PIOR NÃO É IMPOSSÍVEL

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Mais tarde, Rusty Everett se lembraria é da confusão. A única imagem que se destacou com total clareza foi o
tronco nu do pastor Coggins: carne branca como barriga de peixe e as costelasbem marcadas.
Barbie, entretanto — talvez por ter sido encarregado pelo coronel Cox de voltar ao papel de investigador —, viu
tudo. E a sua lembrança mais clara não foi de Coggins sem camisa; foi de Melvin Searles lhe apontando o dedo e
depois inclinando a cabeça de leve — linguagem de sinaisque todo homem reconhece como Isso não vai ficar assim,
neném.
O que todos os outros recordaram — o que fez com que entendessem a situação da cidade talvez mais do que
todo o resto — foram os gritos do pai a segurar nos braços o menino ferido e ensanguentado e a mãe berrando “Ele
está bem, Alden? ELE ESTÁ BEM?” enquanto se esforçava para levar os 20 quilos a mais do seu corpanzil até a
cena.
Barbie viu Rusty Everett abrir caminho à força no círculo que se juntava em torno do menino e se unir aos dois
homens ajoelhados, Alden e Lester. Alden embalava o filho nos braços enquanto o pastor Coggins fitava tão
boquiaberto quanto um portão com a dobradiça quebrada. A mulher de Rusty estava logo atrás dele. Rusty caiu de
joelhos entre Alden e Lester e tentou tirar do rosto as mãos do menino. Alden — o que não surpreende, na opinião
de Barbie — prontamente lhe deu um soco. O narizde Rusty começou a sangrar.
— Não! Deixa ele ajudar! berrou a mulher do auxiliar médico.
Linda, pensou Barbie. O nome dela é Linda, e ela é policial.
— Não, Alden! Não! — Linda pôsa mão no ombro do fazendeiro e ele se virou, parecendo prestesa socá-la. Todo
o bom-senso sumira do seu rosto; era um animal protegendo a cria. Barbie avançou para segurar o punho dele caso
o fazendeiro o erguesse e, depois, teve uma ideia melhor.
— Médico, aqui! — gritou, curvando-se diante do rosto de Alden e tentando tirar Linda do seu campo de visão.
— Médico! Médico, méd... — Barbie foi puxado para trás pelo colarinho e girado. Teve tempo apenas de registrar
Mel Searles, um dos amigos de Junior, e perceber que usava a camisa azul da farda e uma insígnia. Pior é
impossível, pensou Barbie, mas, para provar que estava errado, Searles o socou no rosto, como fizera naquela noite
no estacionamento do Dipper’s. Errou o nariz de Barbie, que provavelmente era o alvo, mas amassou os seus lábios
contra osdentes.
Searles afastou o punho para bater de novo, mas Jackie Wettington — a parceira de má vontade de Mel naquele
dia — lhe agarrou o braço antes.
— Não faça isso! — berrou ela. — Policial, não faça isso!
Por um instante, a questão ficou pendente. Então Olhe Dinsmore, seguido de perto pela mãe que ofegava e
soluçava, passou entre eles, forçando Searlesa dar um passo atrás.
Searlesbaixou o punho.
— Tá bem — disse. — Mas você está numa cena de crime, panaca. Cena de investigação policial. Qualquer coisa
assim.
Barbie limpou o sangue da boca com o punho e pensou: Pior não é impossível. Essa é que é a merda — não é.
A única parte que Rustyescutou foi Barbie gritando médico. Agora ele mesmo disse.
— Médico, sr. Dinsmore. Rusty Everett. O senhor me conhece. Deixa eu olhar o menino.
— Deixa, Alden! — gritou Shelley. — Deixa ele cuidar do Rory!
Alden soltou um pouco o garoto, que, de joelhos, balançava de frente para trás, a calça jeans encharcada de
sangue. Rory cobrira o rosto com as mãos de novo. Rusty as segurou — com jeitinho, com jeitinho é melhor — e as
puxou para baixo. Torcera para que não fosse tão ruim quanto temia, mas a órbita estava vazia e em carne viva,
despejando sangue. E o cérebro atrás daquela órbita estava bastante ferido. A novidade foi que o olho que restava
virou insensívelpara o céu, fitando o nada.
Rusty começou a tirar a camisa, mas o pregador já tirara a sua. O torso de Coggins, magro e branco na frente,
riscado de vergões vermelhosnas costas, escorria suor. Ele a estendeu.
— Não — disse Rusty. — Rasga, rasga.
Por um instante, Lester não pescou. Então rasgou a camisa ao meio. O resto do contingente da polícia vinha
chegando, e alguns policiais regulares — Henry Morrison, George Frederick, Jackie Wettington, Freddy Denton —
berravam para que os novos recrutas ajudassem a fazer a multidão recuar, a abrir espaço. Os recém-contratados o
fizeram, com entusiasmo. Algumas das pessoas amontoadas foram derrubadas, inclusive Samantha Bushey, famosa
torturadora de Bratz. Sammy levava o Pequeno Walter num canguru e, quando caiu de bunda, os dois começaram a
urrar. Junior Rennie passou por cima dela mal lhe dando uma olhada e agarrou a mãe de Rory, quase erguendo do
chão a mãe do menino ferido antesque Freddy Denton o detivesse.
— Não, Junior, não! Essa é a mãe do garoto! Solta ela!
— Brutalidade policial! — berrou Sammy Busheyde onde estava caída no capim. — Brutalidade poli...
Georgia Roux, a mais nova contratada no que havia se tornado o departamento de polícia de Peter Randolph,
chegou com Carter Thibodeau (de mãos dadas, aliás). Georgia enfiou a bota num dos seios de Sammy — não foi
bem um pontapé — e disse:
— Cala a boca, sapata.
Junior largou a mãe de Rory e foi ficar com Mel, Carter e Georgia. Fitavam Barbie. Junior somou os seus olhos
aos deles, achando que o chapeiro era como uma moeda azarada que aparecia toda hora. Achou que Barbie ficaria
muito bem numa cela, ao lado de Sam Relaxado. Também achou que ser policial sempre fora o seu destino; com
certeza ajudara a reduzir a dor de cabeça.
Rusty pegou metade da camisa rasgada de Lester e a rasgou de novo. Dobrou um pedaço, começou a colocá-lo
sobre a ferida aberta no rosto do menino; mudou de ideia e o entregou ao pai.
— Segura isso na...
As palavras mal saíram; a garganta estava cheia do sangue do nariz socado. Rusty pigarreou, virou a cabeça,
cuspiu um catarro meio coagulado no capim e tentou de novo.
— Segura isso sobre a ferida, pai. Fazpressão. Mão na nuca e aperta.
Tonto mas obediente, Alden Dinsmore fez o que lhe mandavam. Na mesma hora, o curativo improvisado ficou
vermelho, masainda assim o homem parecia mais calmo. Ter o que fazer ajudava. Geralmente ajudava.
Rusty jogou o pedaço restante para Lester. “Mais!”, disse, e Lester começou a rasgar a camisa em pedaços
menores. Rusty ergueu a mão de Dinsmore e removeu o primeiro pedaço, que agora estava encharcado e inútil.
Shelley Dinsmore guinchou ao ver a órbita vazia.
— Ah, meu menino! Meu menino!
Peter Randolph chegou correndo, bufando e ofegante. Ainda assim, estava bem à frente de Big Jim, que, ciente
de que seu coração era meio deficiente, se arrastava pelo declive do pasto por sobre o capim que o resto da multidão
pisoteara e transformara em caminho largo. Pensava na surumbamba que aquilo virara. No futuro, só haveria
reuniões da cidade com licença oficial. E se tivesse algo a ver com isso (teria; sempre tinha), seria bem difícil obter
uma licença.
— Afasta mais essa gente! — grunhiu Randolph ao policial Morrison. E, quando Henry foi cumprir a ordem: — Pra
trás, gente! Precisamosde ar!
Morrison vociferou:
— Policiais, formem um cordão! Empurrem todospra trás! Quem resistir, algema nele!
A multidão começou a dar uma lenta marcha a ré. Barbie se demorou.
— Sr. Everett... Rusty... precisa de ajuda? Está tudo bem?
— Tudo — disse Rusty, e a sua cara disse a Barbie tudo o que precisava saber: o auxiliar médico estava bem, só
o nariz machucado, O garoto não estava e jamais estaria, mesmo que sobrevivesse. Rusty aplicou outra compressa
limpa na órbita cheia de sangue do menino e pôsa mão do pai sobre ela outra vez.
— Nuca — disse. — Aperta com força. Com força.
Barbie começou a recuar, masaí o garoto falou.
— É Halloween. Você não pode... a gente não pode...
Rusty parou no ato de dobrar outro pedaço da camisa numa compressa. De repente, estava de volta ao quarto
das filhas, ouvindo Janelle gritar É culpa da Grande Abóbora!
Ergueu os olhos para Linda. Ela também escutara. Os olhos dela estavam arregalados, a cor fugira das faces
antes coradas.
— Linda! — Rusty gritou com ela. — Pega o walkie-talkie! Liga pro hospital! Fala pro Twitch pra trazer a
ambulância...
— O fogo! — gritou Rory Dinsmore numa vozaguda e trêmula. Lester o encarava como Moisésdevia ter encarado
a sarça ardente. — O fogo! O ônibuspegou fogo! Tá todo mundo gritando! Cuidado com o Halloween!
Agora a multidão estava em silêncio, ouvindo a criança delirar. Até Jim Rennie escutou ao chegar ao fim da
multidáo e começar a abrir caminho com cotoveladas.
— Linda! — gritou Rusty. — Pega o walkie-talkie! Precisamosda ambulância!
Ela despertou visivelmente, como se alguém acabasse de bater palmas na frente do seu rosto. Puxou o walkie-
talkie do cinto.
Rory caiu para a frente no capim amassado e começou a ter uma convulsão.
— O que está acontecendo? — Esse era o pai.
— Deusdo céu, ele vai morrer! — Essa era a mãe.
Rusty virou a criança, que tremia e se contorcia (tentando não pensar em Jannie enquanto o fazia, mas isso,
óbvio, era impossível), e virou o queixo do garoto para cima, para manter abertasas viasaéreas.
— Vem cá, pai — disse a Alden. — Não me deixa na mão agora. Aperta a nuca. Pressão na ferida. Vamosparar o
sangramento.
A compressão podia fazer afundar ainda mais o fragmento que arrancara o olho do garoto, mas Rusty se
preocuparia com isso depois. Isso se o garoto não morresse ali mesmo no capim.
Ali perto — mas, ah, tão longe — um dos soldados finalmente falou. Mal saído da adolescência, parecia triste e
aterrorizado.
— Nós tentamos detê-lo. Ele não quis ouvir. Não pudemos fazer nada. Pete Freeman, a Nikon pendurada pela
correia perto do joelho, presenteou o jovem guerreiro com um sorriso de amargura singular.
— Acho que a gente sabe disso. Se não sabíamosantes, agora com certeza sabemos.
Antesque Barbie pudesse se misturar à multidão, Mel Searleso agarrou pelo braço.
— Tira as mãosde mim — disse Barbie pacificamente.
Searles lhe mostrou osdentesna sua versão de sorriso.
— Só sonhando, seu filho da mãe. — Então, levantou a voz. — Chefe. Ei, chefe!
Peter Randolph virou-se para ele com impaciência, franzindo o cenho.
— Esse cara interferiu comigo enquanto eu tentava controlar o local. Posso prender?
Randolph abriu a boca, possivelmente para dizer Não me faz perder tempo. Então, olhou em volta. Jim Rennie
finalmente chegara até o grupinho que observava Everett trabalhar com o menino. Rennie deu a Barbie o olhar vazio
de um réptilnuma pedra; depois, olhou de volta para Randolph e, de leve, concordou com a cabeça.
Mel viu. O sorriso se ampliou.
— Jackie? Policial Wettington, quer dizer. Pode me emprestar asalgemas?
Junior e o resto do seu grupo também sorriam. Isso era melhor do que olhar um garoto sangrando e muito melhor
que policiar um monte de santosdo pau oco e malucos com cartazes.
— A vingança é doce, Baaaar-bie — disse Junior.
Jackie parecia insegura.
— Pete... Chefe, quero dizer... Acho que o cara só estava tentando aju...
— Algema ele — disse Randolph. — Depois verificamos o que ele estava tentando fazer. Enquanto isso, quero
limpar essa bagunça. — Ergueu a voz. — Acabou, gente! Já se divertiram, e vejam só no que deu! Agora, pra casa!
Jackie removia do cinto o par de algemas de plástico (não tinha a mínima intenção de entregá-las a Mel Searles,
ela mesma as colocaria) quando Julia Shumway falou. Ela estava logo atrás de Randolph e Big Jim (na verdade, Big
Jim lhe dera uma cotovelada no caminho até onde tudo acontecia).
— Eu não faria isso, chefe Randolph, a menosque o senhor queira ver o Departamento de Polícia se envergonhar
na primeira página do Democrata. — Ela usava o seu sorriso de Mona Lisa. — Com o senhor tão novo no cargo e tal.
— Do que você está falando? — perguntou Randolph. O cenho estava ainda mais franzido, transformando o rosto
numa série de fendasdesagradáveis.
Julia ergueu a câmera, uma versão um pouco maisantiga da de Pete Freeman.
— Tenho várias fotos do sr. Barbara ajudando Rusty Everett com o menino ferido, algumas do policial Searles
puxando o sr. Barbara sem nenhuma razão visível... e uma do policial Searles socando o sr. Barbara na boca.
Também sem nenhuma razão visível. Não sou muito boa fotógrafa, mas essa saiu mesmo ótima. Quer ver, chefe
Randolph? É fácil, a câmera é digital.
A admiração de Barbie por ela se aprofundou porque achou que era blefe. Se tirara fotos, por que segurava a
tampa da lente na mão esquerda, como se tivesse acabado de tirá-la?
— É mentira, chefe — disse Mel. — Ele tentou me bater. Pergunta ao Junior.
— Acho que as minhas fotos vão mostrar que o jovem sr. Rennie estava tentando controlar a multidão e estava de
costasquando o soco ocorreu — disse Julia.
Randolph a olhou com raiva.
— Eu poderia confiscar a sua câmera — disse ele. — Como prova.
— Claro que poderia — concordou ela alegremente —, e Pete Freeman tiraria uma foto sua fazendo isso. Aí o
senhor poderia tirar a câmera do Pete... Mas todo mundo aqui veria.
— De que lado você está, Julia? — perguntou Big Jim. Usava o seu sorriso feroz: o sorriso de um tubarão prestes a arrancar um pedaço da bunda de algum nadador gorducho.
Julia virou para ele o seu sorriso, osolhosacima tão inocentese inquisidoresquanto osde uma criança.
— Existem lados, James? Além daquele lá — ela apontou os soldadosque assistiam — e o daqui?
Big Jim a mediu, os lábios agora se curvando para o outro lado, um sorriso invertido. Depois, abanou a mão
enojada para Randolph.
— Vamosdeixar isso pra lá, sr. Barbara — disse Randolph. — Cabeça quente.
— Obrigado — disse Barbie.
Jackie pegou o braço do seu jovem parceiro irritado.
— Vamos, policial Searles. Essa parte acabou. Vamos mandar esse pessoalde volta.
Searles foi com ela, mas não antes de se virar para Barbie e fazer o gesto: dedo para cima, a cabeça levemente
inclinada. Isso não vai ficar assim, neném.
Jack Evans e Toby Manning, ajudante de Rommie, surgiram com uma maca improvisada, feita de lona e mastros
de barraca. Rommie abrira a boca para perguntar o que eles pensavam que estavam fazendo e depois a fechou. O
dia no campo fora cancelado mesmo, então que importava?
Quem tinha carro entrou no seu. E aí todos tentaram ir embora ao mesmo tempo.
Previsível, pensou Joe McClatchey. Totalmente previsível.
A maioria dos policiais foi trabalhar para desfazer o engarrafamento resultante, embora até o grupo de garotos
(Joe estava em pé com Benny Drake e Norrie Calvert) percebesse que o novo e aperfeiçoado pelotão não tinha idéia
do que estava fazendo. O som dos xingamentos dos borne era nítido no ar de verão (“Não sabe dar marcha a ré
nessa merda, caralho!). Apesar da confusão, ninguém metia a mão na buzina. Provavelmente, a maioria estava
atordoada demaispara buzinar.
— Olha esses idiotas — disse Benny. — Quantos litros de gasolina vocês acham que eles estão queimando pela
descarga? Parece que acham que o estoque não vaiacabar nunca.
— Pode crer — disse Norrie. Era durona, uma garota rock’n’roll de cidade pequena com um mullet de cantor
country, mas agora parecia pálida, triste e assustada. Pegou a mão de Benny. O coração de Joe Espantalho se
partiu, mas logo se remendou quando ela pegou a dele também.
— Lá vai o cara que quase foi preso — disse Benny, apontando com a mão livre. Barbie e a dona do jornal
atravessavam o pasto rumo ao estacionamento improvisado com mais 60 ou 80 pessoas, algumas arrastando
desanimadasos cartazesde protesto.
— A Maria Jornalista lá não tava tirando foto nenhuma, sabia? — disse Joe Espantalho. — Eu tava bem atrás
dela. Sagazela.
— É — disse Benny —, mas eu não queria estar no lugar dele. Até essa merda acabar, a polícia pode fazer o que
quiser.
Era verdade, refletiu Joe. E os policiais novos não eram nada legais. Junior Rennie, por exemplo. A história da
prisão de Sam Relaxado já corria pela cidade.
— O que é que você quer dizer? — perguntou Norrie a Benny.
— Por enquanto nada. Por enquanto ainda está tudo legal. — Ele reconsiderou. — Bem legal. Mas se isso
continua... lembram do Senhor das moscas? — Tinham lido na aula de inglês.
— “Mata a porca” — entoou Benny. — “Corta a garganta dela. Bate com força.” Muita gente chama os canas de
porco, mas vou dizer o que eu acho; acho que os canas acham os porcos quando a merda é feia. Talvez porque eles
também fiquem com medo.
Norrie Calvert começou a chorar. Joe Espantalho pôs o braço em volta dela. Com cuidado, como se achasse que
esse tipo de coisa podia fazer os dois explodirem, mas ela virou o rosto para a camisa dele e o abraçou. Foi um
abraço de um braço só, porque com o outro ela ainda segurava a mão de Benny. Joe achou que nunca sentira em
toda sua vida nada tão estranhamente emocionante quanto as lágrimas dela molhando a camisa dele. Por cima da
cabeça da garota, deu a Bennyum olhar de reprovação.
— Desculpa, cara — disse Bennye deu um tapinha nas costasdela. — Sem medo.
— O olho dele foi arrancado! — ela chorava. As palavras eram abafadas pelo peito de Joe. Depois ela o largou. —
Isso não tem maisgraça. Isso não tem graça.
— Não. — Joe falou como se descobrisse uma grande verdade. — Não tem.
— Olha — disse Benny. Era a ambulância. Twitch sacolejava pelo pasto de Dinsmore com as luzes vermelhas do
teto piscando. A irmã dele, dona do Rosa Mosqueta, caminhava na frente, guiando-o em torno dos buracos piores.
Uma ambulância no capinzal, sob o céu claro de uma tarde de outubro: era o toque final.
De repente, Joe Espantalho não queria maisprotestar. Também não queria exatamente ir para casa. Naquele momento, a única coisa que queria no mundo era sair da cidade.
Julia se enfiou atrásdo volante do carro masnão deu a partida; ficariam alialgum tempo e não fazia sentido gastar
gasolina. Inclinou-se por cima de Barbie, abriu o porta-luvase pegou um velho maço de cigarros American Spirits.
— Suprimento de emergência — disse à guisa de desculpa. — Quer um?
Ele fezque não.
— Incomoda? Porque eu posso esperar.
Ele fez que não outra vez. Acendeu o cigarro e soprou a fumaça pela janela aberta. Ainda estava quente — um
verdadeiro veranico, sem dúvida —, mas não ficaria assim. Mais uma semana ou duas e o clima ia piorar, como
diziam os antigos. Ou talvez não, pensou. Diabos, quem sabe? Se a Redoma continuasse ali, ela não tinha dúvida de
que muitos meteorologistas considerariam a questão do clima ali dentro, mas e daí? Os Yodas do Weather Channel
não conseguiam prever nem para que lado ia uma nevasca e, na opinião de Julia, mereciam tanto crédito quanto os
gêniospolíticosque tagarelavam o dia todo na mesa do papo furado do Rosa Mosqueta.
— Obrigado por falar naquela hora — disse ele. — Você me salvou o lombo.
— Notícia quente, meu caro: seu lombo ainda está no fumeiro. Vai fazer o que da próxima vez? Mandar seu amigo
Cox chamar a União Americana de Liberdade Civil? Talvez eles até se interessem, mas acho que ninguém do
escritório de Portland vai vir a Chester’s Mill tão cedo.
— Não seja tão pessimista. A Redoma pode ser soprada pro mar agora à noite. Ou só se dissipar. A gente não
sabe.
— Sem chance. Isso é coisa do governo, de algum governo, e aposto que seu coronel Cox sabe disso.
Barbie ficou calado. Acreditara em Cox quando este dissera que os Estados Unidos não eram responsáveis pela
Redoma. Não porque Cox fosse necessariamente digno de confiança, mas porque Barbie não achava que os
Estados Unidos tivessem a tecnologia necessária. Nem os outros países, aliás. Mas o que ele sabia? O seu último
serviço fora ameaçar iraquianosassustados. Às vezes com a arma encostada na cabeça deles.
Frankie DeLesseps, amigo de Junior, estava na rodovia 119 ajudando a orientar o tráfego. Usava a camisa azuldo
uniforme com calças jeans; provavelmente na sede do departamento não havia calçasda farda do tamanho dele. Era
alto o filho da puta. E Julia viu, com receio, que usava uma arma no quadril. Menor do que os Glocks usados pela
polícia regular de MilI, provavelmente pertencia a ele, masainda assim era uma arma.
— Vai fazer o que se a Juventude Hitlerista for atrás de você? — perguntou, erguendo o queixo na direção de
Frankie. — Boa sorte se quiser se queixar de brutalidade policial quando eles te prenderem e decidirem terminar o
que começaram. Só tem dois advogados na cidade. Um está senil e o outro tem um Porsche Boxster que o Jim
Rennie conseguiu pra ele com desconto. É isso que me contaram.
— Eu sei me cuidar.
— Ah, que macho.
— O que houve com o seu jornal? Parecia pronto quando eu saí ontem à noite.
— Tecnicamente, você saiu hoje de manhã. E tá pronto, sim. O Pete, eu e alguns amigos vamos cuidar pra que
seja distribuído. Só não vi razão pra começar com três quartos da cidade vazios. Quer ser entregador de jornal
voluntário?
— Gostaria, mas tenho que fazer um zilhão de sanduíches. Hoje à noite só vai ter comida fria no restaurante.
— Talvez eu dê uma passada lá. — Ela jogou pela janela o cigarro, apenas meio fumado. Depois de pensar um
instante, saiu do carro e o apagou com o pé.
Começar um incêndio ali no mato seco não seria bom, ainda mais com os novos caminhões de bombeiro da cidade presosem Castle Rock.
— Passei mais cedo pela casa do chefe Perkins — disse ela ao sentar-se de novo atrás do volante. — Só que, é
claro, agora é só da Brenda.
— Como ela está?
— Terrível. Mas quando disse que você queria falar com ela e que era importante, embora eu não dissesse o
assunto, ela concordou. Depoisde anoitecer deve ser melhor. Acho que o seu amigo vaiestar impaciente...
— Para de chamar o Coxde meu amigo. Ele não é meu amigo.
Os dois observaram em silêncio o menino ferido ser posto na parte de trás da ambulância. Os soldados também
observavam. Provavelmente contra as ordens, e isso fez Julia sentir-se um pouco melhor a respeito deles. A
ambulância começou a corcovear no caminho de volta pelo pasto, as luzespiscando.
— Isso é horrível — disse ela com voz fraca.
Barbie pôso braço em torno dosombrosdela. Ela se tensionou um instante e depois relaxou. Olhando bem para a
frente — para a ambulância, que agora entrava numa pista aberta no meio da rodovia 119 —, disse:
— E se eles me fecharem, amigo? E se o Rennie e a sua polícia de estimação decidirem fechar o meu
jornalzinho?
— Isso não vai acontecer — disse Barbie. Mas ficou pensando. Se aquilo durasse muito tempo, achou que, em
Chester’s Mill, todososdiaspoderiam se transformar no Dia em que Tudo Pode Acontecer.
— Ela estava pensando em outra coisa — disse Julia Shumway.
— A sra. Perkins?
— É. Em váriosaspectos, foiuma conversa estranhíssima.
— Ela está de luto pelo marido — disse Barbie. — O luto deixa as pessoas estranhas. Eu disse oi pro Jack Evans,
a mulher dele morreu ontem, quando a Redoma caiu, e ele me olhou como se não me conhecesse, embora desde a
primavera passada eu sirva a ele o meu famoso bolo de carne dasquartas-feiras.
— Conheço Brenda Perkins desde que ela era Brenda Morse — disse Julia. — Quase quarenta anos. Achei que
ela ia me dizer o que incomodava ela... masnão disse.
Barbie apontou a estrada.
— Acho que agora dá pra ir.
Quando Julia ligou o motor, o celular trinou. Ela quase deixou cair a bolsa na pressa de achá-lo. Ouviu e depois o
entregou a Barbie com o seu sorriso irônico.
— Pra você, chefe.
Era Cox, e Cox tinha algo a dizer. Bastante coisa, na verdade. Barbie o interrompeu o suficiente para lhe dizer o
que acontecera com o menino que agora seguia para o Cathy Russell, mas Cox não fez ou não quis fazer relação
entre a história de Rory Dinsmore e o que falava. Escutou com toda a educação e depois continuou. Ao terminar, fez
a Barbie uma pergunta que seria uma ordem se Barbie ainda usasse farda e ainda estivesse sob o seu comando.
— Senhor, eu entendo o que perguntou, mas o senhor não entende a... Acho que dá pra chamar de situação
política daqui. E o meu pequeno papelnela. Tive algunsproblemasantesdessa história da Redoma e...
— Nós sabemos tudo sobre isso — disse Cox. — Uma altercação com o filho do segundo vereador e alguns
amigosdele. Você quase foipreso, de acordo com o que está na minha pasta.
Uma pasta. Agora ele tem uma pasta. Que Deus me ajude.
— São informações boas até certo ponto — disse Barbie —, mas eu vou lhe dar um pouco mais. Uma, o chefe de
polícia que impediu que eu fosse preso morreu na 119, não muito longe de onde eu estou falando, na verdade...
Baixinho, num mundo que agora não podia visitar, Barbie ouviu um farfalhar de papel. De repente, sentiu que
gostaria de matar o coronel James O. Cox com as próprias mãos, simplesmente porque o coronel James O. Cox
podia ir ao McDonald’squando quisesse e ele, Dale Barbara, não.
— Nós sabemos tudo sobre isso também — disse Cox. — Problema com o marca-passo.
— Dois — continuou Barbie —, o novo chefe, que é amiguinho íntimo do único membro poderoso da Câmara de
Vereadores dessa cidade, contratou uns policiais novos. São os caras que tentaram me arrancar a cabeça dos
ombrosno estacionamento da boate local.
— Você vai ter que se elevar acima disso, certo, coronel?
— Está me chamando de coronelpor quê? O senhor é o coronel.
— Parabéns — disse Cox. — Além de se realistar a serviço do seu país, você recebeu uma promoção
absolutamente estonteante.
— Não! — gritou Barbie. Julia o olhou apreensiva masele malnotou. — Não, não quero!
— Pois é, mas recebeu — disse Cox calmamente. Vou mandar por e-mail pra sua amiga editora uma cópia da
papelada básica antesde derrubarmosa internet da sua pobre cidadezinha.
— Derrubar? Você não pode derrubar a internet assim!
— A papelada foiassinada pelo presidente da República em pessoa. Vaidizer não a ele? Parece que ele fica meio
irritado quando é contrariado.
Barbie não respondeu. A sua mente era um turbilhão.
— Você precisa conversar com os vereadores e com o chefe de polícia — disse Cox. — Precisa dizer a eles que o
presidente impôs estado de sítio em Chester’s Mill e que você é o oficial comandante. Tenho certeza de que vai
sofrer alguma resistência inicial, mas as informações que eu acabei de dar ajudarão a fazer de você o intermediário
entre a cidade e o mundo exterior. E eu conheço o seu poder de persuasão. Pude vê-lo em primeira mão no Iraque.
— Senhor — disse ele, passando a mão no cabelo. — O senhor entendeu completamente errado a situação daqui.
— Sua orelha pulsava devido ao maldito celular. — É como se o senhor entendesse a idéia da Redoma, mas não o
que está acontecendo nessa cidade por causa dela. E não se passaram nem trinta horas.
— Então me ajude a entender.
O senhor dizque o presidente quer que eu faça isso. Suponha que eu ligasse pra lá e mandasse ele tomar no cu?
Julia o olhava horrorizada, e na verdade isso o inspirou.
— Suponha mesmo que eu dissesse que sou um agente infiltrado da Al-Qaed e que o meu plano é matar ele.
Pôu, uma bala na cabeça. Que tal?
— Tenente Barbara... coronel Barbara, perdão... pode parar por aí.
Barbie achava que ainda não.
— Ele poderia mandar o FBI me prender? O Serviço Secreto? O maldito Exército Vermelho? Não, senhor. Não
poderia.
— Nós temos planos de mudar isso, como já expliquei. — Cox não parecia mais à vontade e bem-humorado, só
um velho ranzinza conversando com outro.
— E se der certo, pode mandar o órgão federal da sua preferência vir me prender. Mas se nós continuarmos
isolados, quem aqui vai me dar ouvidos? Mete isso na cabeça: essa cidade se isolou. Não só dos Estados Unidos,
masdo mundo inteiro. Não há nada que possamos fazer, nem nósnem o senhor.
Baixinho, Coxdisse:
— Nósestamos tentando ajudar vocês.
— O senhor diz isso e eu quase acredito. E o resto das pessoas daqui? Quando olham pra ver que tipo de ajuda
os impostosdeles trazem, veem soldados montando guarda viradosde costas. Que bela mensagem isso transmite
— Você está falando muito pra quem disse não.
— Não estou dizendo não. Mas estou só a uns dois passos de ser preso, e me proclamar comandante provisório
não vaiajudar.
— Suponhamosque eu telefone pro primeiro vereador.., qualé o nome dele... Sanders... e conte pra ele...
— Foio que eu quisdizer sobre o pouco que o senhor sabe. É como o Iraque de novo, só que dessa vezo senhor
está em Washington em vez de estar no local, e parece tão por fora quanto o resto dos soldados de poltrona. Escuta
bem, senhor: pouca informação é pior do que nenhuma.
— Pouco aprendizado é perigoso — disse Julia, sonhadora.
— Se não é o Sanders, quem é?
— James Rennie. O segundo vereador. Ele é o chefáo por aqui.
Houve uma pausa. Depois, Coxdisse:
— Talvez nós possamos deixar a internet no ar. De qualquer forma, há entre nós quem ache que derrubá-la é
pura reação por reflexo.
— Por que você pensaria isso? — perguntou Barbie. — Vocês não sabem que se deixarem que a gente acesse a
internet a receita do pão de amora da tia Sarah vaiacabar sendo revelada?
Julia sentou-se bem ereta e fez com a boca: Querem cortar a internet? Barbie levantou um dedo na direção dela
— Espera.
— Escuta, Barbie. Suponhamos que a gente ligue pra esse tal de Rennie pra dizer que a internet vai ser cortada,
sinto muito, situação de crise, medidas extremas etc. etc. Então você pode convencer ele da sua utilidade fazendo
com que a gente mude de idéia.
Barbie pensou no caso. Podia dar certo. Por algum tempo, ao menos. Ou não.
— Além disso — disse Cox, animado —, você vai dar outras informações pra eles. Talvez salve algumas vidas,
mas com certeza vaipoupar muita gente do maior susto das suas vidas.
— Os celulares liberados também, além da internet — disse Barbie.
— Aí é difícil. Acho que eu consigo manter a internet pra vocês, mas... escuta aqui, cara. No comitê que preside
essa bagunça tem ao menos uns cinco ao estilo Curtis LeMay [General da Força Aérea americana. Famoso por ter
idealizado os planos de bombardeio sistemático a cidades japonesas na Segunda Guerra Mundial] e pra eles todo
mundo em Chester’s Millé terrorista até prova em contrário.
— O que esses terroristas hipotéticos podem fazer pra prejudicar os Estados Unidos? Fazer um atentado suicida
contra a Igreja Congregacional?
— Barbie, você está ensinando missa ao vigário.
É claro que provavelmente era verdade.
— Vai tentar?
— Vou ter que falar com o senhor depois sobre isso. Espera o meu telefonema antes de agir. Antes, tenho que
conversar com a viúva do falecido chefe de polícia.
Cox insistiu.
— Não vai contar pra ninguém a parte da nossa conversa sobre a negociação, certo?
Novamente, Barbie se espantou ao ver como até Cox — um livre-pensador, pelo padrão militar — não conseguia
entender direito as mudançasque a Redoma já provocara. Ali, o tipo de segredo de Coxnão tinha mais importância.
Nós contra eles, pensou Barbie. Agora, somos nós contra eles. Quer dizer, a menos que a ideia maluca deles dê
certo.
— Senhor, preciso mesmo continuar a conversa depois; esse celular está com um caso grave de bateria fraca. —
Mentira que contou sem remorsos. — E o senhor precisa esperar que eu converse com o senhor antes de falar com
maisalguém.
— Só não se esqueça, o Big Bang está marcado para amanhã às13h. Se quiser manter a viabilidade, é melhor se
adiantar.
Manter a viabilidade. Outra expressão sem sentido debaixo da Redoma. A menos que fosse aplicada a ter gás
para o gerador.
— A gente conversa — disse Barbie. Bateu o telefone antes que Cox dissesse mais alguma coisa. A 119 agora
estava quase limpa, embora DeLesseps ainda estivesse ali, de braços cruzados, encostado no seu carrão antigo e
potente. Quando Julia passou pelo Nova, Barbie viu um adesivo em que estava escrito BUNDA, BAGULHO OU
BUFUNFA — CARONA NÃO É DE GRAÇA. E uma lâmpada giratória magnética da polícia no painel. Achou que o
contraste resumia tudo o que estava errado em Chester’s Millagora.
Enquanto voltavam, Barbie lhe contou tudo o que Coxdissera.
— Na verdade, o que eles estão planejando não é muito diferente do que aquele garoto acabou de tentar — disse
ela, com voz consternada.
— Bom, é um pouco diferente — disse Barbie. — O garoto tentou com uma espingarda. Elesarranjaram um míssil
Cruise. Melhor chamar de teoria do Big Bang.
Ela sorriu. Não era o sorriso de sempre; perplexo e descorado, deixava-a com 60 anosem vezde 43.
— Acho que vou publicar outro número do jornalantesdo que eu pensava.
— Extra, extra, leiam tudo! — concordou Barbie.
— Oi, Sammy — disse alguém. — Como vai?
Samantha Bushey não reconheceu a voz e se virou na sua direção com cautela, amarrando o canguru enquanto
se virava. O Pequeno Walter dormia e pesava uma tonelada. O traseiro doía da queda e os seus sentimentos
também estavam feridos — aquela maldita Georgia Roux chamara ela de sapata. Georgia Roux, que viera se
lamuriar perto do trailer de Sammy mais de uma vez tentando arranjar um papelote de pó para ela e para o monstro
musculoso com quem andava.
Era o pai de Dodee. Sammy falara com ele milhares de vezes, mas não lhe reconhecera a voz; mal o
reconhecera. Parecia velho e triste — alquebrado, de certo modo. Sequer olhou para os peitos dela, o que era
sempre a primeira coisa.
— Oi, sr. Sanders. Caramba, nem vi o senhor na... — Ela fez um gesto na direção do pasto amassado e da tenda
grande, agora meio despencada parecendo desamparada. Embora não tanto quanto o sr. Sanders.
— Eu estava sentado na sombra. — A mesma voz hesitante, saindo por um sorriso ferido que parecia pedir
desculpas e era duro de se ver. — Mas tomei alguma coisa. Não está quente pra outubro? Caramba, como está.
Acheique era uma tarde gostosa, uma verdadeira tarde da cidade, até que aquele menino...
Carácoles, ele estava chorando.
— Sinto muitíssimo sobre a sua mulher, sr. Sanders.
— Obrigado, Sammy. É muita gentileza sua. Quer que eu leve o bebê até o carro pra você? Acho que já dá pra ir
embora, a estrada está quase vazia.
Essa oferta Sammy não poderia recusar, ainda que ele estivesse chorando. Ela tirou o Pequeno Walter do
canguru — era como pegar um bolão de massa de pão morna — e o entregou. O Pequeno Walter abriu os olhos,
deu um sorriso vidrado, arrotou e voltou a dormir.
— Acho que ele está com a fralda cheia — disse o sr. Sanders.
— É, ele é uma máquina regular de bosta. Esse é o Pequeno Walter!
— Walter é um belo nome à moda antiga.
— Obrigada. — Dizer a ele que o primeiro nome do bebê na verdade era Pequeno não parecia valer a pena... e
ela tinha certeza de que já conversara com ele sobre isso, afinal de contas. Ele só não lembrava. Andar com ele
assim, ainda que ele levasse o bebê, foio final mais corta-barato possívelpara a tarde mais corta-barato possível. Ao
menos ele acertara quanto ao trânsito: o empurra-empurra automotivo finalmente se desfizera. Sammy se perguntou
quanto tempo demoraria para a cidade toda voltar a andar de bicicleta.
— Nunca gostei da ideia de ela andar naquele avião — disse o sr. Sanders. Parecia estar continuando o assunto
de alguma conversa anterior. — Às vezes cheguei até a me perguntar se a Claudie estava dormindo com aquele
cara.
A mãe de Dodee dormindo com Chuck Thompson? Sammy ficou ao mesmo tempo chocada e curiosa.
— Provavelmente não — disse ele, e suspirou. — Seja como for, agora não importa. Você viu a Dodee? Ela não
voltou pra casa ontem à noite.
Sammy quase disse Claro, ontem à tarde. Mas se a Dodete não tinha passado a noite em casa, contar isso só
deixaria ainda mais preocupado o papaizete da Dodete. E faria Sammy ter uma longa conversa com um cara que
tinha lágrimas correndo pelo rosto e catarro pendurado na narina. Não seria legal.
Tinham chegado ao carro dela, um Chevrolet velho com câncer na caixa de ar. Ela pegou o Pequeno Walter e fez
uma careta com o cheiro. Não havia só um pacote na fralda, aquilo era um caminhão cheio!
— Não, sr. Sanders, não vi.
Ele fez que sim e depois limpou o nariz com as costas da mão. O catarro pendurado sumiu, ou ao menos foi para
outro lugar. Aquilo foium alívio.
— Provavelmente foi ao shopping com a Angie McCain e depois ao Peg’s da tia em Sabattus, e aí não conseguiu
voltar à cidade.
— É, provavelmente é isso. — E quando Dodee aparecesse bem ali em Mill, ele teria uma surpresa agradável.
Deus sabia que ele a merecia. Sammy abriu a porta do carro e pôs o Pequeno Walter no banco do carona. Desistira
da cadeirinha mesesatrás. Atrapalhava demais. Além disso, ela era uma motorista muito cuidadosa.
— Foibom ver você, Sammy. — Uma pausa. — Você vaiorar pela minha mulher?
— Ahhh... claro, sr. Sanders, sem problema.
Ela começou a entrar no carro e se lembrou de duas coisas: que Georgia Roux lhe chutara o peito com aquela
maldita bota de motoqueiro — provavelmente com força suficiente para deixar uma mancha roxa — e que Andy
Sanders, de coração partido ou não, era o primeiro vereador da cidade.
— Sr. Sanders?
— Diga, Sammy.
— Algunspoliciais foram muito violentospor aqui. O senhor podia tomar alguma providência. Sabe, antesque saia
do controle.
O sorriso infelizdele não mudou.
— Pois é, Sammy, entendo como vocês, jovens, veem a polícia... Eu também já fui jovem. Mas temos uma
situação bem complicada aqui. E quanto mais depressa impusermos um pouco de autoridade, melhor pra todos.
Você entende, não é?
— Claro — disse Sammy. O que ela entendia é que o pesar, por mais genuíno que fosse, não parecia impedir o
jorro de bobagensdospolíticos. — Até logo, a gente se vê.
— Eles formam uma boa equipe — disse Andy, vagamente. — Pete Randolph vai cuidar para que todos trabalhem
juntos. Vistam a mesma camisa. Façam... hã... a mesma dança. Protejam e sirvam, sabe como é.
— Claro — disse Samantha. A dança de proteger e servir, com um chutinho nos peitos de vez em quando. Ela se
afastou com o Pequeno Walter dormindo de novo no assento. O cheiro de bosta de bebê era terrível. Ela abriu as
janelas e olhou pelo retrovisor, O sr. Sanders ainda estava em pé no estacionamento improvisado, agora quase
totalmente deserto. Ergueu a mão para ela.
Sammy ergueu a sua, pensando onde Dodee passara a noite se não fora para casa. Depois deixou para lá — na
verdade não era da conta dela — e ligou o rádio. A única coisa que pegava bem era a Rádio Jesus, e ela desligou.
Quando ergueu os olhos, Frankie DeLesseps estava em pé na estrada diante dela com a mão erguida, como um
policial de verdade. Ela teve de pisar fundo no freio para não o atingir e depois pôs a mão no bebê para impedir que
caísse. O Pequeno Walter acordou e começou a berrar.
— Olha só o que você fez! — gritou ela com Frankie (com quem já ficara por dois dias no secundário, quando
Angie foipara o acampamento da fanfarra). — O bebê quase caiu no chão!
— Cadê a cadeirinha? — Frankie se inclinou na janela, os bíceps destacados. Músculos grandes, pinto pequeno,
esse era Frankie DeLesseps. No que dizia respeito a Sammy, Angie podia ficar com ele.
— Não é da sua conta.
Um policial de verdade poderia ter-lhe dado uma multa — pelo desrespeito à autoridade e pela lei da cadeirinha
—, mas Frankie só sorriu.
—Viu a Angie?
— Não. — Dessa vezera verdade. — Vai ver ficou presa fora da cidade.
— Embora, para Sammy, quem estava na cidade é que estava preso.
— E a Dodee?
Sammydisse não de novo. Foipraticamente obrigada, porque Frankie poderia conversar com o sr. Sanders.
— O carro da Angie está na casa dela — disse Frankie. — Eu olheia garagem.
— Grande coisa. Podem ter ido a algum lugar no Kia da Dodee.
Ele pareceu pensar a respeito. Agora estavam quase sozinhos. O engarrafamento era só lembrança. Então, ele
disse:
— A Georgia machucou seu melãozinho, neném? — E, antes que ela pudesse responder, ele estendeu a mão
e lhe agarrou o peito. Sem gentileza nenhuma também. — Quer um beijinho pra melhorar?
Ela lhe deu um tapa na mão. À sua direita, o Pequeno Walter berrava e berrava. Às vezes, ela queria entender
por que Deus inventara de fazer oshomens, queria mesmo! Sempre berrando ou agarrando, agarrando ou berrando.
Agora Frankie não sorria.
— É melhor você ficar na sua — disse ele. — A situação agora é outra.
— Vai fazer o quê? Me prender?
— Vou pensar em coisa melhor — disse ele. — Anda, vaiembora. E se vir a Angie, dizque eu quero falar com ela.
Ela foi embora, zangada e — não gostava de admitir isso a si mesma, mas era verdade — um pouco assustada.
Menos de um quilômetro adiante, estacionou e trocou a fralda do Pequeno Walter. Havia uma sacola para fraldas
sujasatrás, masela estava irritada demaispara dar bola para isso. Jogou a Pamper cagada na beira da estrada, não
muito longe da grande placa que dizia:

Under The DomeOnde histórias criam vida. Descubra agora