ESTRELAS COR-DE-ROSA CAINDO

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Barbie e Rusty saíram e respiraram fundo ao ar livre. Havia um travo de fumaça do incêndio recém-apagado a
oeste da cidade, mas o ar parecia bem fresco depois dos vapores de exaustão no depósito. Uma brisinha lânguida
tocou de leve o rosto dos dois. Barbie levava o contador Geiger numa sacola de compras marrom que achara no
abrigo antirradiação.
— Essa merda não vaiaguentar — disse Rusty. O rosto estava fechado e decidido.
— E o que você vai fazer? — perguntou Barbie.
— Agora? Nada. Vou voltar pro hospitale fazer a ronda. Mashoje à noite pretendo bater na porta do Jim Rennie e
pedir uma boa explicação. É melhor que ele possa explicar, e é melhor que esteja com o resto do nosso gás, porque
o do hospital vaiacabar depoisde amanhã, mesmo desligando tudo o que não for essencial.
— A situação pode estar resolvida até depoisde amanhã.
— Você acredita nisso?
Em vezde responder, Barbie disse:
— Pressionar o vereador Rennie agora pode ser bem perigoso.
— Só agora? Nada mostra tão bem que você é novo na cidade. Eu ouço isso sobre Big Jim por todos os 10 mil
anos, mais ou menos, em que ele vem mandando na cidade. Ou ele manda o povo se catar ou implora paciência.
“Pelo bem da cidade”, é o que ele diz. Esse é o número um na parada de sucessosdele. Em março, a assembléia da
cidade é uma piada. Uma lei que autorize um novo sistema de esgotos? Sinto muito, a cidade não pode arcar com
tanto imposto. Uma lei pra autorizar mais zonas comerciais? Grande ideia, a cidade precisa de mais receita, vamos
construir um Walmart na 117. O Estudo Ambiental de Cidades Pequenas da Universidade do Maine diz que tem
efluentes demais no lago Chester? Os vereadores recomendam o engavetamento da discussão porque todo mundo
sabe que esses estudos científicos são feitos por ateus humanistas radicais de coração mole. Mas o hospital é pro
bem da cidade, você não acha?
— É, acho. — Barbie ficou um pouco confuso com essa explosão.
Rusty fitou o chão com as mãosno bolso de trás. Depois, ergueu osolhos.
— Disseram que o presidente te mandou assumir o controle. Acho que está mais do que na hora de você fazer
isso.
— É uma ideia. — Barbie sorriu. — Só que... Rennie e Sanders têm a polícia deles; cadê a minha?
Antesque Rusty respondesse, o celular tocou. Ele o abriu e olhou a telinha.
— Linda? O quê?
Ele escutou.
— Tudo bem, entendi. Se você tem certeza de que as duas estão bem agora... E foi mesmo a Judy? Não foi a
Janelle?
Escutou um pouco maise continuou.
— Acho que no fundo a notícia é boa. Eu vi duas outras crianças hoje de manhã, ambas com convulsões
transitórias que passaram depressa, bem antes que eu as visse, e ficaram bem depois. Ligaram sobre mais três.
Ginny T. cuidou de maisuma. Pode ser um efeito colateralda força que alimenta a Redoma.
Ele escutou.
— Porque eu não tive tempo — disse ele. A vozpaciente, sem confronto.
Barbie conseguiu imaginar a pergunta que provocara a resposta: Crianças tiveram convulsões o dia todo e só
agora você me conta?
— Vai buscar as meninas? — perguntou Rusty. Escutou. — Certo. Isso é bom. Se pressentir algo errado, me liga
logo. Eu vou correndo. E deixe a Audi sempre com elas. Isso. Hã-hã. Amo você também. — Ele pendurou o celular
no cinto e passou as duas mãos pelo cabelo com força suficiente para os olhos parecerem chineses por um
tempinho. — Meu Jesus Cristinho.
— Quem é a Audi?
— A nossa golden retriever.
— Me fala dessas convulsões.
Rusty explicou, sem omitir o que Jannie dissera sobre o Halloween e o que Judy dissera sobre estrelas cor-de-
rosa.
— Isso de Halloween parece o que o menino Dinsmore estava delirando — disse Barbie.
— Parece, não é?
— E asoutras crianças? Alguma delas falou de Halloween? Ou estrelas cor-de-rosa?
— Os pais com quem eu conversei hoje disseram que os filhos balbuciavam durante as convulsões, mas ficaram
apavoradosdemaispra prestar atenção.
— As criançasnão se lembram?
— Elasnem sabem que tiveram convulsões.
— Isso é normal?
— Não é anormal.
— Alguma possibilidade de a sua caçula estar imitando a mais velha? Talvez.., sei lá... querendo atenção?
Rustynão pensara nisso; na verdade, não tivera tempo. Agora pensou.
— É possível, masnão provável. — Apontou com a cabeça o antiquado contador Geiger amarelo na sacola. — Vai
sair procurando com essa coisa?
— Eu, não — disse Barbie. — Essa gracinha é propriedade municipal e as autoridades constituídas não vão muito
com a minha cara. Não seria bom se me pegassem com ele. — E estendeu a sacola para Rusty
— Não posso. Estou ocupado demaispor enquanto.
— Eu sei — disse Barbie, e explicou a Rusty o que queria que fizesse. Rusty ouviu com atenção, sorrindo um
pouco.
— Tudo bem — disse. — Pra mim está bom. O que você vai fazer enquanto eu cumpro a sua missão?
— Preparar o jantar no Rosa Mosqueta. O especial de hoje é frango à Barbara. Quer que eu mande uma
quentinha pro hospital?
— Maravilha — respondeu Rusty.
No caminho de volta para o Cathy Russell, Rusty parou na redação do Democrata e entregou o contador Geiger a
Julia Shumway.
Ela escutou a transmissão das instruçõesde Barbie, sorrindo de leve.
— Esse aí sabe delegar funções, isso eu tenho que admitir. Cuido disso com prazer.
Rustypensou em avisá-la para ter cuidado com quem a visse com o contador Geiger da cidade, masnão precisou.
A sacola sumiu debaixo da escrivaninha.
A caminho do hospital, telefonou para Ginny Tomlinson e perguntou sobre o caso de convulsão que ela atendera.
— Um garotinho chamado Jimmy Wicker. O avô telefonou. Bill Wicker?
Rustyo conhecia. Billentregava a correspondência.
— Ficou tomando conta do Jimmyenquanto a mãe do garoto foiabastecer o carro. Aliás, o Posto e Mercearia está
quase sem gasolina comum, Johnny Carver teve coragem de subir o preço pra trêsdólareso litro. Três!
Rusty suportou isso com paciência, pensando que era melhor do que ter essa conversa com Ginny frente a frente.
Estava quase chegando ao hospital. Quando ela terminou de reclamar, ele perguntou se o pequeno Jimmy dissera
alguma coisa durante a convulsão.
— Disse, sim. Bill contou que ele balbuciou bastante. Acho que era alguma coisa sobre estrelas cor-de-rosa. Ou
Halloween. Ou talvezeu esteja confundindo com o que Rory Dinsmore disse depoisdo tiro. Todo mundo falou disso.
É claro que falaram, pensou Rusty, preocupado. E vão falar disso também se descobrirem. Como provavelmente
vaiacontecer.
— Tudo bem — disse ele. — Obrigado, Ginny.
— Quando você volta, caubói?
— Já estou quase aí.
— Ótimo. Porque temosuma nova paciente. Sammy Bushey. Foi currada.
Rustygemeu.
— Tem mais. Piper Libby trouxe ela pra cá. Não consegui tirar da moça o nome dos agressores, mas acho que a
Piper conseguiu. Saiu daqui como se o cabelo estivesse pegando fogo e o cu... — Uma pausa. Ginny deu um bocejo
tão alto que Rustyouviu. — ... o cu em chamas.
— Ginny, querida, quando foique você dormiu pela última vez?
— Estou bem.
— Vaipra casa.
— Está brincando? — Com vozhorrorizada.
— Não. Vai pra casa. Dorme. E não liga o despertador. — Então, ele teve uma ideia. —- No caminho, dá uma
passadinha no Rosa Mosqueta, que tal? Vão servir frango. Soube de fonte confiável.
— Sammy Bushey...
— Cuido dela em cinco minutos. E você vaidar uma de abelha e sair zumbindo.
Ele desligou o celular antesque ela pudesse protestar outra vez.
— Encontrei. — Junior lhe disse o que encontrara.
— Excelente, filho. Excelente mesmo. E você pode me contar onde pôs... onde pôsele?
Devagar, Junior fezque não com a cabeça, masosolhospermaneceram o tempo todo no mesmo lugar: presosno
rosto do pai. Era meio esquisito.
— O senhor não precisa saber. Já disse isso. É um lugar seguro, e isso basta.
— Então agora você vai me dizer o que eu preciso saber. — Masdisse isso sem o ardor de sempre.
— Neste caso, vou.
Big Jim examinou o filho com atenção.
— Tem certeza de que você está bem? Está pálido.
— Estou bem. É só dor de cabeça. Já está passando.
— Por que não come alguma coisa? Ainda tem fettuccine no congelador e o micro-ondas esquenta muito bem. —
Ele sorriu. — É bom aproveitar enquanto a gente pode.
Os olhos escuros e pensativos caíram um instante na poça de molho branco no prato de Big Jim e depois subiram
de novo até o rosto do pai.
— Não estou com fome. Quando eu devo encontrar os corpos?
— Corpos? — Big Jim o fitou. — O que você quer dizer com corpos?
Junior sorriu, os lábios se erguendo só o bastante para mostrar a ponta dosdentes.
— Nada, nada. Vai ser melhor pra credibilidade se você se surpreender como todo mundo. Digamos assim...
quando a gente puxar o gatilho, essa cidade vai ter vontade de enforcar Baaarbie num pé de maçã verde. Quando
quer começar? Hoje à noite? Porque vaidar certo.
Big Jim pensou na pergunta. Olhou o bloco amarelo. Estava coalhado de anotações (e respingado de molho
alfredo), mas só uma estava sublinhada: piranha do jornal.
— Hoje não. Podemosusá-lo pra maisdo que a morte Coggins se jogarmosdireito.
— E se a Redoma sumir durante o jogo?
— Sem problemas — disse Big Jim. Pensando, E se o sr. Barbara conseguir escapulir da armação, pouco
provável, masasbaratas sempre conseguem achar rachadurasquando a luz se acende, sempre temos você. Você e
os seusoutros corpos. — Agora vai comer alguma coisa, mesmo que seja só uma salada.
Mas Junior não se mexeu.
— Não espere demais, pai — disse ele.
— Não vou esperar.
Junior examinou o caso, examinou o pai com aqueles olhos escuros que agora pareciam tão estranhos, e depois
pareceu perder o interesse. Bocejou.
— Vou subir pro quarto e dormir um pouco. Depoiseu como.
— Não deixa de comer. Você está ficando magro demais.
— Ser magro está na moda — respondeu o filho, e deu um sorriso vazio que era ainda mais inquietante do que os
olhos. Para Big Jim, parecia o sorriso de uma caveira. Isso o fez pensar no sujeito que agora só se intitulava o Chef,
como se a vida anterior como Phil Bushey tivesse sido eliminada. Quando Junior saiu do escritório, Big Jim deu um
suspiro de alívio sem nem tomar consciência disso.
Pegou a caneta: tanta coisa a fazer. Ele faria, e faria direito. Não era impossível que, quando aquilo acabasse, a
foto dele fosse parar na capa da revista Time.
Com o gerador ainda funcionando — embora isso não fosse durar muito tempo, a menos que ela encontrasse
mais alguns cilindros de gás —, Brenda Perkins conseguiu ligar a impressora do marido e fazer uma cópia em papel
de tudo o que estava na pasta VADER. A lista inacreditávelde crimesque Howie compilara — e que, aparentemente,
estava prestes a usar na época da sua morte — lhe pareceu mais real em papel que na tela do computador. E
quanto mais olhava, mais parecia se encaixar no Jim Rennie que ela conhecia quase a vida toda. Sempre soubera
que ele era um monstro; só não sabia que era um monstro tão grande.
Até as coisas sobre a igreja fanática de Coggins se encaixavam... embora, se ela tivesse lido direito, na verdade
não era uma igreja, mas uma enorme Brastemp santa que lavava dinheiro em vez de roupa. Dinheiro de uma
operação de produção de drogas que, nas palavras do marido, “talvez seja uma das maiores na história dos Estados
Unidos”.
Mas havia problemas, como admitiam tanto o chefe de polícia Howie “Duke” Perkins quanto o procurador-geral do
estado. Os problemas explicavam por que a fase de coleta de provas da Operação Vader demorara tanto. Jim
Rennie não era só um monstro grande; ele era um monstro esperto. Por isso sempre se contentara em ser segundo
vereador. Tinha Andy Sanderspara lhe abrir caminho.
E para servir de alvo — isso também. Por muito tempo, fora só contra Andy que Howie conseguira provas
concretas. Ele era testa de ferro e provavelmente nem sabia, por ser um imbecil tão alegre e efusivo. Andy era o
primeiro vereador, o primeiro diácono da Sagrado Redentor, o primeiro no coração dos habitantes da cidade e na
frente de um rastro de documentos empresariais que acabavam sumindo nos tortuosos pântanos financeiros de
Nassau e da ilha Grand Cayman. Se Howie e o procurador-geral do estado tivessem se mexido cedo demais, ele
também teria sido o primeiro a ser fotografado segurando um número. Talvez o único, caso acreditasse nas
promessas inevitáveis de Big Jim de que tudo acabaria bem se Andy ficasse calado. E provavelmente ficaria. Quem
melhor do que um bobo para fazer de bobo?
No verão anterior, a situação começara a evoluir rumo ao que Howie considerava o fim do jogo. Foi quando o
nome de Rennie começou a aparecer em alguns documentos obtidos pelo procurador-geral, principalmente nos de
uma empresa de Nevada chamada Town Ventures. O dinheiro da Town Ventures sumira a oeste e não a leste, não
nas Antilhas, mas na China continental, país em que os principais ingredientes dos remédios descongestionantes
podiam ser compradosno atacado com pouca ou nenhuma pergunta.
Por que Rennie permitira tamanha exposição? Howie Perkins só conseguira pensar numa razão: o dinheiro
crescera depressa demais para uma única e santa máquina de lavar. Depois, o nome de Rennie surgiu em
documentos relativos a meia dúzia de outras igrejas fundamentalistas do nordeste. A Town Ventures e as outras
igrejas (sem mencionar meia dúzia de emissoras de rádio religiosas e rádios AM, nenhuma tão grande quanto a
WCIK) foram o primeiro grande erro de Rennie. Deixaram pontas soltas. Essaspontaspoderiam ser puxadase, mais
cedo ou mais tarde — geralmente, mais cedo —, tudo se revelaria.
Você não conseguiu largar o osso, não é?, pensou Brenda, sentada à escrivaninha do marido, estudando os
documentos. Ganhou milhões, talvez dezenas de milhões, e o risco foi ficando absurdo, mas nem assim conseguiu
largar. Como o macaco que fica preso porque não consegue largar a comida. Já tinha uma baita fortuna e continuava
morando naquela velha casa de trêsandarese vendendo carrosnaquela pocilga da 119. Por quê?
Mas ela sabia. Não era o dinheiro; era a cidade. Que ele considerava a cidade dele. Sentado numa praia em
algum lugar da Costa Rica ou administrando uma propriedade bem guardada na Namíbia, Big Jim viraria Small Jim.
Porque um homem sem uma meta, mesmo se tiver uma conta bancária recheada de dinheiro, é sempre um homem
pequeno.
Se ela lhe mostrasse o que tinha, conseguiria um acordo com ele? Obrigá-lo a parar em troca de silêncio? Não
tinha certeza. E temia o confronto. Seria feio, talvez perigoso. Gostaria de ter Julia Shumway com ela. E Barbie. Só
que agora Dale Barbara já era outro alvo.
A voz de Howie, calma e firme, falou na cabeça dela. Você pode se dar ao luxo de esperar um pouco — eu
mesmo esperei pelas últimas provas—, mas não espere demais, querida. Porque quanto mais tempo durar esse
cerco, maisperigoso ele ficará.
Ela pensou em Howie dando ré na entrada de automóveis, parando para pôr os lábios nos dela à luz do sol, a
boca dele quase tão conhecida dela quanto a própria, e certamente tão amada quanto. Acariciando o lado do seu
pescoço ao mesmo tempo. Como se soubesse que o fim estava próximo e que o último toque teria que valer por
todos. Uma ideia fácile romântica, é claro, masela quase acreditou, e osolhos se encheram de lágrimas.
De repente, os documentos e todas as tramoias neles contidas ficaram menos importantes. Nem a Redoma
parecia muito importante. O que importava era o buraco que se abrira tão de repente na sua vida, sugando a
felicidade que ela dera como certa. Ela se perguntou se o pobre idiota do Andy Sanders se sentia do mesmo jeito.
Achou que sim.
Vou esperar 24 horas. Se a Redoma ainda estiver lá amanhã à noite, procuro Rennie com isso aqui — com cópias
disso aqui — e digo a ele que vai ter que renunciar em favor de Date Barbara. Digo que, se não fizer isso, vai ler nos
jornais tudo sobre o seu negócio com drogas.
— Amanhã — murmurou, e fechou osolhos. Dois minutosdepois, dormia na cadeira de Howie.
Em Chester’s Mill, chegara a hora do jantar. Algumas refeições (como frango à moda para umas cem pessoas)
foram preparadas em fogões elétricos ou a gás, cortesia dos geradores que ainda funcionavam na cidade, mas
também houve quem recorresse ao fogão de lenha para poupar o gerador ou porque agora era só lenha que tinham.
A fumaça subiu de centenasde chaminésno ar parado.
E se espalhou.
Depois de entregar o contador Geiger — o destinatário o aceitou de boa vontade, até com ansiedade, e prometeu
começar a usá-lo terça de manhã —Julia foi à Loja de Departamentos Burpee com Horace na coleira. Romeo lhe
dissera que tinha em estoque um par de fotocopiadoras Kyocera novas em folha, ambas ainda na embalagem
original. Ela poderia usá-las.
— Também tenho um pouco de gás escondido — disse, fazendo um carinho em Horace. — Você vai ter o que
precisar, enquanto eu puder cuidar disso, ao menos. Precisamos manter o jornal funcionando, não é? Mais
importante do que nunca, não acha?
Era exatamente o que ela achava, e lhe disse isso. Também lhe deu beijo no rosto.
— Fico te devendo uma, Rommie.
— Que tal um bom desconto no meu folheto semanal de propaganda quando tudo acabar? — Depois, cutucou o
lado do nariz com o indicador, como se tivessem um grande segredo. Talvez tivessem mesmo.
Quando Julia saiu, o celular tocou. Ela o tirou do bolso da calça.
— Alô, Julia falando.
— Boa noite, sra. Shumway.
— Ah, coronel Cox, que maravilha ouvir a sua voz — disse ela animada. — O senhor não pode imaginar como nós, ratosdo campo, ficamosemocionados com ligaçõesde fora da cidade. Como anda a vida fora da Redoma?
— No geral, boa, provavelmente — disse ele. — Aquionde eu estou, está meio capenga. Sabe dos mísseis?
— Eu vielesatingirem o alvo. E ricochetearem. Causaram um belo incêndio do seu lado...
— Não é o meu....
— ... e outro bastante bom do nosso.
— Queria falar com o coronel Barbara — disse Cox. — Que deveria estar com a porra do celular dele agora.
— Tá certo, porra! — gritou ela, com a voz mais animada. — E os que estão na porra do inferno deviam ter uma
porra de água gelada! — Ela parou diante do Posto & Mercearia, agora bem fechado. O cartaz escrito à mão na
vitrine dizia: HR DE AB AMANHÃ 11-14 CHEGUE CEDO!
— Sra. Shumway...
— A gente discute o coronel Barbara num instantinho — disse Julia. — Agora, quero saber duas coisas. Primeiro,
quando vão permitir a imprensa na Redoma? Porque o povo dos Estados Unidos merece mais do que a opinião do
governo a respeito disso, não acha?
Ela esperava que ele dissesse que não achava, que não haveria New York Times nem CNN na Redoma em futuro
próximo, mas Coxa surpreendeu.
— Provavelmente sexta, se nenhum dos outros truques que temos na manga funcionar. Qual a outra coisa que a
senhora quer saber? Seja rápida, porque não sou assessor de imprensa. A faixa salarialdelesé bem maisalta.
— O senhor me ligou, logo, vai ter que falar comigo. Vai ter que me engolir, coronel.
— Sra. Shumway, com todo o devido respeito, o seu celular não é o único de Chester’s Mill a que eu tenho
acesso.
— Disso eu tenho certeza, mas acho que Barbie não vai falar com o senhor se o senhor me dispensar. Ele não
está lá muito contente com o novo cargo de potencial comandante da paliçada.
Cox suspirou.
— Qualé a pergunta?
— Quero saber a temperatura ao sul ou a leste da Redoma — a temperatura verdadeira, ou seja, longe do
incêndio que vocêsprovocaram.
— Por que...
— O senhor tem essa informação ou não? Eu acho que tem ou que pode conseguir. Acho que bem agora o
senhor está diante de uma tela de computador e tem acesso a tudo, talvez até ao número do manequim da minha
lingerie. — Ela fezuma pausa. — E se o senhor disser 44, desligo agora mesmo.
Está exibindo o senso de humor, sra. Shumway, ou a senhora é sempre assim?
— Estou cansada e assustada. Deve ser por isso.
Houve uma pausa no lado de Cox. Ela achou ter escutado o dique das teclasdo computador. Então, ele disse:
— Está fazendo 8 grausem Castle Rock. Isso serve?
— Serve. — A disparidade não era tanta quanto ela temia, mas ainda era considerável — Estou vendo o
termômetro na vitrine do Posto & Mercearia Mill. Marca 14,5 graus Uma diferença de 6,5 graus entre locais a uns 30
quilômetros de distância. A menos que haja uma baita frente quente passando pelo oeste do Maine hoje à noite, eu
diria que há algo errado aqui. Não concorda?
Ele não respondeu à pergunta, maso que ele disse a fezparar de pensar naquilo.
— Vamos tentar outra coisa. Aí pelasnove da noite de hoje. Era o que eu queria contar ao Barbie.
— Nós esperamos que o Plano B funcione melhor do que o Plano A. Neste instante, acho que o nomeado pelo
presidente está alimentando a multidão no Rosa Mosqueta. Dizem que o prato é frango à moda. — Ela conseguia ver
as luzes rua abaixo, e a barriga roncou.
— Pode anotar e passar o recado? — E ela ouviu o que ele não acrescentou: sua bruaca briguenta?
— Com prazer — disse ela. Sorrindo. Porque ela era uma bruaca briguenta. Quando tinha que ser.
— Vamos tentar um ácido experimental. Um composto hidrofluorídrico sintético. Nove vezes mais corrosivo do que
o normal.
— Viva melhor com a química.
— Dizem que, teoricamente, com ele é possívelabrir um buraco em 3 quilômetrosde pedra.
— O senhor trabalha pra gente muito divertida, coronel.
— Vamos tentar no lugar onde a estrada de Motton vai pra... — Houve um farfalhar de papel. — Onde vai pra
Harlow. Espero estar lá.
— Então direiao Barbie pra pedir a alguém que lave a louça.
— Também vainosdar o prazer da sua companhia, sra. Shumway?
Ela abriu a boca para dizer Não perderia isso por nada e foientão que o inferno explodiu na rua.
— O que está acontecendo aí? — perguntou Cox.
Julia não respondeu. Fechou o celular e o enfiou no bolso, já correndo na direção dos gritos. E mais alguma coisa.
Algo que soava como um rugido.
O tiro veio quando ela ainda estava a meio quarteirão de distância.
Piper voltou para o presbitério e encontrou Carolyn, Thurston e os pequenos Appleton à sua espera. Ficou
contente ao vê-los, porque afastaram sua mente de Sammy Bushey. Ao menos temporariamente.
Ela escutou Carolyn descrever a convulsão de Aidan Appleton, maso menino agora parecia bem — comendo uma
pilha enorme de biscoitos tipo goiabinha. Quando Carolyn perguntou se devia levar o menino ao médico, Piper
respondeu:
— Se não houver recaída, acho que podemos supor que a causa foia fome e a empolgação da brincadeira.
Thurston sorriu com melancolia.
— Nósestávamos todosempolgados. Nosdivertindo.
Quanto ao possívelalojamento, Piper pensou primeiro na casa dos McCain, que ficava perto. Só que ela não sabia
onde elesguardavam a cópia da chave.
Alice Appleton estava no chão, dando migalhas de biscoito a Clover. Entre uma oferta e outra, o pastor-alemão
fazia a velha cena do — É o melhor cachorro que eu já vi — ela disse a Piper. — Eu queria que nós pudéssemos ter
um cachorro.
— Eu tenho um dragão — ofereceu Aidan. Estava sentado confortavelmente no colo de Carolyn.
Alice sorriu com indulgência.
— É o A-M-I-G-U invisíveldele.
— Sei — disse Piper. Ela achou que poderiam quebrar uma janela na casa dos McCain; em tempo de guerra,
urubu é frango.
Mas, quando se levantou para ver se o café estava pronto, teve uma ideia melhor.
— A casa dos Dumagen. Eu devia ter pensado nisso antes. Foram a uma conferência em Boston. Coralee
Dumagen me pediu que regasse asplantasdurante a viagem.
— Eu dou aulas em Boston — disse Thurston. — Em Emerson. Editei o número mais recente da Ploughshare. —
E suspirou.
— A chave está debaixo de um vaso de flores à esquerda da porta — disse Piper. — Acho que eles não têm
gerador, mas na cozinha tem um fogão a lenha. — Ela hesitou, pensando Gente da cidade. — Sabem usar fogão a
lenha pra cozinhar sem pôr fogo na casa?
— Fui criado em Vermont — disse Thurston. — A minha tarefa foi cuidar dos fogões, o da casa e o do estábulo,
até ir pra faculdade. O mundo dá voltas, não é? — E suspirou de novo.
— Tenho certeza de que tem mantimentosna despensa — disse Piper.
Carolyn concordou.
— Foio que o zelador da Câmara de Vereadoresdisse.
— E o Juuuun-ior também — intrometeu-se Alice. — Ele é policial. E é gato.
A boca de Thurston se retorceu.
— O policialgato da Alice me atacou — disse. — Ele ou o outro. Nem seiqualé qual.
As sobrancelhasde Piper se ergueram.
— Deu um soco no estômago de Thurse — disse Carolyn, baixinho. — Chamou a gente de imbecis de
Massachusetts, acho que tecnicamente somos mesmo, e riram de nós. Pra mim, foi essa a pior parte, o jeito como
riram de nós. Melhoraram depois que encontraram os garotos, mas... — Ela balançou a cabeça. — Estavam
descontrolados.
E foiassim que Piper voltou a Sammy. Sentiu uma pulsação começar ao lado do pescoço, muito lenta e forte, mas manteve a voz calma.
— Qualera o nome do outro policial?
— Frankie — respondeu Carolyn. — Junior o chamou de Frankie D. Conhece esses caras? Deve conhecer, não é?
— Conheço — disse Piper.
Ela explicou à nova família improvisada onde ficava a casa dos Dumagen — tinha a vantagem de ficar perto do
Cathy Russell, caso o menino tivesse outra convulsão — e, depois que se foram, ficou algum tempo sentada à mesa
da cozinha, tomando chá. Tomava o chá devagar. Um golinho e descansava a xícara. Outro golinho e descansava a
xícara. Clover gemeu. Estava afinado com ela, e ela achou que o cão conseguia sentir a sua raiva.
Talvez mude o meu cheiro. Talvezo deixe maisácido ou coisa assim.
Uma imagem se formava. Nada bonita. Um monte de policiais novos, muito jovens, contratados há menos de 48
horas e já enlouquecendo. O tipo de liberdade que tinham tomado com Sammy Bushey e Thurston Marshall não
contaminaria policiais veteranos como Henry Morrison e Jackie Wettington — ao menos ela achava que não —, mas
e Fred Denton? Toby Whelan? Talvez. Provavelmente. Com Duke no comando, esses camaradas tinham se
comportado direito. Não eram bons, eram o tipo de policial que te dá bronca sem necessidade depois de um sinal de
trânsito, mas tudo bem. Sem dúvida eram os melhores que o orçamento da cidade podia pagar. Mas a mãe dela
gostava de dizer: “O barato sai caro.” E com Peter Randolph no comando...
Era preciso fazer alguma coisa.
Só que ela precisava controlar o seu temperamento. Senão ele a controlaria.
Ela pegou a guia no gancho junto à porta. Clover se ergueu de repente, o rabo balançando, as orelhas apontadas,
osolhosbrilhantes.
— Vamos, seu bobão. Vamosapresentar uma queixa.
O pastor ainda lambia as migalhasde biscoito do focinho quando ela o levou porta afora.
Enquanto andava pela praça da cidade com Clover seguindo impecavelmente à sua direita, Piper sentiu que tinha
controlado seu temperamento. Sentiu-se assim até ouvir o riso. Veio quando ela e Clover se aproximavam da
delegacia. Ela observou os carasexatos cujosnomesarrancara de Sammy Bushey: DeLesseps, Thibodeau, Searles.
Georgia Roux também estava presente, Georgia que os incitara, de acordo com Sammy: Fode essa piranha. Freddy
Denton também estava lá. Estavam sentados no alto da escada de pedra da delegacia, tomando refrigerante,
tagarelando. Duke Perkins jamais permitiria uma coisa daquelas, e Piper refletiu que, se pudesse vê-los de onde
estava, se contorceria no túmulo com tanta rapidezque os seus restos mortaispegariam fogo.
Mel Searles disse alguma coisa e todos caíram de novo na gargalhada, rindo e dando tapinhas uns nos outros.
Thibodeau estava com o braço em volta da garota Roux, a ponta dos dedos na lateral do seio dela. Ela disse alguma
coisa e todos riram ainda mais.
Piper achou que riam do estupro — como fora divertido — e, depois disso, o conselho do pai não teve mais
chance. A Piper que cuidava dos pobres e doentes, que celebrava casamentos e presidia funerais, que aos
domingos pregava caridade e tolerância, foi empurrada com violência para os fundos da mente, onde só poderia
observar como se olhasse por uma vidraça torta e ondulada. Foi a outra Piper que assumiu o controle, aquela que
destruíra o quarto aos15 anos, chorando lágrimasde raiva, não de tristeza.
Havia uma praça calçada de ardósia conhecida como praça Memorial de Guerra entre a Câmara e o prédio de
tijolos mais novo da delegacia. No centro havia uma estátua de Lucien Calvert, pai de Ernie Calvert, que recebera
postumamente uma Estrela de Prata por heroísmo na guerra da Coreia. O nome de outros habitantes de Chester’s
Mill mortos em combate desde a Guerra Civil estava gravado na base da estátua. Também havia dois mastros, a
bandeira americana hasteada num deles, a bandeira do estado, com fazendeiro, marinheiro e alce, no outro. Ambas
pendiam molesà luzavermelhada do pôr do sol iminente.
Piper Libby passou entre os mastros como uma mulher num sonho, Clover ainda atrás do seu joelho direito, com
orelhaserguidas.
Os “policiais” no alto da escada tiveram outro vigoroso ataque de riso, e ela pensou nos gigantes de uma das
histórias de fadas que o pai às vezes lhe contava. Gigantes numa caverna, se regozijando com as pilhas de ouro
maldosamente obtidas. Então, a viram e silenciaram.
— Boa noite, reverenda — disse Mel Searles, levantando-se e dando ao cinto uma puxadinha de autoimportância.
Em pé na presença de uma dama, pensou Piper. Será que a mãe lhe ensinou isso? Provavelmente. A fina arte do
estupro provavelmente aprendeu em outro lugar.
Ele ainda sorria quando ela chegou aos degraus mas depois titubeou e ficou cauteloso, pois deve ter visto a
expressão dela. Exatamente qualera essa expressão ela não sabia. Por dentro, o rosto parecia paralisado. Imóvel.
Ela viu o maior deles observá-la com atenção. Thibodeau, o rosto tão imóvel quanto o dela parecia estar. Ele é
como Clover, pensou. Sente o cheiro. A fúria.
— Reverenda? — perguntou Mel. — Está tudo bem? Houve algum problema?
Ela subiu osdegrausnem depressa, nem devagar, Clover ainda seguindo impecavelmente junto ao joelho direito.
— Pode apostar que há um problema — disse ela, erguendo osolhospara ele.
— O que...
— Você — disse ela. — Você é o problema.
Ela o empurrou. Mel não esperava isso. Ainda segurava o copo de refrigerante. Caiu no colo de Georgia Roux,
abanando os braços inutilmente para se equilibrar, e por um instante o refrigerante foi uma arraia escura pendendo contra o céu avermelhado. Georgia gritou de surpresa quando Mel caiu sobre ela. Ela recuou, derramando o seu
refrigerante. Este foi direto para a laje larga de granito diante das portas duplas. Piper sentiu cheiro de uísque ou
bourbon. As Coca-Colas deles tinham sido incrementadas com o que o resto da cidade não podia mais comprar. Não
admira que estivessem rindo.
A fissura vermelha dentro da sua cabeça se abriu mais.
— A senhora não pode... — começou Frankie, levantando-se. Ela o empurrou. Numa galáxia muito, muito distante,
Clover, em geralo maisdoce dos cães, rugia.
Frankie caiu de costas, espantado, olhos arregalados, por um instante parecendo o menino da escola dominical
que devia ter sido.
— Estupro é o problema! — berrou Piper. — Estupro!
— Cala a boca — disse Carter. Ainda estava sentado e, embora Georgia se encolhesse contra ele, Carter
continuava calmo. Os músculos dos braços se contraíram debaixo da camisa azul de mangas curtas. — Cala a boca
e saidaquiagora mesmo, se não quiser passar a noite numa cela lá embai...
— São vocêsque vão pra uma cela — disse Piper. — Todos vocês.
— Fazela calar a boca — disse Georgia. Não choramingava, masera por pouco. — Fazela calar a boca, Cart.
— Senhora... — Freddy Denton. A camisa do uniforme para fora das calças e hálito de bourbon. Duke teria dado
uma olhada e o posto na rua. Poria todosna rua. Começou a se levantar e dessa vez foiele quem caiu de costas, um
olhar de surpresa no rosto que seria cômico em outras circunstâncias. Era bom que todos estivessem sentados
enquanto ela estava em pé. Facilitava. Mas, ah, como as têmporas pulsavam. Voltou a atenção para Thibodeau, o
mais perigoso, que ainda a olhava com calma enlouquecedora. Como se ela fosse a monstruosidade que ele pagara
25 centspara ver numa barraca de feira. Masele a olhava de baixo, essa era a vantagem dela.
— Mas não vai ser uma cela lá embaixo — disse ela, falando diretamente com Thibodeau. — Vai ser em
Shawshank, onde fazem com valentõesde playground como você o que você fez com aquela moça.
— Sua piranha estúpida — disse Carter. Falava como se comentasse o clima. — Nós nem chegamos perto da
casa dela.
— É isso mesmo disse Georgia, sentando-se reta de novo. Havia Coca-Cola respingada numa das bochechas,
onde uma violenta erupção de acne adolescente estava sarando (mas ainda se agarrava aos últimos postos
avançados). — Além disso, todo mundo sabe que Sammy Busheynão passa de uma lésbica arrombada e mentirosa.
Os lábiosde Piper se abriram num sorriso. Virou-se para Georgia, que se encolhia para longe da mulher louca que
surgira de repente na escada enquanto tomavam umasao pôr do sol.
— Como é que você sabe o nome da lésbica arrombada e mentirosa? Eu não falei.
A boca de Georgia despencou num O de horror. E, pela primeira vez, algo cintilou por trás da calma de Carter
Thibodeau. Se medo ou só chateação, Piper não sabia.
Frank DeLesseps levantou-se cautelosamente.
— É melhor a senhora não sair por aí espalhando acusações sem provas, reverenda Libby.
— Nem atacando policiais — disse Freddy Denton. — Posso deixar passar dessa vez; todo mundo está
estressado; mas a senhora vai ter que parar e desistir dessas acusações agora mesmo. — Ele fez uma pausa e
acrescentou, pouco convincente: — E dosempurrõesé claro.
O olhar de Piper continuava fixo em Georgia, a mão direita fechada com tanta força em torno do punho de plástico
preto da guia de Clover que pulsava. O cachorro estava com as patas da frente abertas e a cabeça baixa, ainda
rugindo. Parecia um poderoso motor externo em marcha lenta. O pelo da nuca se eriçava a ponto de esconder a
coleira.
— Como você sabe o nome dela, Georgia?
— Eu... eu... eu só achei...
Carter agarrou o ombro dela e apertou.
— Cala a boca, linda. — Então, para Piper, ainda sem se levantar (porque não quer ser empurrado que covarde),
disse: — Não sei que tipo de abelha se enfiou nessa cabeça de Jesus, mas ontem à noite nós estávamos todos na
fazenda de Alden Dinsmore. Queríamos ver se conseguíamos tirar alguma informação dos soldadinhos estacionados
na 119, masnão conseguimos. A casa dela é do outro lado da cidade.
Ele olhou osamigos.
— Isso — disse Frankie.
— Exatamente — concordou Mel, olhando Piper desconfiado.
— É! — completou Georgia. O braço de Carter estava de novo em torno dela e o momento de dúvida se fora.
Desafiadora, ela encarava Piper.
— Georgia aqui supôs que a senhora gritava sobre Sammy — continuou Carter, com a mesma calma
enfurecedora.
— Porque ela é a maior picareta mentirosa da cidade. — O riso cantado de Mel Searles.
— Mas vocês não usaram camisinha — disse Piper. Sammy lhe contara isso e, quando ela viu o rosto de
Thibodeau se endurecer, soube que era verdade. — Vocês não usaram proteção e eles coletaram amostras. — Ela
não sabia se isso era verdade, e não se importou. Pelos olhos que se arregalavam, pôde ver que acreditavam, e a
crença delesbastava. — Quando compararem o seu DNA com o que encontraram...
— Chega — disse Carter. — Cala a boca.
Ela virou para ele o seu sorriso furioso.
— Não, sr. Thibodeau. Está só começando, meu filho.
Freddy Denton tentou alcançá-la. Ela o empurrou e sentiu o braço esquerdo ser segurado e torcido. Ela se virou e
encarou osolhosde Thibodeau. Agora não havia calma; osolhosbrilhavam de raiva.
Olá, irmão, pensou ela, incoerente.
— Foda-se, sua piranha fodida — observou ele, e desta vezela é que foiempurrada.
Piper caiu de costas pela escada, tentando instintivamente se encolher e rolar, não querendo bater a cabeça nos
degraus de pedra, sabendo que poderiam lhe esmagar o crânio. Matá-la ou, pior, deixá-la como um vegetal. Em vez
disso, ela bateu o ombro esquerdo, e houve alium uivo súbito de dor. Dor conhecida. Vinte anosantes, ela deslocara
aquele ombro jogando futebolna escola, e com certeza acabara de deslocá-lo de novo.
Aspernas voaram por cima da cabeça e ela deu uma cambalhota para trás, torcendo o pescoço, caindo de joelhos
e rasgando a pele em ambos. Finalmente, descansou sobre a barriga e o peito. Rolara quase até a base da escada,
O rosto sangrava, o nariz sangrava, os lábios sangravam, o pescoço doía, mas, ah meu Deus, o ombro era o pior,
amassado e torto de um jeito que ela bem conhecia. A última vezque vira algo parecido fora dentro de uma camiseta
de nylon vermelho dos Wildcats. Ainda assim, conseguiu se levantar, agradecendo a Deus por ainda ter controle
sobre aspernas; poderia também ter ficado paralisada.
Ela soltara a guia no meio da escada e Clover pulou sobre Thibodeau, osdentesagarrando o peito e a barriga sob
a camisa, rasgando a camisa, derrubando Thibodeau para trás, buscando osórgãos vitaisdo rapaz.
— Tirem ele de cima de mim! — gritou Carter. Agora nada de calma. — Ele vai me matar!
E, sim, Clover estava tentando. As patas da frente estavam plantadas nas coxas de Carter, subindo e descendo
enquanto o rapaz se debatia. Parecia um pastor-alemão numa bicicleta. Mudou o ângulo do ataque e mordeu fundo
o ombro de Carter, provocando outro grito. Depois, Clover partiu para a garganta. Carter pôs as mãos no peito do
cão bem a tempo de salvar a traquéia.
— Façam ele parar!
Frank tentou pegar a guia solta. Clover se virou e lhe mordeu os dedos. Frank recuou, e Clover voltou a
atenção para o homem que empurrara a sua dona escada abaixo. O focinho se abriu, revelando uma linha dupla de dentes brancos e brilhantes, e ele se jogou rumo ao pescoço de Thibodeau. Carter ergueu a mão e guinchou em
agonia quando Clover a pegou e começou a sacudi-la como um dos seus queridos brinquedos de pano. Só que os
brinquedosde pano não sangravam como a mão de Carter.
Cambaleante, Piper subiu a escada, segurando o braço esquerdo contra o tórax. O rosto era uma máscara de
sangue. Um dente pendia no canto da boca como um resto de comida.
— TIRA ELE DE CIMA DE MIM, JESUS, TIRA O SEU MALDITO CACHORRO DE CIMA DE MIM!
Piper abria a boca para dizer a Clover que parasse quando viu Fred Denton puxar a arma.
— Não! — gritou. — Não, eu mando ele parar!
Fred se virou para Mel Searles e apontou o cachorro com a mão livre. Mel se adiantou e chutou os quartos de
Clover. Chutou alto e com força, como antes (não há muito tempo) chutara bolas de futebol. Clover foi lançado de
lado, soltando a mão dilacerada e ensanguentada de Thibodeau, com dois dedos agora apontando em direções
incomuns, como placas tortas.
— NÃO!— gritou Piper de novo, tão alto e com tanta força que o mundo ficou cinzento diante dos seus olhos. —
NÃO MACHUCA O MEU CACHORRO!
Fred não lhe deu atenção. Quando Peter Randolph veio correndo pelas portas duplas, as fraldas da camisa de
fora, as calças abertas, o exemplar de Outdoors que estava lendo no banheiro ainda numa das mãos, Fred também
não prestou atenção. Apontou a automática da policia para o cachorro e disparou.
O som foi ensurdecedor na praça fechada. O alto da cabeça de Clover subiu num jorro de sangue e osso. Ele deu
um passo rumo à dona que gritava e sangrava... outro... e depois caiu.
Fred, a arma ainda na mão, avançou e agarrou Piper pelo braço ferido. O calombo no ombro dela rugiu um
protesto. E ela manteve osolhosno cadáver do cão, que criara desde filhote.
— Você está presa, sua puta maluca — disse Fred. Ele jogou o rosto, pálido, suado, os olhos parecendo prontos
para pular das órbitas, tão perto do dela que ela sentiu as gotas de saliva. — Tudo o que disser pode e será usado
contra esse seu cu de maluca.
Do outro lado da rua, os comensais saíam do Rosa Mosqueta, Barbie entre eles, ainda de boné e avental. Julia
Shumway chegou primeiro.
Captou a cena, sem ver os detalhes, mais como uma gestalt resumida: cão morto; policiais reunidos; mulher
sangrando e gritando com um ombro mais alto do que o outro; policial careca — Freddy Maldito Denton —
sacudindo-a pelo braço preso àquele ombro; mais sangue nos degraus, indicando que Piper caíra por eles. Ou fora
empurrada.
Julia fez algo que nunca fizera antes: enfiou a mão na bolsa, abriu a carteira e subiu a escada, mostrando-a e
berrando “Imprensa! Imprensa! Imprensa!”
Ao menosparou de tremer.
Dez minutos depois, na sala que há tão pouco tempo fora de Duke Perkins, Carter Thibodeau, com uma atadura
nova no ombro e toalhas de papel em torno da mão, estava sentado no sofá embaixo das fotos e diplomas
emoldurados de Duke. Georgia estava sentada ao seu lado. Grandes gotas de suor se destacavam na testa de
Thibodeau, masdepoisde dizer “Acho que não quebrou nada”, ele ficou calado.
Fred Denton estava sentado numa cadeira no canto. A sua arma estava na mesa do chefe. Ele a entregara de boa
vontade e só dissera “Tive que fazer aquilo, é só olhar a mão do Cart”.
Piper estava na cadeira de escritório que agora era de Peter Randolph. Julia limpara quase todo o sangue do
rosto de Piper com mais toalhas de papel. A mulher tremia de choque e muita dor, mas estava tão calada quanto
Thibodeau. Osolhosestavam secos.
— Clover só atacou ele — ela ergueu o queixo para Carter — depois que ele me empurrou pela escada. O
empurrão me fez soltar a guia. O que o meu cachorro fez se justifica. Ele estava me protegendo de um ataque
criminoso.
— Ela é que nos atacou! — gritou Georgia. — Essa piranha maluca nos atacou! Subiu a escada cuspindo toda
essa merda...
— Cala a boca — disse Barbie. — Todos vocês, calem a boca. — Ele olhou para Piper. — Essa não é a primeira
vezque a senhora desloca o ombro, não é?
— Quero o senhor fora daqui, sr. Barbara — disse Randolph... mas sem muita convicção.
— Eu posso cuidar disso — disse Barbie. — E você, pode?
Randolph não respondeu. Mel Searles e Frank DeLesseps estavam em pé do lado de fora da porta. Pareciam
preocupados.
Barbie se virou de novo para Piper.
— É uma subluxação, uma separação parcial. Não é grave. Posso pôr de volta no lugar antes que a senhora vá
para o hospital...
— Hospital? — guinchou Fred Denton. — Ela está pre...
— Cala a boca, Freddy — disse Randolph. — Ninguém está preso. Ao menos, ainda não.
Barbie fixou osolhosde Piper nos seus.
— Mas tenho que fazer isso agora, antes que o inchaço piore. Se esperar que Everett faça isso no hospital, vão
ter que te dar anestesia. — Ele se inclinou para ela e murmurou junto à sua orelha: — E enquanto estiver apagada,
eles vão contar a versão deles, e você não vai contar a sua.
— O que você está dizendo? — perguntou Randolph rispidamente.
— Que vaidoer — respondeu Barbie. — Não é, reverenda?
Ela fezque sim.
— Vá em frente. A treinadora Gromley fez a mesma coisa ali na lateral do campo, e ela era uma rematada idiota.
Mas faça logo. E por favor, não estrague nada.
Barbie disse:
— Julia, pega uma tipoia na caixa de primeiros socorrose depois me ajuda a deitar ela de costas.
Julia, muito pálida e se sentindo enjoada, fezo que lhe foipedido.
Barbie sentou-se no chão à esquerda de Piper, tirou um sapato e depois, com ambas as mãos, agarrou o
antebraço dela, logo acima do pulso.
— Não conheço o método da treinadora Gromley — disse ele —, mas era assim que fazia um paramédico que eu conhecino Iraque. A senhora vai contar até trêse gritar “osso da sorte”.
— “Osso da sorte” — repetiu Piper, achando graça apesar da dor. — Tá bem, você é o médico.
Não, pensou Julia; agora, na cidade, o mais próximo de um médico era Rusty Everett. Ela falara com Linda e
conseguira o celular dele, masa ligação caíra imediatamente na caixa postal.
A sala ficou em silêncio. Até Carter Thibodeau observava. Barbie fez um sinal de cabeça para Piper. Surgiram-lhe
gotas de suor na testa, mas ela fez uma cara bem séria, e Barbie a respeitou muitíssimo por isso. Ele enfiou o pé
calçado de meia na axila esquerda dela, prendendo bem. Então, enquanto puxava o braço devagar mas com
firmeza, pressionou com o pé.
— Certo, então vamosnós. Conte agora.
— Um... dois... três... OSSO DA SORTE!
Quando Piper gritou, Barbie puxou. Todos na sala ouviram o barulho alto da articulação voltando para o lugar. O
calombo na blusa de Piper sumiu num passe de mágica. Ela berrou, mas não desmaiou. Ele passou a tipoia pelo
pescoço dela e imobilizou o braço o máximo possível.
— Melhor? — perguntou.
— Melhor — respondeu ela. — Muito melhor, graçasa Deus. Ainda dói, masbem menos.
— Eu tenho aspirina na bolsa — disse Julia.
— Dá pra ela a aspirina e cai fora — disse Randolph. — Todos vocês, menos Carter, Freddy, a reverenda e eu.
Julia o olhou sem acreditar.
— Está brincando? A reverenda vaipro hospital. Consegue andar, Piper?
Trêmula, Piper se levantou.
— Acho que sim. Um pouco.
— Sente-se, reverenda Libby — disse Randolph, mas Barbie sabia que ela estava de saída. Conseguiu perceber
na vozde Randolph.
— Por que você não me obriga? — Com cuidado, ela ergueu o braço esquerdo e a tipoia. O braço tremeu, mas
estava funcionando. — Tenho certeza de que você pode deslocá-lo de novo com facilidade. Vamos. Mostra a esses...
essesgarotos... que você é igualzinho a eles.
— E eu publico tudo no jornal! — afirmou Julia, animada. — A circulação vaidobrar!
— Sugiro que o senhor adie esse assunto pra amanhã, chefe — disse Barbie. — É melhor essa senhora receber
analgésicos mais fortes do que aspirina e Everett examinar os machucados no joelho. Com a Redoma, vai ser bem
difícilela fugir.
— O cachorro dela tentou me matar — disse Carter. Apesar da dor, parecia calmo de novo.
— Chefe Randolph, DeLesseps, Searles e Thibodeau são culpados de estupro. — Piper cambaleava agora,
abraçada por Julia, masa vozestava clara e firme. — Rouxé cúmplice.
— Não sou merda nenhuma! — guinchou Georgia.
— Têm que ser suspensos imediatamente.
— Ela está mentindo — disse Thibodeau.
O chefe Randolph parecia um espectador de partida de tênis. Finalmente, firmou o olhar em Barbie.
— Vai me dizer o que fazer, garoto?
— Não, senhor, só faço sugestões com base na minha experiência de policiamento no Iraque. O senhor que tome
as suasdecisões.
Randolph relaxou.
— Tudo bem, então. Tudo bem. — Ele olhou para baixo, cenho franzido em pensamentos. Todos o viram notar
que o zíper ainda estava aberto e resolver o probleminha. Depois, ergueu os olhos de novo e disse: — Julia, leve a reverenda Piper pro hospital. Quanto ao senhor, sr. Barbara, vá pra onde quiser desde que saia daqui. Vou tomar o
depoimento dos meuspoliciaishoje à noite e o da reverenda Libbyamanhã.
— Espera — disse Thibodeau. Estendeu os dedos tortos para Barbie. — Você pode fazer alguma coisa quanto a
isso aqui?
— Não sei — disse Barbie, torcendo para que a voz tivesse saído amistosa. A animosidade inicial passara e agora
vinha a política do depois, da qual se recordava bem do tempo que lidara com policiais iraquianos que não eram tão
diferentes assim do homem no sofá e dos outros que se amontoavam à porta. Em resumo, ser gentil com gente em
quem dava vontade de cuspir. — Você consegue dizer osso da sorte?
Rusty desligara o celular antes de bater à porta de Big Jim. Agora Big Jim estava sentado atrás da escrivaninha,
Rustyna cadeira diante dela — a cadeira dos suplicantese solicitantes.
O escritório (Rennie provavelmente dizia que sua empresa funcionava ali na declaração de imposto de renda)
tinha um cheiro agradávelde pinho, como se tivesse passado por faxina recente, masnem assim Rustygostava dele.
Não era só o quadro com um Jesus agressivamente caucasiano fazendo o Sermão da Montanha ou as placas
autoelogiosas ou o piso de madeira de lei que devia estar protegido por tapete; era tudo isso e mais alguma coisa.
Rusty Everett dava muito pouco peso ou crédito ao sobrenatural, mas ainda assim aquele cômodo parecia quase
mal-assombrado.
É porque ele te assusta um pouco, pensou. É só isso.
Rusty, torcendo para que o que sentia náo aparecesse no rosto nem na voz, contou a Rennie o sumiço dos
cilindros de gás do hospital. Que encontrara um deles no depósito atrás da Câmara de Vereadores, alimentando o
gerador. E que era o único.
— Portanto, tenho duas perguntas — disse Rusty. — Como um cilindro do hospital foi parar no centro da cidade?
E pra onde foram osoutros?
Big Jim se recostou na cadeira, pôsas mãosna nuca e olhou o teto, pensativo.
Rusty se viu fitando o troféu com uma bola de beisebol na escrivaninha de Rennie. Diante dele, havia um bilhete
de Bill Lee, que já fora dos Boston Red Sox. Dava para ler o bilhete porque estava virado para fora. É claro que
estava. Era para os visitantes verem e se maravilharem. Assim como as fotos na parede, a bola de beisebol
proclamava que Big Jim Rennie era íntimo de Gente Famosa: Olhai os meus autógrafos, poderosos, e desesperai-
vos. Para Rusty, a bola de beisebol e o bilhete virado para fora pareciam resumir a má sensação que a sala lhe
provocava. Era uma vitrine, um minúsculo atestado de prestígio e poder numa cidadezinha.
— Não sabia que você tinha permissão de espionar o nosso depósito — observou Big Jim para o teto. Os dedos
carnudos ainda estavam cruzados na nuca. — Será que você é autoridade na cidade e eu nem sabia? Se for assim,
engano meu; bobeira minha, como diz o Junior. Achei que você era basicamente um enfermeiro com um bloco de
receituário.
Rusty via isso como técnica, maisdo que tudo: Rennie estava tentando irritá-lo. Desviar a sua atenção.
— Não sou autoridade — respondeu —, mas sou funcionário do hospital. E contribuinte.
— E?
Rusty sentiu o rosto corar.
— E essas coisas fazem com que o depósito também seja meu. — Esperou para ver se Big Jim reagiria a isso,
mas o homem atrás da escrivaninha continuou impassível. — Além disso, não estava trancado. E isso nem vem ao
caso, não é? Eu vio que eu vie gostaria de uma explicação. Como funcionário do hospital.
— E contribuinte. Não se esqueça disso.
Rusty ficou olhando para ele, sem sequer mover a cabeça.
— Eu não tenho nada para lhe dar — disse Rennie.
Rustyergueu as sobrancelhas.
— É mesmo? Pensei que o senhor tinha os dedos no pulso da cidade. Não foi o que disse da última vez que
concorreu a vereador? E agora vai me dizer que não sabe explicar onde foiparar o gásda cidade? Não acredito.
Pela primeira vez, Rennie pareceu se incomodar.
— Não me importa se você acredita ou não. Pra mim, isso é novidade. — Mas os olhos dardejaram ligeiramente para o lado enquanto falava, como se quisessem verificar que a foto autografada de Tiger Woods ainda estava lá; a
clássica revelação do mentiroso.
— O hospitalestá quase sem gás — disse Rusty — Sem ele, para ospoucosque ainda estamosde serviço vai ser
como trabalhar numa barraca-hospital da Guerra Civil. Os nossos pacientes atuais, como um enfartado e um caso
grave de diabete que pode exigir amputação, vão ficar em péssima situação se ficarmos sem energia. O possível
amputado é Jimmy Sirois. O carro dele está no estacionamento. O para-choque tem um adesivo dizendo VOTE EM
BIG JIM.
— Vou investigar — disse Big Jim. Falava com o ar de quem faz um favor. — O gás da cidade deve estar
guardado em algum outro depósito. Quanto ao seu, não faço idéia.
— Que outro depósito? Tem o corpo de bombeirose a pilha de sacosde areia na estrada do Riacho de Deus, nem
uma cabana tem por lá, mas são osúnicosque eu conheço.
— Sr. Everett, eu sou um homem ocupado. Agora o senhor vai me dar licença.
Rusty se levantou. As mãosqueriam se fechar, masele não deixou.
— Vou perguntar mais uma vez — disse. — Bem diretamente. O senhor sabe onde estão os cilindros que
sumiram?
— Não. — Dessa vez, foi para Dale Earnhardt que os olhos de Rennie fugiram. — E não vou ler nenhuma
insinuação nessa pergunta, meu filho, senão terei que me ofender. Agora, por que não vai embora e dá uma olhada
em Jimmy Sirois? Diga a ele que Big Jim deseja melhoras e que vai visitá-lo assim que o festival de implicância
diminuir um pouco.
Rustyainda se segurava para controlar a raiva, masestava perdendo a batalha.
— Ir embora? Acho que o senhor se esqueceu que é um servidor público e não um ditador particular. Por
enquanto, eu sou o médico-chefe desta cidade, e quero uma resp...
O celular de Big Jim tocou. Ele o pegou. Escutou. As linhas em volta da boca caída para baixo ficaram mais
sinistras.
Que meleca! Toda vez que viro as costas... — Escutou um pouco mais e continuou. — Se tem gente com você aí
na sala, Pete, feche a arapuca antesque ela abra demaise você caia dentro. Liga pro Andy. Já estou indo e nós três
resolvemos isso.
Desligou o telefone e se levantou.
— Tenho que ir à delegacia. Se é emergência ou mais implicância, só vou saber quando chegar lá. E acho que
precisam de você no hospitalou no Posto de Saúde. Parece que há um problema com a reverenda Libby.
— Por quê? O que aconteceu?
Nasórbitasdurase pequenas, osolhos friosde Big Jim o examinaram.
— Tenho certeza de que vão lhe contar a história. Não sei até que ponto será verdade, mas tenho certeza de que
vão lhe contar. Portanto, fazo seu serviço, meu jovem, que eu vou fazer o meu.
Rusty passou pelo saguão e saiu da casa, as têmporas pulsando. A oeste, o pôr do sol era um espetáculo fúnebre
e sangrento. O ar estava quase completamente parado, mas ainda assim fedia a fumaça. No pé da escada, Rusty
ergueu o dedo e o apontou para o servidor público que aguardava que saísse da sua propriedade antes que ele,
Rennie, também saísse. Rennie fezum muxoxo para o dedo, mas Rustynão o baixou.
— Ninguém precisa me mandar fazer o meu serviço. E parte dele é procurar aquele gás. Se eu o encontrar no
lugar errado, outra pessoa vai fazer o seu serviço, vereador Rennie. Isso é uma promessa.
Big Jim lhe deu um aceno desdenhoso.
— Saidaqui, meu filho. Vai trabalhar.
Nas 55 primeiras horas de existência da Redoma, mais de duas dúzias de crianças tiveram convulsões. Algumas,
como as das meninas Everett, foram notadas. Muitas outras não foram, e nos dias que se seguiram a atividade
convulsiva rapidamente cairia a zero. Rusty compararia isso aos pequenos choques que todos sentiam quando se
aproximavam demais da Redoma. Da primeira vez, sentia-se aquele frisson quase elétrico que eriçava os pelos da
nuca; depois, a maioria não sentia nada. Era como se fossem vacinados.
— Você quer dizer que a Redoma é como catapora? — perguntou Linda depois. — A gente pega uma vez e está
protegido pelo resto da vida?
Janelle tivera duas convulsões, assim como um garotinho chamado Norman Sawyer, mas em ambos os casos a
segunda convulsão fora mais leve do que a primeira e sem nenhum balbucio para acompanhar. A maioria das
criançasque Rustyexaminou só teve uma, aparentemente sem efeitos colaterais.
Só doisadultos tiveram convulsõesnaquelasprimeiras55 horas, ambospor volta do pôr do solde segunda-feira e
ambos com causas fáceisde descobrir.
No caso de Phil Bushey, também chamado de Chef, a causa foi uma dose excessiva do seu próprio produto. Mais
ou menos na hora em que Rusty e Big Jim se separaram, Chef Bushey estava sentado ao lado do depósito nos
fundos da WCIK, olhando sonhador o pôr do sol (tão perto assim do alvo dos mísseis, o escarlate do céu era ainda
mais escurecido pela fuligem da Redoma), o cachimbo de metanfetamina mal preso numa das mãos. Viajava pelo
menos até a ionosfera; talvez uns 150km mais além. Nas poucas nuvens baixas que flutuavam naquela luz
sangrenta, viu o rosto da mãe, do pai, do avô; viu também Sammye o Pequeno Walter.
Todosos rostosna nuvem sangravam.
Quando o pé direito começou a se contorcer e depois o esquerdo acompanhou o ritmo, ele nem ligou. As
contorções faziam parte da viagem, todo mundo sabia. Mas aí as mãos começaram a tremer e o cachimbo caiu no
capim alto (amarelado e murcho em consequência do trabalho fabril ali realizado). Um instante depois, a cabeça
começou a se sacudir de um lado para o outro.
É isso, pensou ele com uma calma que, em parte, era alívio. Finalmente exagerei. Estou de saída. Provavelmente
desta pra melhor.
Mas ele não saiu para lugar nenhum, nem sequer caiu duro. Deslizou de lado devagar, se contorcendo e
observando uma bola de gude preta subir no céu vermelho. Ela se expandiu numa bola de boliche e depois numa
bola de praia cheia demais. Continuou crescendo até ocupar o céu vermelho.
O fim do mundo, pensou ele. Provavelmente pra melhor.
Por um instante, acreditou que estava errado, porque as estrelas apareceram. Só que eram da cor errada. Eram
cor-de-rosa. Aí, meu Deus, começaram a cair, deixando para trás longos rastros cor-de-rosa.
Depois veio o fogo. Uma fornalha a rugir, como se alguém tivesse aberto um alçapão escondido e transformado
Chester’s Millnum inferno.
— É a nossa gostosura — murmurou. O cachimbo estava apertado contra o braço e causou uma queimadura que,
mais tarde, ele veria e sentiria. Ficou se contorcendo no capim amarelo com osolhos viradospara cima, as córneasa
refletir o fúnebre pôr do sol. — A nossa gostosura de Halloween. Primeiro a travessura... depoisa gostosura.
O fogo se transformava num rosto, uma versão alaranjada dos outros rostos sangrentos que vira nas nuvens
pouco antesda convulsão. Era o rosto de Jesus, que estava zangado com ele.
E falava. Falava com ele. Dizia a ele que trazer o fogo era responsabilidade dele. Dele. O fogo e a... a...
— A pureza — murmurou, caído no capim. — Não... a purificação.
Jesus agora não parecia tão zangado. E estava sumindo. Por quê? Porque o Chef entendera. Primeiro viriam as
estrelas cor-de-rosa; depois, o fogo purificador; depois, o sofrimento teria fim.
O Chef se acalmou quando a convulsão se transformou no primeiro sono de verdade das últimas semanas, talvez
dos últimos meses. Quando acordou, estava totalmente escuro; todos os vestígios vermelhos sumidos do céu. Ele
estava gelado até osossos, masnada molhado.
Sob a Redoma, não havia maisorvalho.
Enquanto o Chef observava o rosto de Cristo no pôr do sol infeccionado daquela noite, a terceira vereadora
Andrea Grinnell estava sentada no sofá, tentando ler. O gerador pifara — será que algum dia funcionara? Não
conseguia se lembrar. Mas tinha um aparelhinho chamado Mighty Brite, uma lâmpada automática que Rose, a irmã,
pusera na sua meia de Natal do ano anterior. Até agora, não tivera oportunidade de usá-la, mas funcionava bem.
Bastava prendê-la no livro e ligar. Facílimo. Logo, luz não era problema. As palavras, infelizmente, eram. Não
paravam de se contorcer pela página, às vezes até trocando de lugar umas com as outras, e a prosa de Nora
Roberts, geralmente claríssima, não significava absolutamente nada. Mas Andrea continuava tentando, porque não
conseguia pensar em maisnada a fazer.
A casa fedia, mesmo com as janelas abertas. Ela estava com diarreia e o vaso sanitário não dava mais descarga.
Estava com fome, mas não conseguia comer. Tentara um sanduíche às cinco da tarde — um inofensivo sanduíche
de queijo — e vomitara no cesto de lixo da cozinha minutos depois de engolir. Uma vergonha, porque comer aquele
sanduíche dera muito trabalho. Suava intensamente — já trocara de roupa uma vez, provavelmente trocaria de novo
se conseguisse — e ospésnão paravam de tremer e sacolejar.
Não é à toa que falam em chutar o vício, pensou. E não vou conseguir de jeito nenhum ir à reunião de emergência
de hoje, se é que Jim ainda pretende fazê-la.
Considerando a última conversa que tivera com Big Jim e Andy Sanders, talvez fosse bom; se aparecesse, eles
simplesmente a agrediriam um pouco mais. Iam obrigá-la a fazer o que não queria. Melhor ficar longe até se livrar
dessa... dessa...
— Dessa merda — disse ela, e afastou dos olhos o cabelo molhado. — Essa porra dessa merda que está no meu
organismo.
Assim que voltasse a ser quem era, enfrentaria Jim Rennie. Devia ter feito isso há muito tempo. Faria isso apesar
da dor nas costas, que era horrível sem o seu OxyContin (mas não a agonia candente que esperara; essa fora uma
surpresa bem-vinda). Rusty queria que ela tomasse metadona. Metadona, pelo amor de Deus! Heroína com
pseudônimo!
Se está pensando em parar a frio, não faz isso, dissera ele. Você pode ter convulsões.
Mas ele dissera que assim poderia levar dez dias, e ela achava que não conseguiria esperar tanto. Não com
aquela Redoma horrível sobre a cidade. Melhor se livrar logo. Depois de tirar essa conclusão, jogara todos os
comprimidos — não só a metadona, mas os últimos OxyContins que achara no fundo da gaveta da mesinha de
cabeceira — no vaso sanitário. Foram só duas descargas e o vaso morreu, e agora ela estava ali sentada, tremendo
e tentando se convencer de que fizera a coisa certa.
Era a única coisa, pensou. Isso praticamente acaba com o certo e o errado.
Ela tentou virar a página do livro e a mão estúpida bateu no Mighty Brite. O aparelho caiu no chão. A mancha de
brilho que lançava foi até o teto. Andrea a olhou e, de repente, se projetou acima de si. E depressa. Era como subir
num elevador veloz e invisível. Só teve um instante para olhar para baixo e ver o seu corpo ainda no sofá, indefeso,
se contorcendo. Uma baba espumosa escorria da boca para o queixo. Ela viu a umidade se espalhar no gancho da
calça jeanse pensou Droga, vou ter que me trocar de novo, tudo bem. Quer dizer, se eu sobreviver.
Depois atravessou o teto, o quarto de cima, o sótão com as caixas escuras empilhadas e abajures aposentados e
daí para a noite. A Via Láctea se espalhava lá em cima, masestava errada. A Via Láctea ficara cor-de-rosa.
E então começou a cair.
Em algum lugar — longe, bem longe lá embaixo — Andrea ouviu o corpo que deixara para trás. Ele gritava.
Barbie achou que Julia e ele discutiriam o que acontecera com Piper Libby na viagem para fora da cidade, mas
ficaram quase o tempo todo em silêncio, perdidos em pensamentos. Nenhum disse que se sentira aliviado quando o
pôr do sol vermelho e antinatural finalmente começou a se desfazer, masambos se sentiram.
Julia tentou ligar o rádio, só encontrou a WCIK berrando All Prayed Up e desligou de novo.
Barbie só falou uma vez, isso pouco depois de saírem da rodovia 119 e começarem a ir para oeste, ao longo do
asfalto maisestreito da estrada de Motton, onde asárvores se projetavam dosdois lados.
— Fiza coisa certa?
Na opinião de Julia, ele fizera muitas coisas certas durante o confronto na sala do chefe de polícia, inclusive o
tratamento bem-sucedido de doispacientes com luxação, masela sabia do que ele estava falando.
— Fez. Era a hora maisperfeitamente errada de se impor no comando.
Ele concordou, mas se sentia cansado e desanimado, nem um pouco à altura do serviço que começava a ver
diante dele.
— Tenho certeza de que os inimigos de Hitler disseram quase a mesma coisa. Disseram em 1934 e acertaram.
Em 1936, e acertaram. Também em 1938.
Diziam que era “a hora errada de questioná-lo”. E quando se deram conta de que a hora certa finalmente havia
chegado, estavam protestando em Auschwitzou Buchenwald.
— Isso aquinão é a mesma coisa — disse ela.
— Você acha que não?
Ela não respondeu, mas entendia o que ele dissera. Diziam que Hitler fora instalador de papel de parede; Jim
Rennie era vendedor de carrosusados. Seispor meia dúzia.
À frente, dedos de brilho cintilavam entre as árvores. Deixavam um entalhe de sombras no asfalto remendado da
estrada de Motton.
Havia vários caminhões militaresestacionadosdo outro lado da Redoma — naquela ponta da cidade era Harlow ali
do outro lado — e trinta ou quarenta soldados ocupados iam de lá para cá. Todos tinham máscaras contra gases
penduradas no cinto. Um caminhão-tanque prateado com a frase PERIGO EXTREMO MANTENHA DISTÂNCIA
dera marcha a ré até quase encostar num contorno de porta pintado com spray na superfície da Redoma. Uma
mangueira plástica estava presa a uma válvula na traseira do caminhão-tanque. Dois homens seguravam a
mangueira, que terminava numa varinha do tamanho de uma caneta Bic. Esses homens usavam capacete e
macacão brilhante. Tinham tanquesde ar nas costas.
No lado de Chester’s Mill, havia um único espectador. Lissa Jamieson, bibliotecária da cidade, estava ao lado de
uma antiga bicicleta feminina Schwinn com um porta-caixa de leite no bagageiro traseiro. Atrás do porta-leite, havia
um adesivo dizendo QUANDO O PODER DO AMOR FOR MAIOR QUE O AMOR AO PODER, O MUNDO TERÁ PAZ
— JIMI HENDRJX.
— O que você está fazendo aqui, Lissa? — perguntou Julia, saindo do carro. Ergueu a mão para proteger osolhos
da luz forte.
Lissa mexia nervosamente no ankh que usava pendurado no pescoço com uma corrente de prata. Olhou de Julia
para Barbie, depois voltou osolhospara Julia.
— Eu saio pra passear de bicicleta quando estou nervosa ou preocupada. As vezes pedalo até meia-noite. Me
acalma o pneuma. [Palavra do grego arcaico que significa “respiração”, geralmente usada como sinônimo de
“espírito” ou “alma” em contexto religioso] Eu vi as luzes e vim até a luz. Ela disse isso como se fosse um encantamento e soltou o ankh para fazer no ar um tipo de símbolo complicado. — O que vocêsestão fazendo aqui?
— Viemos assistir a um experimento — disse Barbie. — Se der certo, você pode ser a primeira a sair de Chester’s
Mill.
Lissa sorriu. O sorriso parecia um pouco forçado, mas Barbie gostou dela pelo esforço.
— Se eu sair, perco o especialde terça no Rosa Mosqueta. Não costuma ser bolo de carne?
— O plano é bolo de carne — concordou, sem acrescentar que, se a Redoma continuasse no lugar até a terça-
feira seguinte, a specialité de la maison talvez fosse quiche de abobrinha.
— Elesnão falam — disse Lissa. — Já tentei.
Um homem baixote como um hidrante saiu de trás do caminhão-tanque e veio para a luz. Vestia calças cáqui,
jaqueta de tecido impermeável e um chapéu com o logotipo dos Maine Black Bears. A primeira coisa a espantar
Barbie foi que James O. Cox engordara. A segunda foi a jaqueta grossa, fechada até o queixo, que já era quase
duplo. Ninguém mais — Barbie, Julia ou Lissa — usava casaco. Não havia necessidade disso no lado deles.
Coxbateu continência. Barbie devolveu o gesto e a verdade é que a sensação foibem boa.
— Olá, Barbie — disse Cox. — Como vaio Ken?
— O Ken vaibem — disse Barbie. — E eu continuo a ser a puta que fica com toda a merda boa.
— Não dessa vez, coronel — disse Cox. — Dessa vez, parece que você se fodeu no drive-thru.
— Quem é ele? — sussurrou Lissa. Ainda dedilhava o ankh. Julia achou que logo a corrente arrebentaria, se ela
não parasse. — E o que elesestão fazendo aqui?
— Tentando nos tirar daqui — respondeu Julia. — E depois daquele fracasso dos mais espetaculares hoje de
manhã, tenho a dizer que é mais inteligente tentar em silêncio. — Ela se adiantou. — Olá, coronel Cox. Sou a sua
editora de jornalpredileta. Boa noite.
O sorriso de Cox foi só um pouquinho azedo — e ponto para ele, pensou ela.
— Sra. Shumway. A senhora é ainda maisbonita do que eu pensei.
— Uma coisa eu tenho que dizer, o senhor é hábil na conversa fia... — Barbie a alcançou a 3 metros de onde Cox
estava e a segurou.
— O que foi? — perguntou ela.
— A câmera. — Ela quase esquecera que estava pendurada no pescoço até que ele a apontou. — É digital?
— É, é a câmera reserva de Pete Freeman. — Ela começou a perguntar por que e, então, entendeu. — Você
acha que a Redoma vai fritá-la.
— No melhor dos casos — disse Barbie. — Lembra do que aconteceu com o marca-passo do chefe Perkins.
— Merda — disse ela. — Merda! Talveza minha Kodak velha esteja no carro.
Lissa e Cox se entreolhavam com o que, para Barbie, parecia fascinação mútua.
— O que vocês vão fazer? — perguntou ela. — Vaihaver outra explosão?
Coxhesitou. Barbie disse:
— Pode ser franco, coronel. Se não contar, eu conto.
Cox suspirou.
— Insiste na transparência total, não é?
— Por que não? Se essa coisa funcionar, o povo de Chester’s Mill vai te endeusar. A única razão pra manter
segredo é a força do hábito.
— Não. É ordem dos meus superiores.
— Eles estão em Washington — disse Barbie. — E a imprensa está em Castle Rock, a maioria provavelmente
assistindo a filmesde mulher pelada no pay-per-view. Aqui só estamosnós, ospés-rapados.
Cox suspirou e apontou a porta pintada com spray.
— É ali que os homens de roupa protetora vão aplicar o nosso composto experimental Se tivermos sorte, o ácido
vai corroer e vamos conseguir abrir aquele pedaço da Redoma do mesmo jeito que um pedaço da vidraça da janela
se solta depoisde passar o cortador de vidro.
E se não tivermos sorte? — perguntou Barbie. — E se a Redoma se decompuser soltando gases venenosos e
matar nós todos? As máscaras contra gás são pra isso?
— Na verdade — disse Cox —, os cientistasacham maisprovávelque o ácido inicie uma reação química que pode
fazer a Redoma pegar fogo. — Ele viu o espanto no rosto de Lissa e acrescentou: — Eles consideram as duas
possibilidades muito remotas.
— Elespodem — disse Lissa, regirando o ankh. — Não são elesque vão ser envenenadosnem assados.
— Entendo a sua preocupação, senhora... — começou Cox.
— Melissa — corrigiu Barbie. Para ele, de repente, passou a ser importante que Cox entendesse que havia gente
debaixo da Redoma, não alguns milharesde contribuintesanônimos. — Melissa Jamieson. Lissa para osamigos. É a
bibliotecária da cidade. Também é orientadora educacionaldo 6ºao 9ºano da escola e acho que dá aulasde ioga.
— Desistidelas — disse Lissa com um sorriso nervoso. — Coisasdemaispra fazer.
— Muito prazer em conhecê-la, srta. Jamieson — disse Cox. — Olhe, vale a pena correr o risco.
— Se nóspensarmosdiferente, poderíamos impedir o senhor? — perguntou ela.
A isso Coxnão respondeu diretamente.
— Não há nenhum sinal de que essa coisa, seja o que for, esteja enfraquecendo ou se biodegradando. A menos
que nós consigamos rompê-la, acreditamosque vocês vão ficar aí em longo prazo.
— Tem alguma ideia do que causou isso? Qualquer que seja?
— Nenhuma — disse Cox, mas os seus olhos se mexeram de um jeito que Rusty Everett reconheceria pela
conversa com Big Jim.
Barbie pensou: Por que você está mentindo? Aquela reação reflexa de novo? Os civis são como cogumelos é
mantê-losno escuro e alimentá-los com merda? Provavelmente era só isso. Masele ficou nervoso.
— É forte? — perguntou Lissa. — O seu ácido é forte?
— É o mais corrosivo que existe, pelo que sabemos — respondeu Cox, e Lissa deu doisgrandespassosatrás.
Cox virou-se para oshomens com a roupa espacial.
— Estão prontos, rapazes?
Elesergueram ospolegaresenluvados. Atrásdeles, toda a atividade parou. Os soldados ficaram assistindo, com a
mão na máscara de gás.
— Aí vamosnós — disse Cox. — Barbie, sugiro que escolte essasduasbelas moçasaté ao menos50 metrosda...
— Olhem as estrelas — disse Julia. A sua voz era suave, espantada. A cabeça estava virada para cima e, no seu
rosto maravilhado, Barbie viu a criança que ela tinha sido trinta anosantes.
Olhou para cima e viu o Grande Carro, a Grande Ursa, Órion. Todos no seu lugar... só que tinham saído de foco e
ficado cor-de-rosa. A Via Láctea se transformara num derramamento de chiclete pela redoma maior da noite.
— Cox — disse ele. — Está vendo aquilo?
Coxergueu osolhos.
— Vendo o quê? Asestrelas?
— Como elasparecem para vocês?
— Bom... muito brilhantes, é claro... sem muita poluição luminosa nessa região... — Então uma ideia lhe ocorreu e
ele estalou osdedos. — O que você está vendo? Elas mudaram de cor?
— São lindas — disse Lissa. Osolhosdela estavam arregaladose brilhantes. — Masdão medo também.
— Estão cor-de-rosa — disse Julia. — O que está havendo?
— Nada — respondeu Cox, mas soou estranhamente relutante.
— O quê? — perguntou Barbie. — Conta logo. — E acrescentou, sem pensar: — Senhor.
— Recebemos o relatório meteorológico às 19 horas — disse Cox. — Ênfase especial nos ventos. Só por
precaução... bom, só por precaução. Fiquemos assim. A corrente de jato atualmente está vindo para oeste, até
Nebraska ou Kansas, seguindo para o sule depois subindo pelo litoral leste. Padrão bem comum no finalde outubro.
— O que isso tem a ver com asestrelas?
— Quando vem até o norte, o jato passa sobre muitas cidades fabris. O que ele traz desses locais está se
acumulando sobre a Redoma em vez de ser levado pro norte, pro Canadá e o Ártico. Já há o bastante pra criar um
tipo de filtro óptico. Tenho certeza de que não é perigoso...
— Ainda não — interrompeu Julia. — E daquia uma semana, um mês? Vocês vão lavar o nosso espaço aéreo a 9
mil metrosquando começar a ficar escuro aqui?
Antesque Coxpudesse responder, Lissa Jamieson gritou e apontou o céu. E então cobriu o rosto.
Asestrelas cor-de-rosa estavam caindo, deixando atrásde si rastrosbrilhantes.
— Me dopa mais — disse Piper com voz sonhadora enquanto Rusty lhe ouvia o coração.
Rustydeu uns tapinhasna mão direita de Piper — a esquerda estava muito esfolada.
— Nada disso — retrucou. — A senhora está oficialmente doidona.
— Jesus quer que eu fique mais dopada — disse ela na mesma voz sonhadora. — Quero ficar mais alta que o
apanha-mel.
— Acho que é “mais alta que um arranha-céu”, mas vou pensar no caso. Ela se sentou. Rusty tentou fazê-la se
deitar de novo, mas só ousava empurrar o ombro direito, e isso não era suficiente.
— Amanhã posso sair daqui? Tenho que falar com o chefe Randolph. Aquelesgarotos curraram Sammy Bushey.
— E podiam ter matado a senhora — retrucou ele. — Luxação ou não, a senhora teve uma sorte enorme. Deixe
que eu me preocupo com a Sammy.
— Aqueles policiais são perigosos. — Ela pôs a mão direita no pulso dele. — Não podem continuar na polícia. Vão
machucar maisalguém. — Lambeu os lábios. — A minha boca está tão seca...
— Isso eu posso resolver, masa senhora vai ter que se deitar.
— Pegou amostras de esperma da Sammy? Pode comparar com as dos garotos? Se puder, vou perseguir Peter
Randolph até ele conseguir asamostrasde DNA. Vou persegui-lo dia e noite.
— Não temos equipamento pra comparar DNA — disse Rusty. E também não há amostras de esperma. Porque
Gina Buffalino a lavou, a pedido da própria Sammy. — Vou te trazer algo para beber. Todas as geladeiras, menos as
do laboratório, estão desligadaspara economizar energia, mas temosum isopor na sala dasenfermeiras.
— Suco — disse ela, fechando osolhos. — Suco seria bom. Laranja ou maçã. V8, não. Salgado demais.
— Maçã. — disse ele. — Hoje à noite, só líquidos.
— Estou com saudades do meu cachorro — sussurrou Piper, e virou a cabeça. Rusty achou que provavelmente
ela já teria dormido quando voltasse com a caixinha de suco.
No meio do corredor, Twitch dobrou a esquina da sala das enfermeiras numa corrida desenfreada. Os olhos
estavam enlouquecidose arregalados.
— Vem cá fora, Rusty.
— Assim que eu der à reverenda Libbyo...
— Não, agora. Você tem que ver isso.
Rusty voltou correndo até o quarto 29 e espiou. Piper roncava de um jeito nada adequado a uma dama — o que
não surpreendia, devido ao nariz inchado.
Seguiu Twitch pelo corredor, quase correndo para acompanhar ospassos largosdo outro.
— O que é? — querendo dizer o que foiagora?
— Não seiexplicar, e provavelmente você não acreditaria. Tem que ver com osprópriosolhos.
Ele escancarou a porta do saguão e saiu.
Em pé na rua, além da marquise protetora por onde chegavam os pacientes, estavam Ginny Tomlinson, Gina
Buffalino e Harriet Bigelow, a amiga que Gina recrutara para ajudar no hospital. As três estavam abraçadas como se
quisessem se consolar e fitavam o céu.
Este estava cheio de ardentes estrelas cor-de-rosa, e muitas pareciam cair, deixando para trás rastros compridos
e quase fluorescentes. Um arrepio subiu pelas costasde Rusty
Judypreviu isso, pensou. “Asestrelas cor-de-rosa estão caindo em linha.”
E estavam. Estavam.
Era como se o próprio firmamento caísse sobre a cabeça deles.
Alice e Aidan Appleton dormiam quando as estrelas cor-de-rosa começaram a cair, mas Thurston Marshall e
Carolyn Sturges, não. Os dois foram para o quintal da casa dos Dumagen e assistiram à queda em brilhantes linhas.
Algumas linhas se entrecruzavam e, quando isso acontecia, parecia que runas rosadas se destacavam no céu antes
de se apagar.
— Será o fim do mundo? — perguntou Carolyn.
— De jeito nenhum — respondeu ele. — É uma chuva de meteoros. São muito comuns no outono aqui na Nova
Inglaterra. Acho que é tarde demais para as Perseidas, logo, provavelmente é uma chuva extemporânea, talvez
poeira e pedaçosde pedra de algum asteroide que explodiu há um trilhão de anos. Pense só nisso, Caro!
Ela não queria.
— As chuvasde meteoros são sempre cor-de-rosa?
— Não — disse ele. — Acho que provavelmente é branca fora da Redoma, mas nós a vemos através de uma
camada de poeira e matéria particulada. Poluição, em outraspalavras. Isso mudou a cor.
Ela pensou no assunto enquanto observavam o silencioso ataque de raiva rosa no céu.
Thurse, o menininho... Aidan... quando teve aquele ataque ou seja lá o que for, ele disse...
— Eu me lembro do que ele disse. “Asestrelas cor-de-rosa estão caindo, elasdeixam linhasatrás.”
— Como é que ele sabia?
Thurston só balançou a cabeça.
Carolyn o abraçou com mais força. Em épocas assim (embora nunca tivesse havido uma época exatamente assim
na vida dela), ficava contente de Thurston ter idade para ser seu pai. Naquele momento, ela gostaria que ele fosse o
seu pai.
— Como é que ele sabia que isso ia acontecer? Como é que ele sabia?
Aidan dissera outra coisa durante o seu momento de profecia: Todo mundo está olhando. E às nove e meia
daquela noite de segunda-feira, quando a chuva de meteorosatingiu o seu ponto máximo, aquilo era verdade.
A notícia se espalha por celular e e-mail, mas principalmente à moda antiga: boca a boca. Às 22h15, a rua
principal está cheia de gente que assiste o silencioso show de fogos de artifício. A maioria igualmente silenciosa.
Alguns choram. Leo Lamoine, membro fiel da congregação do Sagrado Redentor do falecido reverendo Coggins,
grita que é o Apocalipse, que vê os Quatro Cavaleiros no céu, que o Arrebatamento logo começará, et coetera, et
coetera. Sam Relaxado Verdreaux, de volta às ruas desde as três da tarde, sóbrio e mal-humorado, diz a Leo que,
se não fechar a boca sobre o Chupocalipso, verá estrelas só suas. Rupe Libby, da polícia de Chester’s Mill, a mão na
coronha da arma, diz aos dois para calar a boca e parar de assustar os outros. Como se já não estivessem
assustados. Willow e Tommy Anderson estão no estacionamento do Dipper’s, e Willow chora com a cabeça no
ombro de Tommy. Rose Twitchell está ao lado de Anson Wheeler na frente do Rosa Mosqueta; ambos ainda estão
de avental e também abraçados. Norrie Calvert e Benny Drake estão com os pais, e quando a mão de Norrie segura
a de Benny, ele a agarra com um arrepio que as estrelas cadentes cor-de-rosa não conseguem igualar. Jack Cale,
atualgerente do Food City; está no estacionamento do supermercado. No fim da tarde, Jack chamou Ernie Calvert, o
antigo gerente, e pediu ajuda para fazer um inventário completo dos suprimentos disponíveis. Estavam bem
adiantados no serviço, com esperanças de terminar à meia-noite, quando o furor explodiu na rua principal. Agora,
estão lado a lado, assistindo à queda das estrelas cor-de-rosa. Stewart e Fernald Bowie estão diante da funerária,
olhando para cima. Na calçada em frente à funerária, estão Henry Morrison e Jackie Wettington com Chaz Bender,
que dá aulas de História na escola secundária. “É só uma chuva de meteoros vista através de uma névoa de
poluição”, diz Chaza Jackie e Henry... mas mesmo assim parece espantado.
O fato de que o acúmulo de matéria particulada realmente mudou a cor das estrelas faz o povo entender a
situação de uma maneira nova, e aos poucos o choro se torna mais generalizado. É um som suave, quase como
chuva.
Big Jim está menos interessado num monte de luzes sem sentido no céu do que no modo como as pessoas vão
interpretá-las. Esta noite, espera que simplesmente vão para casa. Mas amanhã tudo pode ser diferente. E o medo
que vê na maioria das caras talvez não seja tão ruim. Quem sente medo precisa de um líder forte, e se há uma coisa
que Big Jim Rennie sabe que pode exercer é uma liderança forte.
Ele está diante da porta da delegacia com o chefe Randolph e Andy Sanders. Logo abaixo deles, amontoados,
suas crianças-problema: Thibodeau, Searles, aquela vadiazinha Roux e Frank, amigo de Junior. Big Jim desce os
degraus em que Libby caíra mais cedo (ela nos faria um favor se tivesse quebrado o pescoço, pensa ele) e dá um
tapinha no ombro de Frankie.
— Que talo espetáculo, Frankie?
Os grandes olhos assustados do rapaz o deixam com cara de 12 anos, em vez dos 22 ou sabe-se lá quantos ele
tenha.
— O que é isso, sr. Rennie? O senhor sabe?
— Chuva de meteoros. É só Deusdando oipro Seu povo.
Frank DeLesseps relaxa um pouco.
— Vamos entrar — diz Big Jim, sacudindo o polegar para Randolph e Andy, que ainda olham o céu. — Vamos
conversar um pouco e depoiseu chamo vocêsquatro. Quero que todos contem a mesma história melequenta que eu
contar. Entenderam?
— Sim, sr. Rennie — responde Frankie.
Mel Searles fita Big Jim, os olhos arregalados como pires e a boca aberta. Big Jim acha que o QI do rapaz deve
chegar a setenta. Não que isso seja necessariamente ruim.
— Parece o fim do mundo, sr. Rennie — dizele.
— Bobagem. Já está Salvo, meu filho?
— Acho que sim — responde Mel.
— Então não precisa se preocupar. — Big Jim os examina um a um, terminando com Carter Thibodeau. — E hoje
à noite, rapazes, o caminho da salvação é todos contarem a mesma história.
Nem todos veem as estrelas cor-de-rosa. Como os meninos Appleton, as garotinhas de Rusty Everett estão num
sono profundo. Piper também. E Andrea Grinnell. E o Chef, caído de pernas abertas no capim seco ao lado do
laboratório que talvez seja a maior fábrica de metanfetamina dos Estados Unidos.
O mesmo com Brenda Perkins, que chorou até dormir no sofá com as páginas de VADER espalhadas na mesinha
de centro diante dela.
Os mortos também não veem, a menos que olhem de um lugar mais claro que essa planície escurecida onde
exércitos ignorantes se digladiam à noite. Myra Evans, Duke Perkins, Chuck Thompson e Claudette Sanders estão
enfiados lá na Funerária Bowie; o dr. Haskell, o sr. Carty e Rory Dinsmore, no necrotério do hospital Catherine
Russell; Lester Coggins, Dodee Sanders e Angie McCain ainda estão na despensa dos McCain. Junior também. Está
entre Dodee e Angie, segurando as mãos das duas. A cabeça dói, mas só um pouco. Ele acha que talvez passe a
noite ali.
Na estrada de Motton, em Eastchester (não muito longe do lugar onde acontece a tentativa de romper a Redoma
com um composto ácido experimental sob o estranho céu cor-de-rosa), Jack Evans, marido da falecida Myra, está no
quintal com uma garrafa de Jack Daniels numa das mãos e a sua arma predileta de proteção doméstica, uma Ruger
SR9, na outra. Ele bebe e assiste à queda dasestrelas cor-de-rosa. Sabe o que são e, a cada uma, faz um desejo, e
deseja a morte, porque sem Myra ele perdeu o pé na vida. Talvez conseguisse viver sem ela, e talvez conseguisse
viver como um rato numa gaiola de vidro, mas não consegue aguentar os dois. Quando a queda de meteoros fica
mais intermitente — isso por volta das22h15, uns45 minutosapóso início da chuva —, ele engole o resto do uísque,
joga a garrafa no capim e explode o cérebro. É o primeiro suicídio oficialde Mill.
Não será o último.
Barbie, Julia e Lissa Jamieson observaram em silêncio os dois soldados com roupa espacial remover a ponta fina
da extremidade da mangueira de plástico. Colocaram-na num saco plástico opaco fechado com zíper e depois
puseram o saco num estojo de metal com as palavras MATERIAL PERIGOSO pintadas. Trancaram-no com chaves
separadase depois tiraram o capacete. Pareciam cansados, com calor e desanimados.
Dois homens mais velhos — velhos demais para serem soldados — tiraram um equipamento de aparência
complicada do local da experiência com ácido, realizada três vezes. Barbie achou que os camaradas mais velhos,
talvez cientistas da Agência de Segurança Nacional, tinham feito algum tipo de análise espectrográfica. Ou tentado
fazer. As máscaras contra gases usadas durante o procedimento de teste estavam agora puxadas para o alto da
cabeça, como chapéus esquisitos. Barbie teria perguntado a Cox o que os testes deveriam revelar, e Cox talvez até
lhe desse uma resposta franca, mas Barbie também estava desanimado.
Lá em cima, osúltimos meteoroides cor-de-rosa riscavam o céu.
Lissa apontou para Eastchester.
— Ouvium barulho que parecia um tiro. Vocêsouviram?
— Talvez o escapamento de algum carro ou um garoto soltando foguetes — disse Julia. Também estava cansada
e desanimada. Em certo momento, quando ficou claro que a experiência, o teste com ácido, por assim dizer, não
daria certo, Barbie a vira limpar osolhos. Mas isso não a impedira de tirar fotos com a Kodak.
Cox andou na direção deles, a sombra lançada em duas direções pelos refletores que tinham sido acesos. Fez um
gesto para o lugar onde a forma da porta fora pintada na Redoma.
— Acho que essa pequena aventura custou aos contribuintes americanos uns 750 mil dólares, isso sem contar as
despesas de pesquisa e desenvolvimento da criação do composto ácido. Que comeu a tinta que nós jogamos ali e,
fora isso, não fezabsolutamente merda nenhuma.
— Olha o palavreado, coronel — disse Julia, com um fantasma do seu antigo sorriso.
— Obrigada, Senhora Editora — disse Cox, azedo.
— Achava mesmo que ia dar certo? — perguntou Barbie.
— Não, mas também não achava que viveria para ver um homem em Marte, e os russos dizem que vão mandar
quatro em 2020.
— Ah, entendo — disse Julia. — Os marcianos ficaram sabendo e estão possessos.
— Se assim for, retaliaram contra o paíserrado — retorquiu Cox... e Barbie viu algo nosolhosdele.
— Quanta certeza você tem, Jim? — perguntou baixinho.
— Como é?
— De que a Redoma foi criada por extraterrestres.
Julia deu doispassosà frente. O rosto estava pálido, osolhosardentes.
— Conta pra gente o que você sabe, caramba!
Coxergueu a mão.
— Pare. Não sabemosnada. Mashá uma teoria. Sim. Marty, vem cá.
Um dos cavalheiros mais velhos que fizeram os testes se aproximou da Redoma. Segurava a máscara contra
gasespela correia.
— Sua análise? — indagou Cox, ao ver a hesitação do outro — Pode falar abertamente.
— Bom... — Marty deu de ombros. — Vestígios minerais. Solo e poluentes aerotransportados. Fora isso, nada.
Segundo a análise espectrográfica, essa coisa não está aí.
— E o HY-908? — E, para Barbie e as mulheres: — O ácido.
— Sumiu — disse Marty — A coisa que não está aí engoliu.
— Pelo que você sabe, isso é possível?
— Não. Masa Redoma não é possível, pelo que nós sabemos.
— E isso leva você a acreditar que a Redoma pode ser criação de alguma forma de vida com conhecimento mais
avançado de física, química, biologia, seja o que for?
Quando Martyhesitou de novo, Cox repetiu o que já dissera.
— Pode falar abertamente.
— É uma possibilidade. Também é possível que algum supervilão terreno a tenha criado. Um Lex Luthor do
mundo real. Ou pode ser obra de um país renegado, como a Coreia do Norte.
— Sem assumir o crédito? — perguntou Barbie com ceticismo.
— Eu me inclino para os extraterrestres — disse Marty. Deu uma batidinha na Redoma sem piscar; já levara o seu
choquinho. — A maioria dos cientistas que estão trabalhando nisso também, se é que podemos dizer que estamos
trabalhando quando, na verdade, não estamos fazendo nada. É a Regra de Sherlock: depois de eliminar o
impossível, a resposta, por mais improvávelque seja, é o que sobrar.
— Alguém ou alguma coisa pousou num disco voador e exigiu ser levado ao nosso líder? — perguntou Julia.
— Não — respondeu Cox.
— Você saberia se isso acontecesse? — perguntou Barbie, e pensou: Estamos mesmo discutindo isso? Ou eu
estou sonhando?
— Não necessariamente — disse Cox, depoisde uma breve hesitação.
— Ainda poderia ser meteorológico — disse Marty. — Cacete, até biológico, uma coisa viva. Há uma escola de
pensamento que acha que essa coisa na verdade é algum tipo de híbrido de E. coli.
— Coronel Cox — disse Julia baixinho —, nós somosa experiência de alguém? Porque é o que está parecendo.
Enquanto isso, Lissa Jamieson olhava as casas bonitas do bairrinho de Eastchester. A maioria das luzes estava
apagada, ou porque quem morava lá não tinha gerador ou porque estavam poupando energia.
— Foium tiro — disse ela. — Tenho certeza de que foium tiro.

Under The DomeOnde histórias criam vida. Descubra agora