O BEM DA CIDADE, O BEM DO POVO

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Andy Sanders estava mesmo na Funerária Bowie. Andara até lá levando uma carga pesada: perplexidade, pesar,
o coração partido.
Estava sentado na Sala de Recordação I, a sua única companhia no caixão na frente da sala. Gertrude Evans, 87
anos (ou talvez 88) morrera de insuficiência cardíaca congestiva dois dias antes. Andy mandara um bilhete de
pêsames, embora só Deus soubesse quem o recebera: o marido de Gert morrera havia uma década. Não importava.
Ele sempre mandava pêsames quando um eleitor seu morria, um bilhete escrito à mão numa folha de papel cor de
creme timbrado com GABINETE DO PRIMEIRO VEREADOR. Achava que fazia parte do seu dever.
Big Jim não dava importância a essas coisas. Big Jim vivia ocupado demais administrando o que chamava de
“nosso negócio”, querendo dizer Chester’s Mill. Administrava a cidade como se fosse a sua ferrovia particular, na
verdade, mas Andy nunca se ressentira disso; ele entendia que Big Jim era esperto. Entendia outra coisa também:
sem Andrew DeLois Sanders, provavelmente Big Jim não seria eleito nem para dirigir a carrocinha. Big Jim sabia
vender carros prometendo pechinchas de dar água na boca, financiamento facilitadíssimo e brindes como
aspiradores de pó coreanos baratos, mas daquela vez que tentou obter a representação da Toyota, a empresa
preferiu Will Freeman. Dadas as suas vendas e a localização na 119, Big Jim não conseguiu entender por que a
Toyota fora tão estúpida.
Andy conseguia. Talvez não fosse o urso mais inteligente da floresta, mas sabia que Big um não tinha calor
humano. Era um homem duro (alguns — os que se deram mal com aqueles financiamentos facilitadíssimos, por
exemplo — diriam de coração duro) e persuasivo, mas também gelado. Andy, por sua vez, tinha calor humano para
dar e vender. Quando fazia campanha na cidade na época das eleições, dizia a todos que ele e Big Jim eram como
Tico e Teco, Batman e Robin, pão e manteiga, e que Chester’s Mill não seria a mesma sem os dois juntos (e o
terceiro que por acaso pegasse carona — naquele momento, Andrea Grinnell, irmã de Rose Twitchell). Andy sempre
gostara da parceria com Big Jim. Financeiramente, claro, ainda mais nos últimos dois ou três anos, mas também de
coração. Big Jim sabia fazer as coisas e por que deveriam ser feitas. Estamos nisso a longo prazo, dizia. Fazemos
isso pela cidade. Pelo povo. Pelo próprio bem deles. E isso era bom. Fazer o bem era bom.
Masagora... nessa noite...
— Detestei aquelas aulas de voo desde o princípio — disse ele, e começou a chorar de novo. Logo soluçava
ruidosamente, mas tudo bem, porque Brenda Perkins partira com lágrimas silenciosas depois de ver os restos
mortais do marido e os irmãos Bowie estavam no andar térreo. Tinham muito trabalho a fazer (Andy entendia, de um
jeito vago, que algo muito ruim acontecera). Fern Bowie saíra para fazer uma boquinha no Rosa Mosqueta e, quando
voltasse, Andy tinha certeza de que o mandaria embora, mas Fern passou pelo corredor sem nem olhar para onde
estava Andy, as mãosentre os joelhos, a gravata frouxa, o cabelo em desordem.
Fern descera para a “sala de trabalho”, como ele e o irmão Stewart costumavam dizer. (Horrível, horrível!) Duke
Perkins estava lá. E também aquele maldito Chuck Thompson, que talvez não tivesse convencido a sua mulher a
tomar aquelasaulasde voo, mas também não a convencera a desistir. Talvezhouvesse outros lá também.
Claudette com certeza.
Andy soltou um gemido e apertou as mãos com mais força. Não conseguiria viver sem ela; não havia como viver
sem ela. E não só porque a amava mais do que a própria vida. Era Claudette (junto com injeções regulares de
dinheiro, não registradas e cada vez maiores, de Jim Rennie) que mantinha a drogaria funcionando; por conta
própria, Andy teria falido antes da virada do século. Ele era especialista em pessoas, não em contas ou livros-caixa.
Sua mulher era a especialista em números. Ou fora. Quando o mais-que-perfeito ressoou na sua cabeça, Andygemeu de novo.
Claudette e Big Jim tinham colaborado até para consertar os livros da cidade daquela vez em que o governo do
estado fizera uma auditoria. Supostamente seria de surpresa, mas Big Jim soubera com antecedência. Não muita; só
o suficiente para trabalharem com o programa de computador que Claudette chamava de DR. LIMPEZA, porque
sempre produzia números limpos. Saíram daquela auditoria limpinhos da silva em vez de ir para a cadeia (o que não
seria justo, já que o que faziam — quase tudo, na verdade — era para o próprio bem da cidade).
A verdade sobre Claudette Sanders era a seguinte: ela fora um Jim Rennie mais bonito, um Jim Rennie mais
gentil, com quem ele podia dormir e a quem contava os seus segredos, e a vida sem ela era impensável.
Andy começou a chorar de novo, e foientão que Big Jim pôsa mão no seu ombro e apertou. Não o ouvira chegar,
masnão levou um susto. Quase esperara a mão, porque o dono dela sempre aparecia quando Andy maisprecisava.
Acheique o encontraria aqui — disse Big Jim. — Andy... parceiro... sinto muito, muito mesmo.
Andy se levantou com dificuldade, deixou os braços caírem em torno do corpanzil de Big Jim e começou a chorar
no paletó do outro.
— Eu disse a ela que aquelas aulas eram perigosas! Eu disse a ela que Chuck Thompson era um panaca,
igualzinho ao paidele!
Big Jim lhe esfregou as costas com a palma consoladora.
— Eu sei. Mas agora ela está num lugar melhor, Andy. Hoje ela jantou com Jesus Cristo: rosbife, ervilhas frescas,
purê de batata com molho! Que talessa idéia? Você devia se agarrar a ela. Acha que a gente deveria orar?
— Isso! — soluçou Andy. — Isso, Big Jim! Ora comigo!
Ajoelharam-se e Big Jim rezou por muito tempo pela alma de Claudette Sanders (abaixo deles, na sala de
trabalho, Stewart Bowie escutou, ergueu os olhos para o teto e observou: “Aquele homem caga por cima e por
baixo”).
Depois de quatro ou cinco minutos de enxergamos através do espelho e quando eu era menino, pensava como
menino (Andy não entendeu direito a pertinência desse último, mas não ligou; estar de joelhos com Big Jim já
confortava), Rennie acabou — “Emnomedejesusamém” — e ajudou Andya se levantar.
Cara a cara, peito a peito, Big Jim agarrou Andypelo alto dosbraçose o olhou nosolhos.
— Então, parceiro — disse. Sempre chamava Andy de parceiro quando a situação era grave. — Está pronto para
trabalhar?
Andyo fitou em silêncio.
Big Jim fezque sim com a cabeça, como se Andy tivesse protestado de forma sensata (naquelas circunstâncias).
— Eu seique é duro. Não é justo. Péssima hora para pedir. E você teria todo o direito, Deus sabe que teria, se me
desse um soco bem na minha fuça melequenta. Mas às vezes a gente tem que pôr em primeiro lugar o bem-estar
dosoutros, não é verdade?
— O bem da cidade — disse Andy. Pela primeira vez desde que recebera a notícia de Claudie, viu uma nesga de
luz.
Big Jim concordou. Estava com uma cara solene, mas os olhos brilhavam. Andy teve uma ideia estranha: ele
parece dezanos maisnovo.
— Está certo. Somos guardiões, parceiro. Guardiões do bem comum. Nem sempre é fácil, mas nunca é
desnecessário. Mandei a tal Wettington caçar a Andrea. Disse a ela que levasse a Andrea para a sala de reuniões.
Algemada, se for preciso. — Big Jim riu. — Ela vai estar lá. E o Pete Randolph está fazendo a lista de todos os
policiais disponíveis na cidade. Não são suficientes. Temos que cuidar disso, parceiro. Se essa situação continuar, a
autoridade vai ser fundamental. Então, o que você diz? Vai vestir a camisa por mim?
Andy fez que sim. Achou que isso afastaria a cabeça dele daquilo tudo. Mesmo que não afastasse, ele precisava
dar uma de abelha e sair zumbindo. Olhar o caixão de Gert Evans estava começando a lhe dar arrepios. As lágrimas silenciosas da viúva do chefe lhe tinham arrepiado também. E não seria difícil. Ele só precisaria ficar sentado lá na
mesa da sala de reuniões e erguer a mão quando Big Jim erguesse a dele. Andrea Grinnell, que nunca parecia
totalmente acordada, faria o mesmo. Se fosse necessário implementar algum tipo de medida de emergência, Big um
cuidaria disso. Big Jim cuidaria de tudo.
— Vamos — respondeu Andy.
Big Jim lhe deu um tapinha nas costas, jogou o braço sobre os ombros estreitos de Andy e o levou para fora da
Sala das Recordações. Era um braço pesado. Carnudo. Masera bom.
Ele nunca pensou na filha. No seu pesar, Andy Sanders se esqueceu completamente dela.
Julia Shumway andava devagar pela rua da Commonwealth, lar dos moradores mais ricos da cidade, rumo à rua
principal. Depois de dez anos de divórcio feliz, morava em cima da redação do Democrata com Horace, o seu velho
welsh corgi. Ela o batizara em homenagem ao grande sr. Greeley, recordado por um único lema — “Para o Oeste,
rapaz, para o Oeste” —, mas cuja razão verdadeira para ser famoso, na cabeça de Julia, era o trabalho como editor
de jornal. Se fizesse metade do que Greeley fizera no New York Tribune, Julia se consideraria um sucesso.
É claro que o Horace dela sempre a considerava um sucesso, o que fazia dele o melhor cão do mundo no
entender de Julia. Ela o levaria para passear assim que chegasse em casa e depois melhoraria ainda mais a sua
imagem aos olhos dele, espalhando uns pedacinhos do bife da véspera por cima da ração. Isso faria os dois se
sentirem bem, e ela queria se sentir bem — com alguma coisa, qualquer coisa —, porque estava perturbada.
Esse estado não era novo para ela. Morara em Mill por todos os seus 43 anos e, nos dez últimos, gostara cada
vez menos do que via na cidade natal. Estava preocupada com a decadência inexplicável do sistema de esgotos da
cidade e da usina de tratamento de lixo, apesar de todo o dinheiro gasto com eles, com o fechamento iminente da
Cloud Top, a estação de esqui da cidade, temia que James Rennie estivesse roubando da cidade mais do que ela
suspeitava (e ela suspeitava que ele roubava muito há décadas). E, é claro, estava preocupada com essa coisa nova,
que quase lhe parecia grande demais para ser compreendida. Toda vez que tentava entender aquilo, a cabeça se
fixava numa parte pequena mas concreta: a incapacidade cada vez maior de usar o celular, por exemplo. E ela não
recebera nenhuma ligação, o que era muito preocupante. O problema não eram amigose parentesde fora da cidade
tentando entrar em contato; ela deveria estar sendo bombardeada de ligações de outros jornais: o Sun, de Lewiston,
o Press Herald, de Portland, talvezaté o New York Times. Alguém maisem Millestaria com o mesmo problema?
Ela devia ir à fronteira com Motton e ver com os próprios olhos. Se não pudesse usar o telefone para chamar Pete
Freeman, o seu melhor fotógrafo, poderia tirar algumas fotos com a Nikon de Emergência, como dizia. Tinha sabido
que agora havia uma espécie de zona de quarentena na barreira, no lado de Motton e de Tarker’s Mills —
provavelmente no dasoutras cidades também —, mas sem dúvida conseguiria se aproximar pelo seu lado. Poderiam
mandá-la embora, mas se a barreira era tão impenetrável quanto diziam, mandar seria o máximo que poderiam
fazer.
— Paus e pedras podem quebrar meus ossos, mas palavras não me atingem — disse ela. A verdade absoluta. Se
palavras pudessem feri-la, Jim Rennie a teria mandado para a UTI depois da reportagem que fez sobre aquela
auditoria estadual ridícula de três anos atrás. Sem dúvida ele falara à vontade em processar o jornal, mas ficara na
falação; ela chegou a pensar num editorial sobre o assunto, principalmente porque tinha um título ótimo: PROCESSO
SUMIU, NINGUÉM SABE, NINGUÉM VIU.
Portanto, sim, estava preocupada. Fazia parte do serviço. Mas não estava acostumada a se preocupar com o
próprio comportamento, e agora, parada na esquina entre a Comm e a Principal, estava preocupada. Em vez de
entrar à esquerda na Principal, ela olhou para trás, para o caminho de onde viera. E falou no murmúrio baixo que
costumava reservar para Horace: “Eu não devia ter deixado aquela garota sozinha.”
Julia não teria feito isso se tivesse ido de carro. Mas fora a pé e, além disso... Dodee fora tão insistente. Também
havia um cheiro estranho. Maconha? Talvez. Não que Julia fizesse muita objeção. Fumara o seu quinhão no decorrer
da vida. E talvez acalmasse a garota. Embotasse o fio da dor enquanto era mais afiado e com mais probabilidade de
cortar.
— Não se preocupa comigo — dissera Dodee —, eu encontro o meu pai. Mas primeiro tenho que me vestir. — E
indicou o roupão que usava
— Posso esperar — respondera Julia... embora não quisesse esperar. Tinha uma longa noite à frente, começando
com os deveres para com o cachorro. Horace devia estar quase estourando agora, pois perdera o passeio das cinco;
e estaria com fome. Depois de cuidar disso, ela tinha mesmo que ir até aquilo que todos estavam chamando de
barreira. Ver com osprópriosolhos. Fotografar o que houvesse para ser fotografado.
E nem isso seria o fim. Teria que ver como publicar uma edição extra do Democrata. Para ela era importante, e
achava que podia ser importante para a cidade. É claro que tudo isso podia acabar amanhã, mas Julia estava com a
sensação — em parte na cabeça, em parte no coração — de que não acabaria. Ainda assim. Dodee Sanders não
devia ter ficado sozinha. Parecia estar se aguentando, mas podia ser só choque e negação disfarçados de calma. E
fuminho, claro. Masela fora coerente.
— Não precisa esperar. Não quero que espere.
— Não sei se ficar sozinha agora é aconselhável, querida.
— Eu vou para a casa da Angie — disse Dodee, e pareceu se alegrar um pouco com a idéia, embora as lágrimas
continuassem a correr pelo rosto. — Ela vai comigo procurar o papai. — Ela fezque sim. — É a Angie que eu quero.
Na opinião de Julia, a menina dos McCain só tinha um tiquinho mais de bom-senso do que a outra, que herdara a
aparência da mãe, mas, infelizmente, o cérebro do pai. Mas Angie era amiga e ninguém maisdo que Dodee Sanders
precisava de amigosnaquela noite.
— Eu posso ir com você... — Sem vontade. Sabendo que, mesmo no seu atual estado de recentíssimo luto, a
menina provavelmente conseguiria entender isso.
— Não, são só algunsquarteirões.
— Então...
— Sra. Shumway... a senhora tem certeza? Tem certeza de que a minha mãe...?
Com muita relutância, Julia assentira. Recebera de Ernie Calvert a confirmação do número da cauda do avião.
Recebera dele outra coisa também, algo que seria mais adequado para a polícia. Julia teria insistido com Ernie para
que ele lhes entregasse, não fosse a notícia consternadora de que Duke Perkins morrera e que aquele pilantra
incompetente do Randolph estava no comando.
O que Ernie lhe deu foi a carteira de motorista de Claudette, manchada de sangue. Ficou no bolso de Julia
enquanto ela esteve à soleira da porta dos Sanders e no seu bolso permaneceu. Ela a entregaria a Andy ou a essa
mocinha pálida de cabelo despenteado quando chegasse a hora... masa hora não era aquela.
— Obrigada — disse Dodee, com um tom de voz tristemente formal. — Agora, por favor, vai embora. Não quero
ser grosseira, mas... — Não terminou a frase, só fechou a porta sobre ela.
E o que Julia Shumway fizera? Obedecera à ordem de uma mocinha de 20 anos tomada de tristeza que podia
estar doidona demais para ser responsável por si mesma. Mas naquela noite havia outras responsabilidades, por
mais duro que fosse. Horace, por exemplo. E o jornal. Todos podiam rir das fotos preto e branco granuladas de Pete
Freeman e da cobertura completa de festas locais como a Noite Encantada da Dança da Escola Secundária Mill;
podiam afirmar que só servia para forrar a caixinha do gato; mas precisavam dele, ainda mais quando acontecia algo
de ruim. Julia queria que o jornal saísse amanhã, mesmo que tivesse de virar a noite. O que, com os dois repórteres
regularespassando o fim de semana fora da cidade, provavelmente teria.
Julia viu que, na verdade, aguardava com expectativa esse desafio, e a cara triste de Dodee Sanders começou a
escapulir da sua mente.
Horace olhou-a com reprovação quando ela entrou, masnão havia manchas molhadasno carpete nem pacotinhos
marronsdebaixo da cadeira do saguão — o lugar mágico que ele parecia considerar invisívelpara osolhoshumanos.
Ela lhe pôs a guia, levou-o lá fora e esperou pacientemente enquanto, cambaleando, ele mijava junto ao bueiro
preferido; Horace tinha 15 anos, velho para um corgi. Enquanto ele se aliviava, ela fitou a bolha branca de luz no
horizonte ao Sul. Parecia uma imagem saída de um filme de ficção científica de Steven Spielberg. Estava maior do
que nunca e dava para ouvir o uupapa-uupa-uupa dos helicópteros, fraco mas constante. Chegou a ver a silhueta de
um deles, passando velozpor aquele alto arco de brilho. Quantos malditos refletores será que tinham armado lá? Era
como se o norte de Motton tivesse se transformado numa zona de pouso no Iraque.
Horace agora andava em círculos preguiçosos, farejando o lugar perfeito para terminar o ritual de eliminação da
noite, fazendo aquela dança canina popularíssima, o Passo da Bosta. Julia aproveitou a oportunidade para
experimentar o celular outra vez. Como acontecera tantas vezes naquela noite, recebeu a série normal de bipes... e
depois, só o silêncio.
Vou ter que xerocar o jornal. O que significa uns750 exemplares, no máximo.
Havia vinte anosque o Democrata não tinha gráfica própria. Até 2002, Julia levava a arte-finalde cada semana até
a gráfica View Printing, em Castle Rock, e agora nem precisava mais disso. Mandava as páginas por e-mail na noite
de terça-feira, e o jornal pronto, embaladinho em plástico, era entregue pela gráfica antes das sete da manhã
seguinte. Para Julia, que crescera lidando com correções a lápis e laudas datilografadas que “iam para o prego”
depoisde prontas, aquilo parecia mágica. E, como toda mágica, não muito confiável.
Naquela noite, a desconfiança se justificava. Talvez ainda pudesse enviar as páginas por e-mail para a gráfica,
mas ninguém conseguiria entregar o jornal pronto pela manhã. Ela calculava que, de manhã, ninguém conseguiria
chegar a menos de 8 quilômetros da fronteira de Mill. Nenhuma das fronteiras. Por sorte, havia um bom geradorzão
na antiga sala da impressora, a máquina de xerox era um monstro e havia mais de quinhentas resmas de papel
estocadasnos fundos. Se conseguisse que Pete Freeman a ajudasse... ou Tony Guay, que cobria esportes.
Enquanto isso, Horace finalmente assumira a posição. Quando terminou, ela entrou em ação com um saquinho
verde chamado Doggie Doo, perguntando-se o que Horace Greeley pensaria de um mundo no qual catar da sarjeta
bosta de cachorro, além de socialmente esperado, era também uma responsabilidade imposta pela lei. Ela achou
que talvez tivesse se matado.
Depoisde encher e fechar o saquinho, ela experimentou o telefone outra vez. Nada.
Levou Horace para dentro e lhe deu comida.
O celular tocou quando ela abotoava o casaco para ir de carro até a barreira. Estava com a câmera pendurada no
ombro e quase a deixou cair ao remexer o bolso. Olhou o número e viu aspalavras NÚMERO NÃO IDENTIFICADO.
— Alô? — disse, e devia haver alguma coisa na sua voz, porque Horace — que aguardava junto à porta, mais do
que disposto a uma expedição noturna agora que estava limpo e alimentado — apontou as orelhas e virou a cabeça
para olhá-la.
— Sra. Shumway? — Vozde homem. Abrupta. Oficial.
— Srta. Shumway. Com quem estou falando?
— Coronel James Cox, srta. Shumway. Exército dos Estados Unidos.
— E a que devo a honra da ligação? — Ela ouviu o sarcasmo na própria voz e não gostou, não era profissional,
masestava com medo, e o sarcasmo sempre fora sua reação ao medo.
— Preciso fazer contato com um homem chamado Dale Barbara. A senhorita conhece?
É claro que conhecia. E se surpreendera ao vê-lo no Mosqueta mais cedo. Ele era maluco de ainda estar na
cidade? A própria Rose não dissera ontem mesmo que ele pedira demissão? A história de Dale Barbara era uma das
centenas que Julia conhecia mas não publicava. Quem edita um jornal de cidade pequena fecha os olhos a muitas
coisas complicadas. É preciso escolher as lutas. Do mesmo modo que tinha certeza de que Junior Rennie e os
amigos escolhiam as deles. E ela duvidava muito que os boatos sobre Barbara e Angie, a melhor amiga de Dodee,
fossem verdadeiros. No mínimo, achava que Barbara teria maisbom gosto.
— Srta. Shumway? — Ríspido. Oficial. Uma vozdo lado de fora. Só por isso ela já não gostaria do dono da voz. —
Está me ouvindo?
— Estou. É, eu conheço Dale Barbara. Trabalha como cozinheiro no restaurante da rua principal. Por quê?
— Parece que ele não tem celular e ninguém atende no restaurante...
— Está fechado...
— ... e os telefones fixosnão funcionam, naturalmente.
— Nada parece funcionar direito na cidade hoje, coronel Cox. Inclusive os celulares. Mas notei que o senhor não
teve dificuldade de me encontrar, o que me faz achar que talvez seus parceiros sejam os responsáveis. — Sua fúria,
como o sarcasmo, vinda do medo, a surpreendeu. — O que o senhor fez? O que vocês fizeram?
— Nada. Até onde eu sei, nada.
Ela ficou tão surpresa que não conseguiu pensar no que dizer depois. O que era muito improvável na Julia
Shumwayque osantigos moradoresde Mill conheciam.
— Quanto aos celulares, sim — disse ele. — As ligaçõesde e para Chester’s Millestão praticamente interrompidas
agora. No interesse da segurança nacional. E com todo o devido respeito, a senhorita faria o mesmo no nosso lugar.
— Duvido muito.
— Duvida? — Ele parecia interessado, não zangado. — Numa situação sem precedentes na história do mundo e
indicativa de tecnologias muito além do que nósou qualquer pessoa consegue sequer entender?
Maisuma vez, ela se viu sem resposta.
— É importantíssimo que eu fale com o capitão Barbara — disse ele, voltando ao roteiro original. De certa forma,
Julia ficou surpresa por ele ter saído tanto do padrão.
— Capitão Barbara?
— Reformado. A senhorita consegue encontrá-lo? Leve o celular. Vou lhe dar um número pra ligar. A ligação vai
se completar.
— Por que eu, coronel Cox? Por que o senhor não ligou para a delegacia? Ou para algum dos vereadores? Acho
que os trêsestão por aqui.
— Nem tentei. Crescinuma cidade pequena, srta. Shumway...
— Ponto pra você.
— ... e, na minha experiência, nas cidades pequenas os políticos sabem um pouco, os policiais sabem muito e o
editor do jornal local sabe tudo.
Isso a fez rir contra a vontade.
— Por que se preocupar em telefonar se vocês dois podem se encontrar frente a frente? Comigo como
acompanhante, é claro. Eu vou até o meu lado da barreira, estava de saída quando o senhor ligou. Procuro Barbie
e...
— Ele ainda é chamado assim, é? — Coxparecia divertido.
— Vou procurá-lo e levo ele comigo. Podemos ter uma minientrevista coletiva.
— Não estou no Maine. Estou em Washington. Com os chefesdo Estado-Maior conjunto.
— Isso é pra me impressionar? — Embora impressionasse um pouco.
— Srta. Shumway, estou ocupado e provavelmente a senhora também. Assim, no interesse de resolver essa
coisa...
— O senhor acha isso possível?
— Pode parar — disse ele. — Sem dúvida a senhorita foi repórter antes de ser editora e tenho certeza de que
fazer perguntas é natural para a senhorita, mas agora o tempo é um fator importante. A senhorita vai fazer o que
pedi?
— Faço. Mas se quer ele, vai ter a mim também. Vamosaté a 119 e telefonamosde lá.
— Não — disse ele.
— Tudo bem — disse ela, amigável. — Foi muito bom conversar com o senhor, coronel...
— Deixe eu acabar. O seu lado da 119 está totalmente TOFU. Isso significa...
— Conheço a expressão, coronel, já li muito Tom Clancy. O que exatamente o senhor quer dizer em relação à
rodovia 119?
— Desculpe a vulgaridade, mas é que aquilo lá parece a noite de estréia de um bordel gratuito. Metade da cidade
estacionou carrose picapesnosdois ladosda estrada e no pasto de um criador de gado de leite.
Ela pousou a câmera no chão, pegou um bloco de notas no bolso do casaco e rabiscou Cel. James Cox e Como
noite de estreia de bordel gratuito. Depois acrescentou fazenda Dinsmore? É, provavelmente ele estava falando da
propriedade de Alden Dinsmore.
— Tudo bem — disse ela —, o que o senhor sugere?
— Olha, a senhorita tem toda a razão, não posso impedir que vá até lá. — Ele suspirou, o som parecendo indicar
que o mundo era injusto. — E não posso impedir que a senhorita publique isso no seu jornal, embora ache que não
importa, já que ninguém fora de Chester’s Mill vai ver.
Ela parou de sorrir.
— O senhor se incomodaria de explicar isso?
— Eu me incomodaria sim, e a senhorita vai entender por conta própria. A minha sugestão é que, se quer ver a
barreira, embora na verdade não dê para ver, como acredito que já lhe disseram, é melhor levar o capitão Barbara
até onde ela corta a estrada municipalnúmero 3. Conhece a estrada municipalnúmero 3?
Por um instante, não. Depoispercebeu do que ele falava e riu.
— Alguma coisa engraçada, srta. Shumway?
— Em Mill, o pessoal chama de Estrada da Bostinha. Porque na estação das chuvasé uma bosta de estrada.
— Muito interessante.
— Nenhuma multidão na Bostinha, então?
— Nenhuma agora.
— Tudo bem. — Ela pôs o bloco no bolso e pegou a câmera. Horace continuava a aguardar com paciência junto à
porta.
— Ótimo. Quando posso aguardar a sua ligação? Ou melhor, a ligação do Barbie no seu celular?
Ela olhou o relógio e viu que acabava de passar dasdez. Em nome de Deus, como ficara tão tarde tão cedo?
— Vamosestar lá por volta de deze meia, supondo que eu consiga encontrá-lo. E acho que eu consigo.
— Tudo bem. Dizpra ele que o Ken disse oi. É uma...
— Uma brincadeira, certo, eu entendi. Alguém vainosencontrar?
Houve uma pausa. Quando ele falou de novo, ela sentiu a relutância. — Vai haver luzes, sentinelas e soldados
cuidando de um bloqueio na estrada, mas receberam ordensde não falar com os moradores.
— Não falar... por quê? Em nome de Deus, por quê?
— Se essa situação não se resolver, srta. Shumway, tudo isso vai ficar claro. A maior parte a senhorita, que
parece ser muito inteligente, vaientender sozinha.
— Bom, foda-se muito, coronel! — gritou ela, ferida. Na porta, Horace espetou asorelhas.
Cox riu, um grande riso nada ofendido.
— Certo, minha senhora, escutei muito bem. Deze meia?
Ela ficou tentada a dizer não, masé claro que não seria possível.
— Deze meia. Supondo que eu o encontre. Ligo para o senhor?
— A senhorita ou ele, masé com ele que eu preciso falar. Vou aguardar com a mão no telefone.
— Então me dá o número mágico. — Ela prendeu o telefone contra o ombro e remexeu no bolso de novo atrás do
bloco. É claro que a gente sempre precisa do bloco outra vez depois de guardá-lo; é um fato da vida quando se é
repórter, coisa que ela era agora. De novo. O número que ele lhe deu a assustou mais do que tudo o que dissera. O
código de área era 000.
— Maisuma coisa, srta. Shumway: a senhorita usa marca-passo? Aparelho auditivo? Algo do tipo?
— Não. Por quê?
Ela pensou que ele não ia responder, mas respondeu.
— Perto da Redoma, há uma certa interferência. Não faz mal nenhum para a maioria das pessoas, que sente só
um choque elétrico leve que some um ou dois segundos depois, mas com os aparelhos eletrônicos é um inferno.
Alguns desligam; a maioria dos celulares, por exemplo, se chegarem a menos de um metro e meio; e outros
explodem. Se a senhorita levar um gravador, ele vai desligar. Já um iPod ou algo sofisticado como um BlackBerry
pode explodir.
— O marca-passo do chefe Perkinsexplodiu? Foi isso que matou ele?
— Dez e meia. Leva o Barbie e não esquece do recado de que o Ken disse oi. Ele desligou, deixando Julia em
silêncio ao lado do cachorro. Ela tentou ligar para a irmã em Lewiston. Os números tocaram... e nada. Silêncio total,
como antes.
A Redoma, pensou ela. — No final, ele não falou barreira; ele falou Redoma.
Barbie tirara a camisa e estava sentado na cama para desamarrar o tênis quando veio a batidinha na porta, à qual
se chegava subindo um lance externo de escada ao lado da Drogaria Sanders. A batida não foi bem-vinda. Ele
andara quase o dia inteiro, depois vestira um aventale cozinhara quase a noite inteira. Estava exausto.
E se fosse Junior com alguns amigos, prontos a lhe preparar uma festa de boas-vindas? Podia-se dizer que era
improvável e até paranoico, mas o dia fora um festival de improbabilidades. Além disso, Junior, Frank DeLesseps e o
resto da turma estavam entre os poucos que ele não vira naquela noite no Mosqueta. Achou que deviam estar na
119 ou na 117 xeretando, mas de repente alguém lhes dissera que ele voltara à cidade e tivessem planejado algo
para mais tarde. Tipo agora.
A batida soou de novo. Barbie se levantou e pôs a mão sobre a TV portátil. Não era lá uma arma, mas causaria
algum dano se jogada no primeiro que tentasse passar pela porta. Havia uma vara de madeira no armário, mas os
três cômodos eram pequenos e ela era comprida demais para ser girada com eficiência. Também havia o canivete
suíço do Exército, masele não ia cortar nada. Não a menosque tivesse que...
— Sr. Barbara? — Era uma vozde mulher. — Barbie? Está em casa?
Ele tirou a mão da TV e atravessou a cozinhazinha.
— Quem é? — Masenquanto perguntava, reconheceu a voz.
— Julia Shumway. Tenho um recado de alguém que quer falar com você. Ele me mandou dizer que o Ken disse
oi.
Barbie abriu a porta e a deixou entrar.
Na sala de reuniões revestida de pinho no subsolo da Câmara de Vereadores de Chester’s Mill, o rugido do
gerador lá dos fundos (um idoso Kelvinator) era só um zumbido amortecido. A mesa no meio da sala era de um belo
bordo vermelho, polida até brilhar, com 3,5 metros de comprimento. Naquela noite, a maioria das cadeiras que a
cercavam estava vazia. Os quatro presentes à Reunião de Avaliação de Emergência, como dizia Big Jim, estavam
amontoadosnuma daspontas. O próprio Big Jim, embora fosse só o segundo vereador, estava à cabeceira da mesa.
Atrásdele havia um mapa mostrando a meia de atletismo do formato da cidade.
Os presentes eram os vereadores e Peter Randolph, chefe de polícia em exercício. O único que parecia
inteiramente atento era Rennie. Randolph parecia chocado e apavorado. Andy Sanders, naturalmente, estava tonto
de pesar. E Andrea Grinnell — uma versão obesa e grisalha de Rose, a irmã maisnova — parecia apenas tonta. Isso
não era novo.
Quatro ou cinco anos antes, numa manhã de janeiro, Andrea escorregara na calçada coberta de gelo a caminho
de verificar a caixa do correio. Caíra com força suficiente para rachar dois discos nas costas (estar com uns 35 ou 40
quilos a mais com certeza não ajudou). O dr. Haskell receitara OxyContin, aquele novo remédio milagroso, para
aliviar a dor que, sem dúvida, era excruciante. E desde então ela o tomava. Graças ao bom amigo Andy, dono da
drogaria local, Big Jim sabia que Andrea começara tomando 40mg por dia e que agora chegara a 400 mg. Era uma
informação útil.
Big Jim disse:
— Devido à terrívelperda do Andy, vou presidir essa reunião se ninguém se opuser. Todos sentimos muito, Andy.
— Pode apostar, senhor — disse Randolph.
— Obrigado — disse Andy e, quando Andrea lhe cobriu rapidamente a mão com a dela, os seus olhos voltaram a
se encher de lágrimas.
— Agora, todos temos uma ideia do que aconteceu aqui — disse Big Jim —, embora ninguém na cidade ainda
entenda...
— Aposto que ninguém fora da cidade também — disse Andrea.
Big Jim a ignorou.
— ... e a presença militar não parece disposta a se comunicar com asautoridadeseleitasda cidade.
— Problema com os telefones, senhor — disse Randolph. Ele era bastante íntimo de todas aquelas pessoas; de
fato, considerava Big Jim um amigo, mas ali na sala achava melhor usar senhor e senhora. Perkins fizera o mesmo
e, ao menosnisso, provavelmente o velho tinha razão.
Big Jim acenou com a mão como se enxotasse uma mosca incômoda.
— Alguém podia ter ido até o lado de Motton ou Tarker e mandado me chamar, nos chamar, e ninguém se dispôs
a fazer isso.
— Senhor, a situação ainda é muito... hã... fluída.
— Sem dúvida, sem dúvida. E é bem possível que por isso ninguém tenha nos deixado a par até agora. Pode ser,
é verdade, e oro para que seja essa a resposta. Espero que todosestejam orando.
Todos concordaram devidamente.
— Mas agora... — Big Jim olhou em volta muito sério. Ele se sentia sério. Mas também se sentia empolgado. E
pronto. Não achava impossível que a sua foto saísse na capa da revista Time antes do fim do ano. Os desastres,
ainda mais do tipo provocado por terroristas, nem sempre eram completamente ruins. Veja só o que fizeram por
Rudy Giuliani. — Agora, senhora e senhores, acho que temos que encarar a possibilidade bem real de estarmos por nossa conta e risco.
Andrea cobriu a boca com a mão. Osolhosbrilharam, de medo ou excesso de analgésico. Talvezambos.
— Será mesmo, Jim?
— Torcer pelo melhor, se preparar para o pior, é o que Claudette sempre diz. — disse Andy, numa voz de
profunda meditação. — Dizia, quer dizer. Ela me fezum belo café da manhã hoje. Ovos mexidose um resto de queijo
para tacos. Meu Deus!
As lágrimas, que tinham diminuído, começaram a jorrar de novo. Mais uma vez, Andrea cobriu a mão dele. Dessa
vez, Andy a segurou. Andy e Andrea, pensou Big Jim, e um sorriso fino amassou a metade inferior do rosto carnudo.
Os Irmãos Burraldos.
— Torcer pelo melhor, planejar para o pior — disse ele. — Que bom conselho. Neste caso, o pior pode significar
dias isolados do mundo exterior. Ou uma semana. Talvez até um mês. — Na verdade, ele não acreditava nisso, mas
fariam mais rápido o que ele queria se ficassem com medo.
Andrea repetiu:
— Será mesmo?
— Simplesmente não sabemos — disse Big Jim. Ao menos, essa era a verdade nua e crua. — Como saber?
— Talvez devêssemos fechar o Food City — disse Randolph. — Ao menos por enquanto. Caso contrário, vai
encher que nem antesde uma nevasca.
Rennie estava irritado. Tinha uma pauta e isso estava nela, masnão em primeiro lugar.
— Ou talveznão seja boa ideia — disse Randolph, ao ler o rosto do segundo vereador.
— Na verdade, Pete, não acho que seja boa ideia — disse Big Jim. — Mesmo princípio de nunca declarar feriado
bancário quando há pouco dinheiro circulando. Só se provoca uma corrida.
— Estamos falando em fechar os bancos também? — perguntou Andy. — O que fazer com os caixas eletrônicos?
Tem um no Brownie’s... no Posto de Gasolina & Mercearia Mill... na minha drogaria, naturalmente... — Ele parecia
vago, e de repente se animou. — Acho até que vium no Posto de Saúde, embora não tenha muita certeza.
Rennie se perguntou se Andrea andara emprestando ao outro algum comprimido.
— Só estava fazendo uma metáfora, Andy. — Mantendo a voz baixa e gentil. Era bem o tipo de coisa a esperar
quando as pessoas fugiam da pauta. — Numa situação dessas, comida é dinheiro, por assim dizer. O que eu estou
dizendo é que osnegóciosdevem continuar como sempre. Isso vai manter a população tranquila.
— Ah — disse Randolph. Isso ele entendia. — Captei.
— Masé preciso conversar com o gerente do supermercado... Como é o nome dele? Cade?
— Cale — disse Randolph. — Jack Cale.
— E também com Johnny Carver do Posto e Mercearia e... quem é que administra o Brownie’s depois que o Dil
Brown morreu?
— Velma Winter — disse Andrea. — Ela é de fora, mas é bem legal. Rennie gostou de ver Randolph escrevendo
osnomesna sua caderneta.
— Diz a essas três pessoas que cerveja e destilados estão proibidos até segunda ordem. — O seu rosto se
apertou numa expressão de prazer bem assustadora. — E o Dipper está fechado.
— Muita gente não vai gostar dessa lei seca — disse Randolph. — Gente como Sam Verdreaux. — Verdreaux era
o pau-d’água mais famoso da cidade, exemplo perfeito, na opinião de Big Jim, de por que a Lei Seca original nunca
deveria ter sido revogada.
— Sam e os outros como ele vão ter que se aguentar quando os seus estoques pessoais de cerveja e pinga
acabarem. Não podemos ter metade da cidade se embebedando como se fosse véspera de ano-novo.
— Por que não? — perguntou Andrea. — Vão acabar com o estoque existente e aí, pronto.
— E se saírem quebrando tudo enquanto isso?
Andrea se calou. Não conseguia entender por que sairiam quebrando tudo — não se tivessem comida —, mas ela
já descobrira que, em geral, discutir com Jim Rennie era improdutivo e sempre cansativo.
— Vou mandar alguns rapazes falarem com eles — disse Randolph.
— Conversa pessoalmente com Tommy e Willow Anderson. — Os Anderson eram os donos do Dipper’s. — Eles
podem criar problemas. — Ele baixou a voz. — Radicais.
Randolph concordou.
— Radicaisde esquerda. Penduraram no bar um retrato do tio Barack.
— Exatamente. — E, ele não precisava dizer, Duke Perkins deixava aqueles dois hippies melequentos
continuarem com osbailese o rockaosberrose a bebedeira até uma da manhã. Protegia osdois. E veja o problema
que isso causou para o meu filho e os amigos dele. Virou-se para Andy Sanders. — Além disso, tranca muito bem
todosos remédios controlados. Sem Nasonexnem Lyrica, esse tipo de coisa. Você sabe o que eu quero dizer.
— Tudo o que as pessoas usam pra ficarem doidonas — disse Andy — já tá bem trancado. — Parecia pouco à
vontade com esse rumo da conversa. Rennie sabia por que, mas não se preocupava agora com os seus vários
interesses comerciais; eles tinham assuntos maisurgentes.
— Ainda assim é melhor tomar maisprecauções.
Andrea parecia alarmada. Andy lhe deu tapinhasamistososna mão.
— Não se preocupa — disse —, sempre temoso suficiente para cuidar de quem realmente precisa.
Andrea sorriu para ele.
— A questão é: essa cidade vai se manter sóbria até o final da crise — disse Big Jim. — Estamos de acordo?
Levantem as mãos.
As mãos se levantaram.
— Agora — disse Rennie — posso voltar pra onde eu queria começar? — Olhou para Randolph, que abriu ambas
as mãosnum gesto que dizia, ao mesmo tempo, vá em frente e sinto muito.
— Precisamos admitir que a população tem razão de estar assustada. E quem está assustado acaba aprontando,
com ou sem bebida.
Andrea olhou o console à direita de Big Jim: interruptores que controlavam a TV, a rádio AM/FM e o sistema de
gravação embutido, inovação que Big Jim detestava.
— Aquilo não devia estar ligado?
— Não vejo necessidade.
O bendito sistema de gravação (sombras de Richard Nixon) fora ideia de um paramédico intrometido chamado
Eric Everett, um filho da putinskide uns 30 e poucos anos conhecido na cidade como Rusty. Everett levantara a ideia
da idiotice do sistema de gravação nas reuniões da Câmara havia dois anos, apresentando-a como um grande salto
à frente. A proposta fora uma surpresa malvista por Rennie, que raramente se surpreendia, ainda mais com quem
não fosse da política.
Big Jim dissera que o custo seria proibitivo. Essa tática costumava funcionar com ianques pães-duros, mas não
daquela vez; Everett apresentara números, provavelmente fornecidos por Duke Perkins, mostrando que o governo
federal pagaria 80%. Um Troço Qualquer de Auxílio a Desastres; um resto dos anos gastadores de Clinton. Rennie
se vira vencido.
Isso não era algo frequente e ele não gostou, mas estava na política há muito mais tempo do que Eric “Rusty”
Everett cutucava próstatase sabia que havia uma grande diferença entre perder uma batalha e perder a guerra.
— Então alguém não deveria fazer uma ata? — perguntou Andrea timidamente.
— Acho melhor manter isso informal, por enquanto — disse Big Jim.
— Só entre nósquatro.
— Bom... se você acha...
— Doispodem manter segredo quando um delesestá morto — disse Andy, sonhador.
— Isso mesmo, parceiro — disse Rennie, como se fizesse sentido. Virou-se para Randolph. — Eu diria que a
nossa maior preocupação, a nossa maior responsabilidade pra com a cidade, é manter a ordem enquanto a crise
durar. O que significa polícia.
— Exatamente! — disse Randolph espertamente.
— Agora, tenho certeza de que o chefe Perkinsestá nosolhando lá de cima...
— Com a minha mulher — disse Andy. — Com Claudie. — Deu uma assoada no nariz catarrento que Big Jim
preferiria dispensar. Ainda assim, deu tapinhasamistososna mão livre de Andy.
— Isso mesmo, Andy, os dois juntos, banhados na glória de Jesus. Mas pra nós aqui na Terra... Pete, que força
você consegue reunir?
Big Jim sabia a resposta. Sabia a resposta de quase todas as suas perguntas. Assim a vida era mais simples.
Havia 18 policiais lotados em Chester’s Mill, 12 em horário integral, seis em meio expediente (estes últimos com mais
de 60 anos, o que deixava o seu serviço muito atraente de tão barato).
Daqueles 18, ele tinha certeza de que cinco dos que trabalhavam em horário integral estavam fora da cidade:
tinham ido ao jogo de futebol da escola secundária naquele dia com a mulher e a família ou à queima controlada em
Castle Rock. Um sexto, o chefe Perkins, estava morto. E, embora jamais falasse mal dos mortos, Rennie tinha
certeza de que a cidade estava bem melhor com Perkins no paraíso do que ali, tentando controlar uma surumbamba
bem além da sua capacidade limitada.
— Vou lhes dizer uma coisa, amigos — disse Randolph —, não é tanta assim. Temos Henry Morrison e Jackie
Wettington, que foram comigo ao Código Três inicial. Temos também Rupe Libby, Fred Denton e George Frederick,
embora ele esteja com tanta asma que não sei se vai ser útil. Estava planejando se aposentar mais cedo no final
desse ano.
— Coitado do George — disse Andy. — Ele praticamente vive à base de Advair.
— E, como sabem, Marty Arsenault e Toby Whelan não estão lá muito bem hoje em dia. A única de meio
expediente que posso dizer que está em forma é Linda Everett. Com aquele maldito exercício dosbombeirose o jogo
de futebol, isso não podia ter acontecido em hora pior.
— Linda Everett? — perguntou Andrea, um pouco interessada. — A mulher de Rusty?
— Pffff! — Big Jim costumava dizer pfff quando estava irritado. — É só uma guarda de trânsito metida a besta.
— Sim, senhor — disse Randolph —, mas se qualificou na prova de tiro ao alvo em Rock no ano passado e tem
armamento. Não há razão para ela não usá-lo e trabalhar. Talvez não em horário integral, os Everett têm filhos, mas
ela pode ajudar. Afinalde contas, é uma crise.
— Sem dúvida, sem dúvida. — Mas imagine se Rennie ia querer ver Everetts pulando feito boneco de mola em
todo canto para onde ele se virasse. Conclusão: não queria a mulher daquele melequento na equipe principal. Ainda
mais porque ela ainda era bem nova, 30 anos, no máximo, e bonita pra diabo. Ele tinha certeza de que seria má
influência sobre os outros homens. Mulheres bonitas sempre são. Wettington e os seus peitos bombásticos já eram
ruinsdemais.
— Então — disse Randolph —, dos18 só ficaram oito.
— Você esqueceu de se contar — disse Andrea.
Randolph bateu o punho na testa, como se tentasse fazer o cérebro pegar no tranco.
— Ah, claro. Certo. Nove.
— Não basta — disse Rennie. — Precisamos engordar a tropa. Só temporariamente, entende, até que essa
situação se resolva.
— Em quem você está pensando, senhor? — perguntou Randolph.
— No meu filho, pra começar.
— Junior? — Andrea ergueu as sobrancelhas. — Ele nem tem idade pra votar... ou tem?
Big Jim visualizou rapidamente o cérebro de Andrea: 15% de sites de compra prediletos, 80% de receptores de
ópio, 2% de memória e 3% de verdadeiro processo de pensamento. Mas era com aquilo que ele teria que trabalhar.
E, disse a si mesmo, a estupidezdosparceiros torna a vida mais simples.
— Na verdade, já tem 21 anos. Faz 22 em novembro. E por sorte ou pela graça de Deus, veio da faculdade pra
passar o fim de semana em casa.
Peter Randolph sabia que Junior Rennie viera da faculdade permanentemente; vira isso escrito no caderno
telefônico da sala do falecido chefe no início da semana, embora não soubesse como Duke obtivera a informação
nem por que a achara importante a ponto de anotá-la. Havia outra coisa escrita também: Problemas
comportamentais?
Masprovavelmente não era uma boa hora para passar essa informação a Big Jim.
Rennie continuava, agora com a voz entusiasmada do apresentador de um programa de auditório que anuncia um
prêmio especialmente suculento na Rodada de Bônus.
— E Junior tem três amigos que também seriam adequados: Frank DeLesseps, Melvin Searles e Carter
Thibodeau.
Maisuma vez, Andrea ficou inquieta.
— Hum... essesnão eram osgarotos... os rapazes... envolvidosnaquela altercação no Dipper’s...?
Big Jim lhe deu um sorriso de ferocidade táo afávelque Andrea se encolheu na cadeira.
— Aquela história foi exagerada. E provocada pelo álcool, como a maioria dos problemas. Além disso, o tal
Barbara é que provocou. E por isso não houve acusações. Foiuma bobagem. Estou errado, Peter?
— De jeito nenhum — disse Randolph, embora ele também parecesse inquieto.
— Todoseles têm ao menos21 anose acredito que Carter Thibodeau tenha 23.
Thibodeau tinha mesmo 23 anos e estava trabalhando em meio expediente como mecânico no Posto de Gasolina
& Mercearia Mill. Fora demitido de doisempregosanteriores — questõesde temperamento, disseram a Randolph —,
mas parecia ter se acalmado no posto. Johnny dizia que nunca vira ninguém com tanto jeito para sistemas de
exaustão e sistema elétrico.
— Todos já caçaram juntos, têm boa pontaria...
— Torça para que ninguém tenha que comprovar isso — disse Andrea.
— Ninguém vai atirar em ninguém, Andrea, e ninguém está sugerindo que esses rapazes se tornem policiais em
horário integral. O que eu estou dizendo é que precisamos completar um plantel extremamente desfalcado, e logo. O
que acha, chefe? Podem trabalhar até que a crise acabe e nósospagaremos com o fundo de contingência.
Randolph não gostava da ideia de Junior andando armado pelas ruas de Chester’s Mill — Junior com os possíveis
problemas comportamentais —, mas também não gostava da ideia de enfrentar Big Jim. E poderia mesmo ser boa
ideia ter mais alguns homens à mão. Mesmo que fossem jovens. Ele não previa problemas na cidade, mas poderiam
controlar a multidão onde as principais estradas chegavam à barreira. Se a barreira ainda estivesse lá. E se não
estivesse? Problema resolvido.
Deu um sorriso de jogador do mesmo time.
— Sabe, acho que é uma ótima ideia, senhor. Manda elespra delegacia amanhã àsdez...
— Àsnove seria melhor, Pete.
— Àsnove está bom — disse Andy com a sua voz sonhadora.
— Algo maisa discutir? — perguntou Rennie.
Não havia mais nada. Andrea estava com cara de quem teria algo a dizer, mas não conseguia se lembrar do que
era.
— Então vou fazer a pergunta — disse Rennie. — A comissão vai pedir ao chefe interino Randolph que aceite Junior, Frank DeLesseps, Melvin Searlese Carter Thibodeau como policiais com salário mínimo da categoria? Sendo
que o período de serviço vai durar até a solução dessa situação maluca? Os que estiverem a favor, votem do jeito
normal.
Todos levantaram a mão.
— A medida está aprov...
Ele foi interrompido por duas explosões que pareciam tiros. Todos pularam. Então veio a terceira, e Rennie, que
trabalhara com motoresquase a vida toda, reconheceu o que eram.
— Relaxa, gente. É só a descarga. O gerador está limpando a gargan...
O idoso gerador explodiu uma quarta vez e desligou. A luz se apagou, deixando-os por um instante num negrume
estígio. Andrea guinchou.
À esquerda dele, Andy Sandersdisse:
— Meu Deus, Jim, o gás...
Rennie estendeu a mão livre e segurou o braço de Andy. Andy se calou. Quando Rennie começou a relaxar a
mão, a luz voltou à sala comprida revestida de pinho. Não as luzes fortes do teto, mas as lâmpadas quadradas de
emergência montadasnos cantos. Sob o seu brilho fraco, os rostos reunidosna ponta da mesa de reuniõespareciam
amarelose anos mais velhos. Pareciam assustados. Até Big Jim Rennie parecia assustado.
— Sem problemas — disse Randolph, com uma animação que parecia fabricada e não orgânica. — O botijão
secou, só isso. Tem bastante no depósito da cidade.
Andy deu uma olhada em Big Jim. Não foi mais do que um passar de olhos, mas Rennie achou que Andrea tinha
visto, O que ela poderia vir a entender era outra questão.
Ela esquecerá depoisda próxima dose de Oxy, disse a si mesmo. Pela manhã, com certeza.
Enquanto isso, o suprimento de gás da cidade — ou a sua falta — não o preocupava muito. Cuidaria da situação
quando fosse necessário.
— Certo, parceiros, sei que estão tão ansiosos quanto eu para sair daqui, então vamos para o próximo ponto.
Acho que devíamos confirmar o Pete oficialmente como nosso chefe de polícia interino.
— Claro, por que não? — perguntou Andy. Parecia cansado.
— Se não há mais discussões
unior estava sentado no degrau da frente da grande casa dos Rennie na rua Mill quando as luzes do Hummer do
pai surgiram pela entrada de automóveis. Junior estava em paz. A dor de cabeça não voltara. Angie e Dodee foram
guardadas na despensa dos McCain, onde estariam bem — ao menos por algum tempo. O dinheiro que pegara
estava de volta ao cofre do pai. Tinha uma arma no bolso — o 38 de coronha de madrepérola que o pai lhe dera
quando fez 18 anos. Agora, ele e o pai conversariam. Junior escutaria com muita atenção o que o Rei dos Sem
Entrada tivesse a dizer. Se sentisse que o pai sabia o que ele, Junior, fizera — ele não via como seria possível, mas
o pai sabia tanto —, Junior o mataria. Depoisdisso, apontaria a arma para si mesmo. Porque não haveria como fugir,
não naquela noite. Talvez nem amanhã. No caminho de volta, parara no parque da cidade e escutara as conversas
que havia por lá. O que diziam era loucura, mas a grande bolha de luz ao sul — e a outra menor a sudoeste, por
onde a 117 seguia para Castle Rock — indicava que, naquela noite, por acaso, a loucura podia ser verdade.
A porta do Hummer se abriu e bateu. O pai andou na direção dele, a pasta batendo na coxa. Não parecia
desconfiado, cansado nem zangado. Sentou-se ao lado de Junior no degrau sem dizer palavra. Então, num gesto
que pegou Junior totalmente de surpresa, pôsa mão na nuca do rapaze apertou de leve.
— Já soube? — perguntou.
— Um pouco — disse Junior. — Masnão entendi.
— Nenhum de nós entendeu. Acho que agora vão vir uns dias difíceis enquanto isso se resolve. Por isso, tenho
que te pedir uma coisa.
— O que é? — A mão de Junior se fechou na coronha da pistola.
— Você vai fazer sua parte? Você e os seusamigos? Frankie? Carter e o garoto Searles?
Junior ficou calado, aguardando. Que merda era aquela?
— Agora Peter Randolph é o chefe interino. Vai precisar de gente para completar o efetivo da polícia. Homens
bons. Está disposto a trabalhar como policialaté essa maldita surumbamba acabar?
Junior sentiu uma vontade louca de gritar de riso. Ou de triunfo. Ou ambos. A mão de Big Jim ainda estava na sua
nuca. Não apertava. Não beliscava. Quase... acariciava.
Junior soltou a arma no bolso. Ocorreu-lhe que ainda estava com sorte — a maré de sorte mais sortuda de todas.
Naquele dia, matara duasgarotasque conhecia desde a infância. No dia seguinte, seria um policialda cidade.
— Claro, pai — disse ele. — Se precisa de nós, estamos aí. — E, pela primeira vez em quatro anos, talvez (senão
mais), beijou o rosto do pai.

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Under The DomeOnde histórias criam vida. Descubra agora