Não sei o que vocês pensam que estão fazendo — disse o chefe Randolph —, mas quero uma explicação e,
antesdela, essa coisa desligada. — Ele apontou o PowerBook.
— Sinto muito, senhor — disse um dos fuzileiros. Usava a divisa de segundo tenente. — Esse é o coronel Barbara
e ele tem aprovação oficialdo governo para esta operação.
A isso, Big Jim deu o seu sorriso mais sarcástico. Uma veia do pescoço pulsava.
— Esse homem só é coronelde baderneiros. Ele cuida da cozinha do restaurante local.
— Senhor, as minhasordens...
Big Jim sacudiu o dedo para o segundo tenente.
— Em Chester’s Mill, o único governo oficial que reconhecemos agora é o nosso, soldado, e eu sou o
representante. — Ele se virou para Randolph. — Chefe, se esse garoto não desligar, puxe a tomada.
— Não estou vendo nenhuma tomada — respondeu Randolph. Ele olhava de Barbie para o segundo tenente dos
fuzileirose para Big Jim. Começara a suar.
— Então enfia a bota na maldita tela! Apaga isso!
Randolph deu um passo à frente. Joe, com cara de assustado masdecidido, ficou na frente do PowerBook sobre a
caixa de papelão. Ainda estava com o celular na mão.
— É melhor não fazer isso! Ele é meu e não estou fazendo nada ilegal!
— Volta, chefe — disse Barbie. — É uma ordem. Se o senhor ainda reconhece o governo do país onde mora, vai
obedecer.
Randolph olhou em volta.
— Jim, talvez...
— Talveznada — disse Big Jim. — Agora, aquié o paísonde você mora. Apaga esse computador melequento.
Julia avançou, agarrou o PowerBook e o virou para que a câmera iVision captasse os recém-chegados.
Tentáculos de cabelo tinham escapado do seu coque profissional e pendiam sobre as faces rosadas. Barbie achou
que ela estava lindíssima.
— Pergunta à Norrie se está vendo! — gritou para Joe.
O sorriso de Big Jim se congelou numa careta.
— Mulher, baixe isso!
— Pergunta se estão vendo!
Joe falou ao telefone. Escutou. E disse:
— Estão. Estão vendo o sr. Rennie e o policial Randolph. A Norrie dizque querem saber o que está acontecendo.
Houve desânimo na cara de Randolph; fúria na de Rennie.
— Quem quer saber? — perguntou Randolph.
— Montamosuma transmissão ao vivo para o Dipper’s... — respondeu Julia.
— Aquele antro do pecado! — disse Big Jim. Os punhos estavam cerrados. Barbie calculou que o homem
provavelmente pesava uns 50 quilos a mais, e fazia uma careta ao mover o braço direito, como se estivesse
contundido, mas parecia que ainda tinha forças. E agora parecia louco a ponto de bater... mas se nele, em Julia ou
no garoto Barbie não sabia. Talveznem Rennie.
— Todos estão se reunindo lá desde 11h15 — disse ela. — A notícia corre depressa. — Ela sorriu com a cabeça
inclinada de lado. Quer dar um alô ao seu eleitorado, Big Jim?
— É um blefe — disse Big um.
— Por que eu blefaria sobre algo tão fácil de verificar? — Ela se virou para Randolph. — Liga pra um dos seus
policiais e pergunta onde é a grande reunião da cidade agora de manhã. — E voltou a Jim. — Se desligar isso aqui,
centenas de pessoas vão saber que você os impediu de ver um evento que tem importância vital pra cidade. A vida
delesdepende disso, na verdade.
— Você não tem permissão!
Barbie, em geral muito bom para se controlar, sentiu a calma se desfazer. Não é que o homem fosse estúpido; era
óbvio que não. E era exatamente isso que deixava Barbie furioso.
— Qual é o seu problema exatamente? Está vendo algum perigo aqui? Porque não vejo nenhum. A ideia é ligar
essa coisa, deixar transmitindo e cair fora.
— Se o míssil não funcionar, pode causar pânico. Tudo bem uma coisa fracassar; ver fracassar é outra coisa bem
diferente. Podem fazer qualquer loucura.
— O senhor tem uma péssima opinião do povo que governa vereador. Big Jim abriu a boca para retorquir — algo
como E já foi justificada várias vezes, era a aposta de Barbie —, mas aí se lembrou de que boa parte da cidade
assistia ao confronto numa televisão de tela grande. Talvezem alta definição.
— Gostaria que tirasse esse sorriso sarcástico da cara, Barbara.
— Agora estamospoliciando expressões também? — perguntou Julia.
Joe Espantalho cobriu a boca, mas não antes que Randolph e Big Jim vissem o sorriso do garoto. E ouvissem a
risadinha que escapou por entre osdedos.
— Gente — disse o segundo tenente —, é melhor vocês saírem do local. O tempo está passando.
— Julia, vira essa câmera pra mim — disse Barbie.
Foio que ela fez.
O Dipper’s nunca estivera tão cheio, nem mesmo no show inesquecível do réveillon de 2009, com os Vatican Sex
Kittens. E nunca ficara tão silencioso. Mais de quinhentas pessoas estavam ali em pé, ombro a ombro, quadril a
quadril, assistindo à câmera do PowerBook Pro de Joe fazer uma curva de 45° e pousar em Dale Barbara.
— É o meu menino — murmurou Rose Twitchell, e sorriu.
— Olá, pessoal — disse Barbie, e a imagem era tão boa que várias pessoas responderam olá. — Sou Dale
Barbara e fui realistado como coroneldo Exército dos Estados Unidos.
Isso foi recebido com surpresa geral.
— Esse vídeo aqui na estrada da Bostinha é inteiramente de minha responsabilidade, e, como vocês devem ter
concluído, houve uma divergência de opiniões entre mim e o vereador Rennie sobre continuar ou não a transmissão.
— Dessa veza reação foi maisbarulhenta. E nada satisfeita.
— Não temos tempo de discutir detalhes do comando agora de manhã — continuou Barbie. — Vamos virar a
câmera para o ponto que o míssildeve atingir. Se a transmissão vai continuar ou não cabe à decisão do seu segundo
vereador. Se ele interromper a transmissão, a responsabilidade é dele. Obrigado pela atenção.
Ele saiu do enquadramento. Por um momento, a reunião no salão de baile viu apenasa floresta; depois, a imagem
girou de novo, baixou e se fixou no X flutuante. Além dele, as sentinelas carregavam o resto do equipamento em dois
caminhõesgrandes.
Will Freeman, proprietário e gerente da revendedora Toyota local (e nada amigo de James Rennie), falou
diretamente para a TV.
— Deixa pra lá, Jimmy, senão até o finalda semana vaihaver vereadoresnovosem Mill.
Houve um murmúrio geral de aprovação. Os moradores da cidade ficaram em silêncio, assistindo e esperando
para ver se o programa previsto — chato e insuportavelmente empolgante ao mesmo tempo — continuaria ou se a
transmissão seria interrompida.
— O que você quer que eu faça, Big Jim? — perguntou Randolph. Tirou um lenço do bolso da calça e limpou a
nuca.
— O que você quer fazer? — respondeu Big Jim.
Pela primeira vez desde que pegara as chaves do carro verde de chefe, Pete Randolph achou que adoraria
passar o cargo a outra pessoa. Suspirou e disse:
— Quero deixar pra lá.
Big um fez que sim, como se dissesse Então a culpa é sua. Depois, sorriu — isto é, se repuxar os lábios pode
ser assim descrito.
— Bom, você é o chefe. — Virou-se para Barbie, Julia e Joe Espantalho. — Fomos superados na manobra. Não
fomos, sr. Barbara?
— Posso garantir que não há nenhuma manobra acontecendo aqui, senhor — disse Barbie.
— Bos... bobagem. Essa é, pura e simplesmente, uma luta pelo poder. Já vi muito disso no meu tempo. Já vi dar
certo... e já vi dar errado. — Ele se aproximou de Barbie, ainda tomando cuidado com o braço direito dolorido. De
perto, Barbie conseguia sentir o cheiro de água de colônia e suor. Rennie respirava com força. Baixou a voz. Talvez
Julia não ouvisse o que veio depois. Mas Barbie, sim.
— Vocês estão todos na frigideira, filho. Cada fiapo. Se o míssil passar, você ganha. Se ricochetear... cuidado
comigo. — Por um momento, os seus olhos, quase enterrados nas dobras fundas de carne mas faiscando com
inteligência fria e clara, encontraram os de Barbie e os prenderam. Depois ele se virou. — Vamos, chefe Randolph.
Essa situação já está bastante complicada, graças ao sr. Barbara e aos seus amigos. Vamos voltar à cidade. É bom
estar com os soldadosa postosem caso de quebra-quebra.
— Essa é a coisa mais ridícula que já ouvi! — exclamou Julia.
Big Jim lhe abanou a mão sem se virar.
— Quer ir até o Dipper’s, Jim? — perguntou Randolph. — Temos tempo.
— Não ponho os pés naquele antro de meretrizes — disse Big Jim. Abriu a porta do carona do carro da polícia. —
O que eu quero é uma soneca. Mas não vai dar, porque há muito a fazer. Tenho grandes responsabilidades. Não
pedi, mas tenho.
— Alguns homens são grandes, outros têm a grandeza lançada sobre eles, não é isso, Jim? — perguntou Julia.
Ela estava com o seu sorriso frio.
Big Jim se virou para ela, e a expressão nua de ódio no seu rosto a fez dar um passo atrás. Depois, Rennie a
desdenhou.
— Vamos, chefe.
O carro voltou a Mill, as luzesainda piscando na luznebulosa e estranhamente de verão.
— Ufa — disse Joe. — Carinha assustador.
— Exatamente os meus sentimentos — disse Barbie.
Julia examinava Barbie, todosos vestígiosde sorriso sumidos.
— Você tinha um inimigo — disse ela. — Agora tem um inimigo visceral.
— Acho que você também.
Ela fezque sim.
— Pro bem de nósdois, torço para essa coisa do míssildar certo.
— Coronel Barbara, estamos indo embora — disse o segundo tenente. — Eu me sentiria muito melhor se visse os senhores irem também.
Barbie concordou e, pela primeira vezem anos, bateu continência.
Um B-52 que decolara da Base Aérea de Carswell nas primeiras horas daquela manhã de segunda-feira ficou de
prontidão acima de Burlington, Vermont, desde 10h40 (a Força Aérea acredita em chegar cedo ao baile sempre que
possível). A missão recebeu o codinome de ILHA GRANDE. O piloto e comandante era o major Gene Ray, que
servira nas guerras do Golfo e do Iraque (em conversas particulares, referia-se a esta última como “a puta exibição
de Big Dubya”). Tinha dois mísseis Cruise Fasthawk no compartimento de bombas. Era uma boa arma, o Fasthawk,
mais confiável e poderosa do que o velho Tornahawk, mas era muito estranho planejar o lançamento de um deles
com ogiva quente num alvo americano.
Às 12h53, uma luz vermelha do painel de controle se alaranjou. O piloto automático assumiu o controle do avião e
começou a colocá-lo em posição. Lá embaixo, Burlington sumiu sob asasas.
Ray falou ao microfone.
— É quase hora do show, senhor.
Em Washington, o coronel Cox respondeu:
— Câmbio, major. Boa sorte. Destrua a canalha.
— É o que vaiacontecer — disse Ray.
Às 12h54, a luz alaranjada começou a pulsar. Às 12h55, ficou verde. Ray ligou o interruptor marcado como 1. Não
houve nenhuma sensação, apenas um leve uuch vindo de trás, mas ele viu o Fasthawk começar o seu voo no vídeo.
Rapidamente, ele se acelerou até a velocidade máxima, deixando no céu um rastro como o arranhão de uma unha.
Gene Ray fezo sinalda cruz, terminando com um beijo na base do polegar. “Vá com Deus, meu filho”, disse.
A velocidade máxima do Fasthawk era de 5.600kmIh. A 80km do alvo — cerca de 50km a oeste de Conway, New
Hampshire, e agora no lado leste das montanhas Brancas — o computador calculou e depois autorizou a
aproximação final. Na descida, a velocidade do míssil caiu de 5.600km/h para 3.000km/h. Ele seguia a rodovia 302,
que é a rua principal de North Conway. Os pedestres ergueram os olhos inquietos quando o Fasthawk passou por
cima.
— Esse jato não está baixo demais? — perguntou uma mulher no estacionamento do Settlers Green Outlet Village
à sua colega de compras, protegendo os olhos. Se o sistema de direção do Fasthawk pudesse falar, teria dito: “Você
ainda não viu nada, doçura.”
O míssil passou pela fronteira entre o Maine e New Hampshire a 900 metros de altura, provocando uma explosão
sônica que rilhou dentes e quebrou janelas. Quando percebeu a rodovia 119, o sistema de orientação passou
primeiro para 300 metros de altitude, depois para 150. Nisso o computador funcionava a toda, colhendo dados do
sistema de orientação e fazendo mil correçõesde trajetória por minuto.
Em Washington, o coronel James O. Coxdisse:
— Aproximação final, gente. Segurem a dentadura.
O Fasthawk achou a estrada da Bostinha e caiu quase ao nível do solo, ainda voando a uma velocidade de quase
Mach 2, lendo todos os morros e curvas, o rastro ardendo com brilho demais para se olhar, deixando na sua esteira
um fedor venenoso de propelente. Arrancou folhas de árvores, chegou a pôr fogo em algumas. Implodiu uma
barraquinha de beira de estrada em Tarker’s Hollow, fazendo tábuas e abóboras esmagadas voarem para o céu.
Seguiu-se a explosão, fazendo pessoas se jogarem no chão com as mãos sobre a cabeça.
Isso vaidar certo, pensou Cox. Como não daria?
No Dipper’s, havia agora oitocentaspessoasamontoadas. Ninguém falava, embora os lábiosde Lissa Jamieson se
movessem em silêncio enquanto ela rezava para qualquer alma superior da Nova Era que estivesse então lhe
exigindo atenção.
Segurava um cristalnuma das mãos; a reverenda Piper Libby segurava contra os lábioso crucifixo da mãe.
— Aí vem ele — disse Ernie Calvert.
— Onde? — perguntou Marty Arsenault. — Não vejo na...
— Escutem! — exclamou Brenda Perkins.
Eleso ouviram chegar: um hum sobrenaturale cada vez maior, vindo do lado oeste da cidade, um mmmm que em
segundos virou MMMMMM. Na grande tela da TV, não viram quase nada até meia hora depois, bem depois que o
míssil fracassara. Para os que ainda estavam no bar de beira de estrada, Benny Drake conseguiu retardar a
gravação até avançá-la quadro a quadro. Viram o míssil vir deslizando pela curva da Bostinha. Estava a no máximo
1,20m do chão, quase beijando a própria sombra. No quadro seguinte, o Fasthawk, com uma ogiva bélica de
fragmentação projetada para explodir com o contato, ficou parado no meio do ar onde antes havia o bivaque dos
fuzileiros.
Nos quadros seguintes, a tela se encheu de um branco tão brilhante que os espectadores protegeram os olhos.
Então, quando o branco começou a desbotar, viram os fragmentos do míssil — muitíssimos travessões pretos contra
a explosão que se reduzia — e uma imensa marca queimada onde havia antes o X vermelho. O míssil atingira
exatamente o alvo.
Depois disso, o povo no Dipper’s viu a floresta do lado de fora da Redoma explodir em chamas. Viram o asfalto
daquele lado primeiro se romper, depois começar a derreter.
— Lança o outro — disse Cox devagar, e Gene Ray obedeceu. Quebrou mais janelas e assustou mais gente no
leste de New Hampshire e no oeste do Maine.
De resto, o resultado foio mesmo.

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