ORAÇÕES

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Barbie e Julia Shumway não falaram muito; não havia muito a dizer. O carro deles, pelo que Barbie podia ver, era
o único na estrada, mas saía luz da maioria das janelas dos sítios depois que se afastaram da cidade. Lá, onde
sempre havia trabalho a fazer e ninguém confiava muito na empresa de energia elétrica, quase todos tinham
gerador. Quando passaram pela torre da WCIK, asduas lâmpadas vermelhasno alto piscavam como sempre. A cruz
elétrica na frente do prédio do pequeno estúdio também estava iluminada, um farol branco e brilhante na escuridão.
Acima dela, as estrelas transbordavam pelo céu na profusão extravagante de sempre, uma catarata sem fim de
energia que não precisava de gerador.
— Eu costumava vir pescar por aqui — disse Barbie. — É tranquilo.
— Dava sorte?
— Muita, mas às vezes o ar cheira como a cueca suja dos deuses. Adubo ou sei lá. Nunca ousei comer o que eu
pescava.
— Adubo não; bosta mental. Também chamada de cheiro da retidão moral. — Como assim?
Ela apontou a forma de uma torre escura que bloqueava asestrelas.
— A Igreja do Sagrado Cristo Redentor — disse ela. — São os donos da WCIK ali atrás. Também chamada de
Rádio Jesus.
Ele deu de ombros.
— Acho que eu já vi a torre. E conheço a estação. Meio difícil não conhecer quando se mora aqui e se tem rádio.
Fundamentalista?
— Fazem os batistas mais empedernidos parecerem frouxos. Eu sou da Congregacional. Não suporto Lester
Coggins, detesto todo aquele ha-ha-você-vai-pro-inferno-a-gente-não. Cada qual com seu cada qual, sei lá. Embora
eu já tenha me perguntado muitas vezes como é que eles conseguem ter uma estação de rádio de 50 mil watts.
— Oferendasde amor?
Ela fezum muxoxo.
— Talvezeu devesse perguntar ao Jim Rennie. Ele é diácono.
Julia tinha um Prius Hybrid bem-cuidado, carro que Barbie não esperaria de uma republicana empedernida e dona
de jornal (embora achasse que combinava com uma frequentadora da Primeira Igreja Congregacional). Mas era
silencioso e o rádio funcionava. O único problema é que, ali, no lado oeste da cidade, o sinal da WCIK era tão forte
que cobria tudo na faixa de FM. E naquela noite eles transmitiam uma merda sacra tocada num acordeão que feria a
cabeça de Barbie. Parecia polca tocada por uma orquestra morrendo de peste bubônica.
— Por que você não muda pra AM? perguntou ela.
Foi o que ele fez e só achou blá-blá-blá noturno até encontrar uma estação esportiva quase no fim do dial. Ali,
soube que, antes do jogo entre os Red Sox e os Mariners em Fenway Park, houve um minuto de silêncio pelas
vítimasdo que o locutor chamou de “evento no oeste do Maine”.
— Evento — disse Julia. — Típico de locutor esportivo de rádio. Melhor desligar.
Menosde 2 quilômetrosdepoisda igreja, começaram a ver um brilho entre asárvores. Chegaram a uma curva e à
claridade de holofotes quase do tamanho dos refletores das pré-estreias de Hollywood. Dois apontavam na direção
deles; outrosdoisestavam viradospara cima. Cada buraco da estrada se destacava em nítido relevo. Os troncosdas
bétulaspareciam fantasmasestreitos. Barbie sentiu que entravam num filme noir do finaldosanos1940.
— Para, para, para — disse ele. — Não é bom chegar mais perto. Parece que não tem nada lá, mas pode
acreditar que tem. Deve explodir toda a parte eletrônica do seu carrinho, no mínimo.
Ela parou e os dois desceram. Por um instante, ficaram só em pé na frente do carro, franzindo os olhos para a luz
forte. Julia ergueu uma das mãospara proteger osolhos.
Estacionados além das luzes, um de frente para o outro, havia dois caminhões militares com a carroceria coberta
de lona marrom. Por precaução, tinham colocado cavaletes na estrada, os pés escorados com sacos de areia.
Rugiam motores continuamente na escuridão — não um gerador, mas vários. Barbie viu cabos elétricos grossos que
se afastavam dosholofotese entravam na floresta, onde outras luzesbrilhavam entre asárvores.
— Vão iluminar o perímetro — disse ele, e girou o dedo no ar, como um juizde beisebol indicando a corrida à base
principal. — Luzesem torno da cidade inteira, iluminando pra dentro e pra cima.
— Por que pra cima?
— Pra alertar e afastar o tráfego aéreo. Quer dizer, se algum avião passar por aqui. Aposto que estão
preocupados principalmente com esta noite. Amanhã vão ter o espaço aéreo de Mill tão fechado quanto um saco de
dinheiro do Tio Patinhas.
No lado escuro dos holofotes, mas visíveis pela luz que escapava pela traseira, havia meia dúzia de soldados
armados em posição de descanso, de costas para eles. Deviam ter ouvido a aproximação do carro, com todo aquele
silêncio, masnenhum delesolhou em volta.
— Ei, rapazes! — gritou Julia.
Nenhum se virou. Barbie não esperava que se virassem — no caminho, Julia contara a Barbie o que Cox lhe
dissera —, mas tinha que tentar. E como sabia ler as insígnias, sabia o que tentar. O Exército poderia comandar o
espetáculo — o envolvimento de Cox indicava isso — masesses camaradasnão eram do Exército.
— Oi, fuzileiros! — gritou.
Nada. Barbie se aproximou. Viu uma linha horizontal escura pendendo no ar acima da estrada, mas a ignorou por
enquanto. Estava mais interessado nos homens que guardavam a barreira. Ou a Redoma. Julia dissera que Cox a
chamara de Redoma.
— Estou surpreso de ver vocês do Reconhecimento aqui na terrinha — disse ele, chegando um pouco mais perto.
— Aquele probleminha no Afeganistão já acabou, é?
Nada. Chegou maisperto. O barulho áspero da terra sob os sapatosparecia muito alto.
— Está cheio de viadinhos no Reconhecimento, me falaram. Estou mesmo aliviado, sabe? Se a situação fosse
mesmo ruim, teriam mandado os Rangers.
— Isca de puta — murmurou um deles.
Não era muito, mas Barbie se sentiu encorajado.
— Calma, calma, parceiros, calma, vamos conversar.
Nada mais. E ele não queria chegar ainda mais perto da barreira (ou da Redoma). A pele não se arrepiou e os
pelinhosda nuca não ficaram em pé, masele sabia que a coisa estava ali. Dava para sentir.
E dava para ver: aquela tira pendendo no ar. Ele não sabia que cor teria à luz do dia, mas adivinhava ser
vermelha, a cor do perigo. Era tinta spraye ele apostaria tudo o que tinha no banco (atualmente, pouco maisde 5 mil
dólares) que dava a volta na barreira toda.
Como uma listra numa manga de camisa, pensou.
Fechou o punho e bateu no seu lado da tira, produzindo de novo aquele som de nó de dedo em vidro. Um dos
fuzileirospulou.
Julia começou:
— Não sei se é uma boa...
Barbie a ignorou. Estava começando a se zangar. Parte dele esperara o dia todo para se zangar e ali estava a
oportunidade. Ele sabia que não adiantava descarregar naqueles rapazes — eram apenas figurantes —, mas era
difícil se controlar.
— Ei, fuzileiros! Ajudem um irmão.
— Desiste, parceiro. — Embora quem falava não se virasse, Barbie sabia que era o comandante daquele
grupinho. Reconheceu o tom de voz, ele mesmo o usara. Muitas vezes. — Temos as nossas ordens, logo ajude você
um irmão. Em outra ocasião, em outro lugar, eu adoraria te pagar uma cerveja ou te dar um chute na bunda. Mas
não aqui, não agora. O que você diz?
— Tudo bem — disse Barbie. — Mas vendo que estamos todosdo mesmo lado, não tenho que gostar. — Virou-se
para Julia. — Está com o celular?
Ela o entregou.
— Você devia arranjar um. Estão fazendo muito sucesso.
— Eu tenho — disse Barbie. — Um descartável, comprei baratinho na Best Buy. Quase nunca usei. Deixei na
gaveta quando tentei sair da cidade. Não vipor que não deixar lá hoje.
Ela lhe entregou o dela.
— Acho que você mesmo vai ter que teclar o número. Tenho muito o que fazer. — Ela ergueu a voz para que os
soldados em pé além das luzes brilhantes conseguissem escutá-la. — Sou editora do jornal local, afinal de contas, e
quero algumas fotos. — Ela levantou a voz mais um pouquinho. — Ainda mais de alguns soldados de costas para
uma cidade em dificuldades.
— Minha senhora, espero que não faça isso — disse o comandante. Era um sujeito grandalhão, de costas largas.
— Vem me impedir — convidou ela.
— Acho que a senhora sabe que nósnão podemos fazer isso — disse ele.
— Quanto a estarmosde costas, são essasasnossasordens.
— Fuzileiro — disse ela —, pode pegar as suas ordens, enrolar bem enroladinhas, dobrar bem dobradinhas e
enfiar onde a qualidade do ar é questionável. — À luz brilhante, Barbie viu algo notável: a boca de Julia numa linha
dura e implacávele osolhos cheiosde lágrimas.
Enquanto Barbie teclava o número com o estranho código de área, ela pegou a câmera e começou a tirar fotos. O
flash não era muito forte comparado com os grandes holofotes alimentados por geradores, mas Barbie viu os
soldados se encolherem cada vez que disparava. Devem estar torcendo para a maldita insígnia não aparecer,
pensou.
O coronel James O. Cox, do Exército dos Estados Unidos, dissera que ficaria sentado com a mão no fone àsdeze
meia. Barbie e Julia Shumway tinham se atrasado um pouco e Barbie só telefonou quando eram 22h40, mas a mão
de Coxdevia mesmo estar no fone, porque o aparelho só deu meio toque e o antigo chefe de Barbie disse: “Alô, Ken
falando.”
Barbie ainda estava zangado, mas riu assim mesmo.
— Sim, senhor. E continuo a ser a puta que fica com toda a merda boa.
Cox também riu, pensando, sem dúvida, que tinham começado bem.
— Como vai, capitão Barbara?
— Vou bem, senhor. Mas, com todo o respeito, agora é só Dale Barbara. As únicas coisas que eu capitaneio hoje
em dia são a chapa e as fritadeiras do restaurante local e não estou a fim de conversa fiada. Estou perplexo, senhor,
e como só vejo as costas de um monte de fuzileiros isca de puta que não querem se virar para me olhar nos olhos,
também estou bem pê da vida.
— Entendido. E você precisa entender uma coisa do meu lado. Se houvesse alguma coisa que todos esses
homens pudessem fazer para ajudar ou dar fim a essa situação, você estaria olhando para a cara e não para a
bunda deles. Acredita nisso?
— Estou escutando, senhor. — O que não era exatamente uma resposta.
Julia ainda tirava fotos. Barbie foi para a beira da estrada. Dessa nova posição, via uma barraca montada além
dos caminhões. Também o que poderia ser uma pequena barraca-refeitório e um estacionamento cheio de mais
caminhões. Os fuzileiros montavam um acampamento ali e, provavelmente, outros maiores onde as rodovias 119 e
117 saíam da cidade. Isso indicava permanência. O seu coração se entristeceu.
— A jornalista está aí? — perguntou Cox.
— Está aqui. Tirando fotos. E, senhor, transparência total, o que o senhor me contar, eu conto pra ela. Agora eu
estou deste lado.
Julia parou o que fazia por tempo bastante para dar a Barbie um sorrisinho.
— Entendido, capitão.
— Senhor, me chamar assim não lhe fazganhar pontos.
— Tudo bem, então só Barbie. Assim fica melhor?
— Sim, senhor.
— Quanto ao que a senhorita decidir publicar.., pelo bem dos moradores dessa sua cidadezinha, espero que ela
tenha bom-senso suficiente na hora de escolher.
— Eu aposto que ela tem, sim.
— E se ela mandar imagens por e-mail pra alguém de fora — alguma revista semanal ou o New York Times, por
exemplo —, talvez vocês venham a ver sua internet seguir o mesmo caminho dos telefones fixos.
— Senhor, isso é sujeira da gro...
— A decisão seria tomada bem acima do meu posto. Só estou avisando.
— Eu digo a ela suspirou Barbie.
— Me dizo quê? — perguntou Julia.
— Que se você tentar transmitir essas fotos, elespodem descontar na cidade impedindo o acesso à internet.
Julia fez um gesto que Barbie não costumava associar com belas damas republicanas. Ele retornou sua
atenção para o celular.
— Quanto o senhor pode me contar?
— Tudo o que eu sei — disse Cox.
— Obrigado, senhor. — Embora Barbie duvidasse que Cox fosse mesmo contar tudo. O Exército nunca contava
tudo o que sabia. Ou que pensava que sabia.
— Estamos chamando a coisa de Redoma — disse Cox —, mas não é uma Redoma. Ao menos, não achamos
que seja. Achamos que é uma cápsula cujas bordas se encaixam exatamente nas fronteiras da cidade. E entenda-se
esse “exatamente” de forma literal.
— O senhor sabe até que altura vai?
— Parece chegar a uns 14.300 metros, por aí. Não sabemos se o topo é plano ou se é arredondado. Ao menos
não por enquanto.
Barbie não disse nada. Estava embasbacado.
— E a profundidade... ninguém sabe. Agora só podemos dizer que é de mais de 300 metros. Essa é a
profundidade atual de uma escavação que estamos fazendo na fronteira entre Chester’s Mill e o distrito não
incorporado ao norte.
— TR-90. — Aosouvidosde Barbie, a sua voz soou baixa e apática.
— Isso. Começamos num poço de cascalho que já tinha uns 12 metros. Vi imagens espectrográficas que não dá
pra entender. Camadas longasde rochas metamórficas cortadasao meio. Não há lacuna, masdá pra ver a mudança
onde a parte norte da camada caiu um pouquinho. Verificamos os registros do sismógrafo da estação meteorológica
de Portland e bingo. Houve um pequeno abalo às 11h44 da manhã. Dois ponto um na escala Richter. Foi quando
aconteceu.
— Ótimo — disse Barbie. Achou ter sido sarcástico, masestava espantado e perplexo demaispara ter certeza.
— Nada disso é conclusivo, mas é convincente. É claro que a exploração mal começou, mas por enquanto parece
que a coisa tanto desce quanto sobe. E se sobe 8 quilômetros...
— Como o senhor sabe? Radar?
— Negativo, essa coisa não aparece no radar. Não há como saber que está ali até bater nela ou até chegar tão
perto que não dá pra parar. O custo humano quando a coisa subiu foibaixíssimo, mas houve um inferno de pássaros
mortosem volta. Dentro e fora.
— Eu sei. Já vi. — Julia acabara de tirar as fotos. Estava em pé ao lado dele, escutando a conversa de Barbie. —
Então, como o senhor sabe até que altura vai? Laser?
— Não, ele também passa. Temos usado mísseis com ogivas vazias. Desde as quatro da tarde, estamos fazendo
sortidasde aviões F-15A decolando de Bangor. Fico surpreso de você não ter escutado.
— Posso ter ouvido alguma coisa — disse Barbie. — Mas a minha cabeça estava ocupada com outras questões.
— Como o avião. E o caminhão. Os mortosna rodovia 117. Parte do baixíssimo custo humano.
— Eles ricocheteavam... então a 14.300 metrose tal, zípete-zum, lá foram eles. Cá entre nós, fico surpreso de não
termosperdido nenhum daquelespilotosde caça.
— Vocês já a sobrevoaram?
— Há menosde duashoras. Missão bem-sucedida.
— Quem fez isso, coronel?
— Não sabemos.
— Fomos nós? É alguma experiência que deu errado? Ou, que Deus nos ajude, algum tipo de experiência? O
senhor me deve a verdade. O senhor deve a verdade a essa cidade. Esse povo está apavorado.
— Compreensível. Masnão fomosnós.
— Se fôssemos, o senhor saberia?
Coxhesitou. Quando voltou a falar, a vozestava maisbaixa.
— Temos boas fontes no meu departamento. Quando peidam na Agência de Segurança Nacional, a gente
escuta. O mesmo acontece no Grupo Nove, em Langley, e em mais alguns negociozinhos de que você nunca ouviu
falar.
Era possível que Cox estivesse falando a verdade. E era possível que não. Era um cumpridor do seu dever, afinal
de contas; se estivesse de sentinela ali naquele frio escuro de outono com o resto dos fuzileiros isca de puta, Cox
também estaria em pé de costas. Não gostaria, masordens são ordens.
— Alguma possibilidade de que seja um tipo de fenômeno natural? — perguntou Barbie.
— Que se ajusta exatamente às fronteiras humanas de uma cidade inteira? Cada buraco, cada cantinho? O que
você acha?
— Eu tinha que perguntar. É permeável? O senhor sabe?
— A água passa — disse Cox. — Ao menosum pouco.
— Como é possível? — Embora ele tivesse visto com os próprios olhos o jeito estranho como a água se
comportava; ele e Gendron tinham visto.
— Não sabemos, como poderíamos? — Cox parecia exasperado. — Estamos trabalhando nisso há menos de 12
horas. Todos estão trocando tapinhas nas costas só por terem descoberto até que altura vai. Podemos descobrir,
maspor enquanto não sabemos.
— Ar?
— Ar passa bastante. Montamos uma estação de monitoramento onde a sua cidade faz limite com... hum.... —
Barbie ouviu de leve o farfalhar do papel. — Harlow. Fizeram o que chamam de “teste de sopro”. Acho que devem
medir a pressão do ar que sai comparada à do ar que ricocheteia. Seja como for, o ar passa, e muito mais do que
água, masos cientistasdizem que a passagem não é completa. Isso vai foder de vezo clima de vocês, parceiro, mas
ninguém sabe quanto nem como. Ora, talvez transforme Chester’s Mill em Paim Springs. — Ele deu um risinho
bastante fraco.
— Particulados? — Barbie achou que sabia essa resposta.
— Nada — disse Cox. — Matéria particulada não passa. Ao menos, não achamos que passe. E preste atenção,
isso acontece em ambos os sentidos. Se a matéria particulada não entra, também não sai. Isso significa que a
emissão dosautomóveis...
— Ninguém tem muito espaço pra dirigir. Chester’s Mill talvez tenha 6,5 quilômetros na parte mais larga. Na
diagonal... — Ele olhou para Julia.
— Onze, no máximo — disse ela.
— Também não achamos que os poluentes do aquecimento sejam um grande problema — disse Cox. — Tenho
certeza de que todos na cidade têm um bom sistema de aquecimento a gasolina bem caro; hoje, na Arábia Saudita,
eles usam adesivos nos carros dizendo “Eu Coração a Nova Inglaterra”; mas esses sistemas modernos precisam de
eletricidade pra fornecer uma fagulha constante. Provavelmente a reserva de gasolina é boa, considerando que a
temporada de aquecimento das casas ainda não começou, mas acho que não lhes será muito útil. A longo prazo,
isso pode ser bom, do ponto de vista da poluição.
— Acha mesmo? Vem cá quando estiver 30 graus abaixo de zero com o vento soprando a... — Ele parou um
instante. — O vento vai soprar?
— Não sabemos — disse Cox. — Me pergunta amanhã e talvezeu tenha ao menosuma teoria.
— Podemosqueimar lenha — disse Julia. — Diz isso a ele.
— A srta. Shumwaydizque podemosqueimar lenha.
— É preciso tomar cuidado com isso, capitão Barbara... Barbie. Claro que vocês têm muita madeira aí e não
precisam de eletricidade pra queimá-la, mas lenha produz cinza. Que inferno, produz carcinógenos.
— A temporada de aquecimento aqui começa... — Barbie olhou para Julia.
— Quinze de novembro — disse ela. — Maisou menos.
— A srta. Shumwaydiz meadosde novembro. Então me diga que vão resolver isso até lá.
— Só posso dizer que vamos tentar ao máximo. O que me leva à razão dessa conversa. Todos os geniozinhos, os
que conseguimos reunir até agora, concordam que lidamos com um campo de força...
— Como o de Star Trick — disse Barbie. — Teletransporte, Snotty.
— Como é?
— Nada, nada. Continue, senhor.
— Todos concordam que campos de força não aparecem à toa. Alguma coisa próxima ao campo ou no meio dele
tem de gerá-lo. O nosso pessoal acha que o centro é mais provável. “Como o cabo de um guarda-chuva”, disse um
deles.
— O senhor acha que é trabalho interno?
— Achamosque é uma possibilidade. E acontece de termosum soldado condecorado na cidade...
Ex-soldado, pensou Barbie. E as condecorações mergulharam no Golfo do México faz 18 meses. Mas ficou com a
ideia de que o seu tempo de serviço acabara de ser ampliado, quisesse ou não. Mantido por exigência popular, como
se costuma dizer.
— ... cuja especialidade no Iraque era achar fábricasde bombasda Al-Qaeda Achar e fechar.
Pois é. Basicamente, outro gerador. Ele pensou em todos aqueles pelos quais Julia Shumway e ele tinham
passado no caminho até ali, rugindo no escuro, fornecendo luz e calor. Consumindo gás. Percebeu que gás e
baterias, maisainda do que comida, tinham se tornado o novo padrão-ouro de Chester’s Mill. De uma coisa ele sabia:
a população queimaria lenha. Se esfriasse e o gás acabasse, queimariam muita. Madeira de lei, madeira barata,
madeira velha. E que se fodessem os carcinógenos.
— Não seria como os geradores que estão funcionando no seu lado do mundo agora à noite — disse Cox. — A
coisa capazde fazer isso... não sabemos como seria, nem quem conseguiria construir um troço desses.
— Mas o Tio Sammy quer — disse Barbie. Segurava o celular com tanta força que quase conseguiria quebrá-lo.
— Na verdade é essa a prioridade, não é, senhor? Porque uma coisa dessaspoderia mudar o mundo. Os moradores
da cidade são estritamente secundários. Efeito colateral, na verdade.
— Ah, não sejamos melodramáticos — disse Cox. — Nesse caso, os nossos interesses coincidem. Ache o
gerador, se é que ele existe. Ache do jeito que achou aquelas fábricasde bombase o desligue. Problema resolvido.
— Se estiver aqui.
— Se estiver aí, isso. Vai tentar?
— Tenho opção?
— Não que eu saiba, mas sou militar de carreira. Pra nós, livre-arbítrio não é opção.
— Ken, esse é o treinamento de incêndio mais fodido que você já me arranjou.
Cox demorou para responder. Embora houvesse silêncio na linha (a não ser por um leve zumbido agudo que
poderia significar que a conversa estava sendo gravada), Barbie quase conseguia ouvir o outro pensando. Depois,
Coxdisse:
— É verdade, mas você ainda fica com toda a merda boa, seu puto.
Barbie riu. Não conseguiu segurar.
No caminho de volta, ao passar pela forma escura que era a Igreja do Sagrado Cristo Redentor, ele se virou para
Julia. À luzdas lâmpadasdo painel, o rosto dela parecia cansado e solene.
— Não vou te pedir que guarde segredo sobre tudo isso — disse ele —, masacho que você deveria se calar sobre
uma coisa.
— O gerador que pode ou não estar na cidade. — Ela tirou uma das mãos do volante, esticou-a para trás e
passou-a na cabeça de Horace, como se para consolar e tranquilizar.
— É.
— Porque se houver um gerador criando o campo, criando a Redoma do seu coronel, então alguém deve estar
cuidando dele. Alguém daqui.
— Coxnão disse isso, mas tenho certeza de que é o que ele acha.
— Isso eu guardo. E não vou mandar nenhuma foto por e-mail.
— Ótimo.
— Afinal, elas têm que sair primeiro no Democrata. — Julia continuou acariciando o cachorro. Gente que dirigia
com uma mão só costumava deixar Barbie nervoso, mas não naquela noite. A Bostinha e a 119 eram só deles. —
Também entendo que às vezes o bem maior é mais importante do que uma ótima reportagem. Ao contrário do New
York Times.
— Na mosca — disse Barbie.
— E se você encontrar o gerador, não vou ter que passar muitos dias fazendo compras no Food City Detesto
aquele lugar. — Ela pareceu se espantar. — Acha que vão abrir amanhã?
— Eu diria que sim. Aspessoaspodem demorar pra entender a nova ordem quando a velha se altera.
— Acho melhor fazer umas comprinhasdominicaisdisse ela, pensativa.
— Aproveita pra dar um alô a Rose Twitchell. Provavelmente ela vai estar com o fiel Anson Wheeler. — Ao
recordar o conselho que dera a Rose, riu e disse: — Carne, carne, carne.
— Como é?
— Se você tem um gerador em casa...
— Claro que eu tenho, moro em cima do jornal. Não é uma casa; é um ótimo apartamento. O gerador foi dedução
fiscal. — Ela disse isso com orgulho.
— Então compra carne. Carne e enlatados, enlatadose carne.
Ela pensou um pouco. O centro da cidade estava logo à frente. Havia bem menos luzes do que de costume, mas
ainda eram muitas. Por quanto tempo?, pensou Barbie. E Julia perguntou:
— O seu coronel te deu alguma idéia de como achar esse gerador?
— Nenhuma — disse Barbie. — Achar merda sempre foio meu serviço. Disso, ele sabe. — Ele parou e perguntou:
— Você acha que poderia ter algum contador Geiger na cidade?
— Eu sei que tem. No subsolo da Câmara de Vereadores. Na verdade, o subsubsolo, por assim dizer. Tem um
abrigo antirradiação lá.
— Tá brincando!
Ela riu.
— Que nada, Sherlock. Fiz uma reportagem sobre ele há três anos. Pete Freeman tirou as fotos. No subsolo tem
uma sala de reuniões grande e uma cozinhazinha. O abrigo fica meio lance de escadas abaixo da cozinha. De bom
tamanho. Construído na década de 1950, quando o capitalespeculativo era todo investido aquie sobrava dinheiro.
— A hora final — disse Barbie.
— É, é isso aí, e também Alas, Babylon. É um lugar bem deprimente. As fotosdo Pete me lembraram o bunker do
Führer pouco antes do fim. Tem uma espécie de despensa, prateleiras e mais prateleiras de enlatados, e meia dúzia
de catres. E algunsequipamentos fornecidospelo governo, como um contador Geiger.
— Osenlatadosdevem estar uma delícia depoisde cinquenta anos.
— Na verdade eles renovam o estoque de vez em quando. Tem até um pequeno gerador que foi ligado depois do
11 de Setembro. Na prestação de contas da cidade, dá pra ver a dotação do abrigo a cada quatro anos. Eram uns
trezentos dólares. Hoje são seiscentos. Você já tem o seu contador Geiger. — Ela lhe deu uma olhada rápida. —
Claro que James Rennie cuida de tudo o que é da Câmara como se fosse propriedade pessoal, do sótão ao abrigo
antirradiação, e vaiquerer saber pra que você quer o contador.
— Big Jim Rennie não vai saber — disse ele.
Ela aceitou sem comentários.
— Quer ir comigo até a redação? Assistir ao discurso do presidente enquanto começo a compor o jornal? Vai ser
um serviço sujo e rápido, isso eu posso dizer. Uma reportagem, meia dúzia de fotos pra consumo local, nada de
anúncio de Liquidação de Outono na Burpee.
Barbie pensou no caso. Estaria ocupado no dia seguinte, não só cozinhando como fazendo perguntas. Voltando
ao velho serviço, tudo outra vez, à moda antiga. Por outro lado, se voltasse à sua casa em cima da drogaria,
conseguiria dormir?
— Tudo bem. Provavelmente eu não deveria dizer isso, mas tenho muito talento pra office boy. E também faço um
belo café.
— Moço, está contratado. — Ela ergueu do volante a mão direita aberta e Barbie bateu nela, palma contra palma.
— Posso perguntar maisuma coisa? Estritamente pra não ser publicada?
— Claro — disse ele.
— Esse gerador de ficção científica. Você acha que vaiencontrar?
Barbie pensou bem enquanto ela estacionava ao lado da fachada que abrigava a redação do Democrata.
— Não — disse, finalmente. — Seria fácildemais.
Ela deu um suspiro e concordou. Depois, segurou osdedosdele.
— Acha que ajudaria se eu rezasse pelo seu sucesso?
— Malnão vai fazer — respondeu Barbie.
No Dia da Redoma, só havia duas igrejas em Chester’s Mill; ambas ofereciam mercadoria do ramo protestante
(embora de maneirasbem diferentes). Os católicos iam à igreja de Nossa Senhora das Águas Serenas, em Motton, e
os cerca de dez ou 12 judeus à Congregação Beth Shalom, em Castle Rock, quando sentiam necessidade de
consolo espiritual. Já houvera uma igreja Unitária, mas morrera por abandono no final da década de 1980. Todos
concordavam que, mesmo assim, era uma coisa meio hippie. Agora o prédio abrigava a livraria Novose Usados Mill.
Naquela noite, os dois pastores de Chester’s Mill estavam “presos pelo joelho”, como dizia Big Jim Rennie, mas o
modo de falar, o estado de espírito e asexpectativaseram muito diferentes.
A reverenda Piper Libby, que cuidava do seu rebanho no púlpito da Primeira Igreja Congregacional, não
acreditava maisem Deus, embora não dividisse isso com seus congregantes. Lester Coggins, por sua vez, acreditava
a ponto de martírio ou loucura (duaspalavraspara a mesma coisa, talvez).
A reverenda Libby, ainda com roupas caseiras — e ainda bastante bonita, mesmo aos 45 anos, para ficar bem
com elas —, ajoelhou-se diante do altar em quase total escuridão (a Congregacional não tinha gerador), com Clover,
o seu pastor-alemão, deitado atrásdela com o focinho naspatase osolhosa meio-pau.
— Olá, Não-Está — disse Piper. Não-Está era o nome particular que ela vinha dando a Deus. No início do outono,
fora o Grande Talvez. No verão, o
Onipotente Pode-Ser. Ela gostara desse; tinha certa graça. — Você sabe a minha situação... Devia saber, já tenho
Lhe enchido bastante osouvidos... Masnão é disso que vim falar hoje. O que talvez seja um alívio pra Você.
Ela suspirou.
— Estamos numa confusão aqui, Amigo. Espero que Você entenda, porque eu certamente não. Mas nós dois
sabemosque amanhã isso aqui vaiestar cheio de gente atrásde ajuda contra desastres celestes.
Fazia silêncio dentro da igreja e do lado de fora. “Silêncio demais”, como dizem nos filmes antigos. Ela já vira Mill
tão silenciosa numa noite de sábado? Não havia trânsito e as batidas graves da banda de fim de semana que
estivesse tocando no Dipper’s (sempre anunciada como DIRETO DE BOSTON!) estavam ausentes.
— Não vou Lhe pedir que me mostre a Sua vontade, porque não estou mais convencida de que Você tenha
mesmo vontade. Mas na possibilidade improvável de que Você esteja aí, afinal de contas, sempre há a possibilidade,
fico muito contente de admitir, por favor, me ajude a dizer algo útil. Esperança não no paraíso, mas bem aqui na
Terra. Porque... — Ela não se surpreendeu ao notar que começara a chorar. Agora ela chorava muito, embora
sempre sozinha. Os habitantes da Nova Inglaterra desaprovavam com veemência lágrimas públicas de políticos e
religiosos.
Clover, sentindo a angústia dela, gemeu. Piper lhe disse que se calasse e se virou de volta para o altar. Ela
costumava pensar na cruz que havia ali como a versão religiosa da gravatinha da Chevrolet, um logotipo que só
passara a existir porque alguém vira o desenho no papel de parede de um quarto de hotel em Paris cem anos antes
e gostara dele. Quem considerava divinosaqueles símbolos só podia ser lunático.
Ainda assim, perseverou.
— Porque, como tenho certeza de que Você sabe, a Terra é o que nós temos. Do que temos certeza. Eu quero
ajudar o meu povo. Esse é o meu trabalho e eu ainda quero fazê-lo. Supondo que Você esteja aí e que Se importa,
pressupostos frágeis, admito, então, por favor, me ajude. Amém.
Ela se levantou. Não tinha lanterna, mas não previa dificuldades para encontrar a saída sem esbarrar em nada.
Conhecia o lugar passo a passo e obstáculo a obstáculo. E também o amava. Não se enganava a respeito da falta de
fé nem do amor teimoso a essa idéia.
— Vamos, Clove — disse ela. — Presidente daqui a meia hora. O outro Grande Não-Está. A gente pode ouvir no
rádio do carro.
Clover a seguiu placidamente, sem se perturbar com questõesde fé.
Lá na estrada da Bostinha (sempre chamada de Número Três pelos fiéis da Sagrado Redentor), havia uma cena
muito mais dinâmica, sob brilhante luz elétrica. A casa de culto de Lester Coggins possuía um gerador tão novo que
as etiquetas de transporte ainda estavam coladas na lateral laranja vivo. Ficava em abrigo próprio, também pintado
de laranja, ao lado do depósito atrásda igreja.
Lester era um homem de 50 anos tão bem-conservado — tanto pela genética quanto pelo esforço extenuante de
cuidar do templo do corpo — que não parecia ter mais de 35 (as aplicações criteriosas de xampu tonalizante
masculino ajudavam nesse aspecto). Naquela noite, vestia apenas um short de ginástica com ORAL ROBERTS
GOLDEN EAGLES escrito na perna direita, e quase todosos músculosdo corpo se destacavam.
Durante os cultos (dos quais havia cinco por semana), Lester orava num tremolo extasiado de pastor televisivo,
transformando o nome do Cara Lá de Cima numa coisa que parecia saída de um pedal de wah-wah com excesso de
amplificação: não Deus, mas DEU-UEU-UEU-UEUS! Nasoraçõesparticulares, às vezesele caía na mesma cadência
sem perceber. Mas quando estava profundamente perturbado, quando precisava mesmo se aconselhar com o Deus
de Moisés e Abraão, Aquele que viajara de dia como um pilar de fumaça e à noite como um pilar de fogo, Lester
fazia o seu lado da conversa num grunhido profundo que o fazia parecer um cão prestes a atacar um intruso. Não
sabia disso porque não havia ninguém na vida para ouvi-lo orar. Piper Libby era viúva, perdera o marido e os dois
filhos pequenos num acidente há três anos; Lester Coggins era um solteirão que, quando adolescente, tivera
pesadelos masturbatóriosem que erguia osolhospara ver Maria Madalena em pé à porta do seu quarto.
A igreja era quase tão nova quanto o gerador, construída de madeira de bordo, vermelha e cara. Também era
simples a ponto de ser dura. Atrás das costas nuas de Lester, estendia-se uma fila tripla de bancos sob um teto de
vigas. A frente dele, ficava o púlpito: apenas um leitoril com uma Bíblia e uma grande cruz de sequóia pendurada
diante de uma cortina de púrpura real. O balcão do coro ficava acima, à direita, com instrumentos musicais —
inclusive a Stratocaster que o próprio Lester tocava às vezes — agrupadosnum canto.
— Deus, ouvi minha oração — disse Lester na sua voz grunhida de estou-mesmo-orando. Numa das mãos,
segurava um pedaço de corda pesada com 12 nós, um nó para cada discípulo. O nono nó, o que significava Judas,
fora pintado de preto. — Deus, ouvia minha oração, peço em nome de Jesus crucificado e subido aos céus.
Ele começou a açoitar as próprias costas com a corda, primeiro sobre o ombro esquerdo, depois sobre o direito, o
braço se erguendo e dobrando num movimento suave. Os bíceps e deltoides nada desprezíveis começaram a suar.
Quando atingia a pele já com muitas cicatrizes, a corda com nós produzia um barulho de batedor de carpetes. Ele já
fizera isso muitas vezes, masnunca com tanta força.
— Deus, ouvia minha oração! Deus, ouvia minha oração! Deus, ouvia minha oração! Deus, ouvia minha oração!
Tap e tap e tap e tap. A ferroada como fogo, como urtiga. A afundar pelas estradas e retornos dos seus
miseráveisnervoshumanos. Ao mesmo tempo terríveise terrivelmente satisfatórios.
— Senhor, pecamos nesta cidade, e sou o maior dos pecadores. Dei ouvidos a Jim Rennie e acreditei nas suas
mentiras. Sim, acreditei, e eis o preço, e agora é como já foi. Não é apenas um que paga pelo pecado de um, mas
muitos. O Senhor se enraivece devagar, masquando a Vossa fúria vem, é como as tempestadesque varrem o trigal,
baixando não só uma haste, mas todas. Semeeio vento e colhi tempestade, não só para um, maspara muitos.
Havia outros pecados e outros pecadores em Mill — ele sabia disso, não era ingênuo, praguejavam, dançavam,
trepavam, usavam drogas sobre as quais ele sabia demais — e sem dúvida mereciam ser punidos, ser flagelados,
mas isso era verdade em todas as cidades, com certeza, e esta era a única que fora isolada para esse terrível ato de
Deus.
Ainda assim... ainda assim... seria possível que essa estranha maldição não se devesse ao seu pecado? Sim.
Possível. Masnão provável.
— Senhor, preciso saber o que fazer. Estou na encruzilhada. Se a Vossa vontade for que eu suba neste púlpito
amanhã de manhã e confesse o que aquele homem me levou a fazer — os pecados que cometemos juntos, os
pecados de que participei sozinho —, então o farei. Mas isso seria o fim do meu ministério, e é difícil para mim
acreditar que seja essa a Vossa vontade numa hora tão decisiva. Se a Vossa vontade for que eu espere... espere
para ver o que acontece depois... espere e ore com o meu rebanho para que esse fardo nos seja tirado... então farei.
A Vossa vontade será cumprida, Senhor. Agora e sempre.
Ele parou a flagelação (conseguia sentir gotas quentes e confortadoras correndo pelas costas fluas; vários nós da
corda tinham começado a ficar vermelhos) e virou o rosto manchado de lágrimaspara as vigasdo teto.
— Porque esse povo precisa de mim, Senhor. O Senhor sabe que precisam, agora maisdo que nunca. Então... se
for da Vossa vontade que essa taça seja removida dos meus lábios... por favor, dai-me um sinal.
Ele esperou. E então, o Senhor Deusdisse a Lester Coggins:
— Vou mostrar-te um sinal. Vá até a tua Bíblia, como fizeste quando criança depois daqueles teus sonhos
horríveis.
— Agora mesmo — disse Lester. — Agorinha mesmo.
Ele pendurou no pescoço a corda com nós, que lhe imprimiu no peito e nos ombros uma ferradura de sangue, e
depois subiu ao púlpito com mais sangue escorrendo pelo oco da espinha e umedecendo a faixa elástica do short.
Ficou no púlpito como se fosse pregar (embora nunca, nem nospiorespesadelos, tivesse sonhado em pregar com
tão pouca roupa), fechou Bíblia que aliestava aberta e depoisosolhos.
— Senhor, a Vossa vontade será feita. Peço em nome do Vosso filho crucificado em vergonha e que ascendeu
para a glória.
E o Senhor disse:
— Abre o Meu Livro e vê o que vês.
Lester fez o que lhe diziam (tomando cuidado para não abrir a grande Bíblia perto demais do meio — aquele era
um serviço para o Antigo Testamento). Mergulhou o dedo na página não vista, depois abriu os olhos e se curvou
para olhar. Era o segundo capítulo do Deuteronômio, versículo 28. E leu:
“O Senhor te ferirá com loucura, com cegueira e com pasmo de coração.”
Pasmo do coração provavelmente era bom, mas no total aquilo não era encorajador. Nem claro. Então o Senhor
falou de novo e disse:
— Não pare aí, Lester.
Ele leu o versículo 29:
— Apalparásao meio-dia...
— Sim, Senhor, sim — disse entredentese continuou lendo.
— ... como o cego apalpa nas trevas, e não prosperarás nos teus caminhos; serás oprimido e roubado todos os
dias, e não haverá quem te salve.
— Ficarei cego? — perguntou Lester, a sua voz grunhida de oração subindo de leve. — Oh, Senhor, por favor,
não fazeis isso... mas se for vontade a Vossa vontade...
Então o Senhor lhe falou de novo e disse:
— Levantou-se do lado burro da cama hoje, Lester?
Os olhos dele se arregalaram. Era a voz de Deus, mas a frase era uma das favoritas da sua mãe. Um verdadeiro
milagre.
— Não, Senhor, não.
— Então olha de novo, O que estou a te mostrar?
— Algo sobre loucura. Ou cegueira.
— Qualdosdois crês maisprovável?
Lester examinou os versículos. A única palavra repetida era cego.
— É isso... Senhor, é este o meu sinal?
O Senhor respondeu, dizendo:
— Em verdade, sim, mas não a tua cegueira; pois agora os teus olhos veem com mais clareza. Procura tu o cego
que enlouqueceu. Quando o vires, dirás à tua congregação o que Rennie andou aprontando por aí e o teu papel
nisso. Os dois devem contar. Falaremos mais sobre isso, mas, por enquanto, Lester, vai dormir. Estás pingando no
chão.
Lester foi, mas antes limpou os pequenos respingos de sangue na madeira de lei atrás do púlpito. Fez isso de
joelhos. Não orou enquanto trabalhava, mas meditou sobre os versículos. Sentiu-se muito melhor.
Por enquanto, falaria apenas em termos gerais sobre os pecados que poderiam ter trazido aquela barreira
desconhecida entre Mill e o mundo exterior; mas procuraria o sinal. Um cego ou cega que enlouquecera, em
verdade, sim.
Brenda Perkins escutava a WCIK porque o marido gostava (tinha gostado), mas jamais poria os pés dentro da
Igreja do Sagrado Redentor. Era congregacionista até osossose fazia questão de que o marido fosse com ela.
Tinha feito questão. Howie só entraria mais uma vez na igreja. Deitado lá, sem saber de nada, enquanto Piper
Libbypregava a sua elegia fúnebre.
Essa percepção, tão nítida e imutável, a atingiu. Pela primeira vez desde que recebera a notícia, Brenda relaxou e
gemeu. Talvezporque agora podia. Agora estava sozinha.
Na televisão, o presidente — parecendo solene e assustadoramente velho — dizia:
— Meus compatriotas americanos, vocês querem respostas. E prometo lhes dar respostas assim que as tiver.
Nessa questão, não haverá segredos. A minha janela para os eventos será a sua janela. Esta é a minha promessa
solene...
— Claro, e você tem uma ponte pra me vender — disse Brenda, e isso a fez chorar ainda mais, porque era uma
das frases de Howie. Desligou a TV e deixou o controle remoto cair no chão. Teve vontade de pisar nele e quebrá-lo
masnão o fez, principalmente porque conseguia ver Howie balançando a cabeça e lhe dizendo para não ser boba.
Em vez disso, entrou no pequeno escritório dele, querendo tocá-lo de algum jeito enquanto sua presença ali ainda
estivesse fresca. Precisava tocá-lo. Nos fundos, o gerador roncava. Gordo e contente, teria dito Howie. Ela detestara
a despesa com aquilo quando Howie o encomendara após o 11 de Setembro (Só pra prevenir, dissera), mas agora
se arrependia de todas as palavras irritadas que dissera a respeito. Sentir saudades dele no escuro teria sido ainda
mais terrível, mais solitário.
A mesa dele estava vazia, a não ser pelo laptop, que estava aberto. O protetor de tela era a foto de um antigo jogo
da Liga Juvenil de Beisebol. Howie e Chip, então com 11 ou 12 anos, usavam as camisetas verdes dos Monarcas da
Drogaria Sanders; a foto fora tirada no ano em que Howie e Rusty Everett levaram o time da Sanders à final do
campeonato estadual. Chip estava com o braço em torno do pai e Brenda abraçava os dois. Um dia bom. Mas frágil.
Frágil como uma taça de cristal. Quem saberia disso na época, quando ainda era possívelesperar um pouco?
Ela ainda não conseguira entrar em contato com Chip, e a idéia desse telefonema — supondo que conseguisse
dá-lo — a descompôs completamente. Aos soluços, caiu de joelhos ao lado da escrivaninha do marido. Não fechou
as mãos; ficou com as mãos postas, palma contra palma, como fazia quando criança, ajoelhada com o pijama de
flanela ao lado da cama, recitando o mantra Deus abençoe a mamãe, Deus abençoe o papai, Deus abençoe o meu
peixinho dourado que ainda não tem nome.
— Deus, aqui é Brenda. Não quero ele de volta... quer dizer, querer eu quero, mas sei que o Senhor não pode
fazer isso. Só me dê forças pra aguentar isso, ok? E eu queria saber se... Não sei se é blasfêmia ou não,
provavelmente é, mas eu queria saber se... Se o Senhor deixaria ele falar comigo mais uma vez. Talvez me tocar
maisuma vez, como hoje de manhã.
Ao pensar nisso — osdedosdele na pele dela sob o sol —, ela chorou ainda mais.
— Eu sei. O Senhor não lida com espíritos, só com o Espírito Santo, é claro, mas quem sabe num sonho? Seique
é pedir muito, mas... Ah, Senhor, tenho um buraco tão grande dentro de mim agora. Não sabia que as pessoas
podiam ter buracos assim e tenho medo de cair lá dentro. Se o Senhor fizer isso por mim, faço qualquer coisa pelo
Senhor. O Senhor só precisa pedir. Por favor, Senhor, só um toque. Ou uma palavra. Mesmo que seja num sonho.
— Ela respirou fundo e molhado. — Obrigada. A vossa vontade será feita, é claro. Quer eu goste ou não. — Ela deu
um risinho fraco. — Amém.
Ela abriu os olhos e se levantou, segurando a escrivaninha para se apoiar. Uma das mãos esbarrou no computador e a tela se iluminou de repente. Ele sempre se esquecia de desligá-lo, mas ao menos o mantinha na
tomada para que a bateria não se esgotasse. E mantinha a área de trabalho bem mais arrumada do que ela fazia; a
dela estava sempre cheia de arquivos baixados e lembretes eletrônicos. Na área de trabalho de Howie, sempre havia
só três pastas empilhadas abaixo do ícone do disco rígido: ATUAL, onde ficavam relatórios das investigações em
andamento; TRIBUNAL, onde ficava a lista de quem (inclusive ele) teria que prestar depoimento, onde e por quê. A
terceira pasta era MANSÃO DA RUA MORIN, onde ele guardava tudo que tivesse a ver com a casa. Ela achou que,
se abrisse esta, talvez achasse algo sobre o gerador, e seria bom saber como mantê-lo funcionando pelo maior
tempo possível. Provavelmente Henry Morrison, da delegacia, não se incomodaria de mudar o cilindro de gás, mas e
se não houvesse outro para trocar? Nesse caso, ela teria que comprar mais no Burpee ou no Posto de Gasolina &
Mercearia antesque acabassem.
Ela pôs o dedo no mousepad e parou. Havia uma quarta pasta na tela, escondidinha lá no canto esquerdo. Nunca
a vira antes. Brenda tentou se lembrar da última vezem que olhara a tela desse computador masnão conseguiu.
VADER era o nome da pasta.
Bom, só havia uma única pessoa na cidade que Howie chamava de Vader, como em Darth Vader: Big Jim Rennie.
Curiosa, ela levou o cursor à pasta e clicou duas vezes, para ver se era protegida por senha.
Era. Tentou WILDCATS, que abria a pasta ATUAL (ele não se incomodava em proteger TRIBUNAL), e funcionou.
Na pasta havia dois documentos. Um se chamava INVESTIGAÇÃO EM ANDAMENTO. O outro era um PDF
chamado CARTA DE PROGEM. Em “howiês”, isso queria dizer procurador-geraldo estado do Maine. Ela clicou.
Brenda examinou a carta do procurador-geral com espanto cada vez maior, enquanto as lágrimas secavam no
rosto. A primeira coisa em que os olhos caíram foi a saudação: não Prezado Chefe de Polícia Perkins, mas Caro
Duke.
Embora a carta fosse redigida em “advoguês” e não em “howiês”, algumas expressões se destacaram como se
estivessem negritadas. Apropriação indébita de bens e serviços municipais foi a primeira. Envolvimento do vereador
Sanders parece praticamente certo foi a segunda. Em seguida, Essa prevaricação é mais ampla e profunda do que
imaginávamoshá três meses.
E, quase no final, parecendo não só em negrito como em maiúsculas: PRODUÇÃO E VENDA DE DROGAS
ILÍCITAS.
Parecia que a sua oração fora atendida e de um jeito completamente inesperado. Brenda sentou-se na cadeira de
Howie, clicou em INVESTIGAÇÃO EM ANDAMENTO na pasta VADER e deixou o marido falar com ela.
7
O discurso do presidente — longo em consolo, curto em informações — terminou à 0h21. Rusty Everett assistiu a
ele no saguão do terceiro andar do hospital, deu uma última olhada nos gráficos e foi para casa. Na carreira médica,
já chegara ao fim do dia mais cansado do que naquele, mas nunca se sentira mais desanimado nem mais
preocupado com o futuro.
A casa estava às escuras. Ele e Linda tinham discutido a compra de um gerador no ano passado (e no ano
anterior) porque sempre faltava luz em Chester’s Mill quatro ou cinco dias em cada inverno e, em geral, também
umas duas vezes no verão; a Western Maine Power não era uma empresa de energia elétrica muito confiável. A
conclusão fora que simplesmente não tinham como pagar. Talvez se Lin conseguisse ser efetivada em tempo integral
na polícia, masnenhum dosdoisqueria isso enquanto as meninasainda fossem pequenas.
Ao menos temosum bom fogão e uma pilha de lenha daquelas. Se precisarmos.
Havia uma lanterna no porta-luvas, mas quando a acendeu ela emitiu uma luz fraca por cinco segundos e morreu.
Rusty murmurou um palavrão e disse a si mesmo que precisava comprar pilhas amanhã — ou hoje mais tarde.
Supondo que as lojasabrissem.
Se mesmo depoisde 12 anoseu não encontrar o meu caminho por aqui, sou um macaco.
É, bem. Ele se sentia meio como um macaco naquela noite — um recém-capturado e trancado numa jaula no
zoológico. O cheiro ao menosera o mesmo. Talvezum banho antesde dormir...
Nada disso. Sem luz, sem banho.
Era uma noite clara e, embora não houvesse lua, havia um bilhão de estrelas acima da casa, com a mesma cara
de sempre. Talvez a barreira não existisse por cima. O presidente não falara dessa questão, e talvez os
encarregados de investigar ainda não soubessem. Se Mill estivesse no fundo de um poço recém-criado em vez de
presa debaixo de alguma campânula esquisita, talvez tudo desse certo. O governo poderia lançar suprimentos de
avião. Sem dúvida, se o país podia gastar centenas de bilhões de dólares para salvar empresas, podia mandar de
paraquedasalgunsbolinhosprontose algunsgeradoresbobos.
Subiu os degraus do pórtico tirando o chaveiro do bolso, mas quando chegou à porta viu algo pendurado em cima
da fechadura. Curvou-se, franzindo os olhos, e sorriu. Era uma minilanterna. Na Liquidação de Verão da Burpee,
Linda comprara seis por cinco pratas. Na época, ele achou que era uma despesa idiota e se lembrava até de pensar:
As mulheres compram coisasem liquidação pela mesma razão que oshomensescalam montanhas: porque estão lá.
Uma argolinha de metal saía da parte de baixo da lanterna. Passando por ela, estava o cadarço de um dos seus
tênis velhos. Um bilhete tinha sido colado no cadarço com fita adesiva. Ele o tirou e jogou a luzem cima.
Oi, meu doce. Espero que esteja bem. As Jotinhas finalmente dormiram. Preocupadas e nervosas, mas acabaram
capotando. Tenho que trabalhar amanhã o dia todo e é o dia todo mesmo, de 7 às 7, diz Peter Randolph (o novo
chefe — AI). Marta Edmunds disse que ia ficar com as meninas, que Deus a abençoe. Tenta não me acordar.
(Embora talvez eu não esteja dormindo.) Temo que dias dificeis virão, mas a gente sobrevive. Muita comida na
despensa, graçasa Deus.
Querido, sei que você está cansado, mas pode dar uma volta com a Audrey? Ela ainda está fazendo aquele
Ganido Esquisito dela. Será que ela sabia que isso ia acontecer? Dizem que os cães conseguem sentir os
terremotos, de repente...?
Judy Jannie dizem que amam o papai. Eu também.
Amanhã a gente dá um jeito a conversar, não é? Conversar e dar uma conferida. Estou meio assustada.
Lin
Ele também estava assustado e nada contente de a esposa ter que trabalhar 12 horas no dia seguinte quando ele
teria que trabalhar 16 e até mais. E também nada contente de Judye Janelle passarem o dia todo com Marta quando
elas sem dúvida também estariam assustadas.
Mas o que o deixava menos contente ainda era ter que levar a golden retriever para passear quase à uma da
manhã. Achava possível que ela tivesse sentido a chegada da barreira; sabia que os cães eram sensíveis a muitos
fenômenos iminentes, não só a terremotos. Só que, se assim fosse, aquilo que ele e Linda chamavam de Ganido
Esquisito devia ter acabado, certo? Naquela noite, no caminho de volta, os outros cachorros da cidade estavam
quietíssimos. Sem latidos, sem uivos. Também não ouvira outros relatosde cães fazendo o Ganido Esquisito.
Talvezesteja dormindo na caminha ao lado do fogão, pensou ele ao destrancar a porta da cozinha.
Audrey não estava dormindo. Foi direto até ele, não pulando alegre como sempre — Você chegou! Você chegou!
Ah, graças a Deus, você chegou! —, mas deslizando, quase se esgueirando, com o rabo enfiado entre as pernas,
como se esperasse um golpe (que nunca recebera) em vez de um carinho na cabeça. E, isso mesmo, ela estava de
novo fazendo o Ganido Esquisito. Na verdade, isso vinha de antes da barreira. Ela parava uns 15 dias e Rusty
começava a esperar que tivesse acabado; então começava de novo, às vezes baixinho, às vezes alto. Hoje era alto
— ou talvez só parecesse alto na cozinha escura em que as luzinhas digitais do fogão e do micro-ondas estavam
apagadase a lâmpada que Linda costumava deixar acesa acima da pia, escura.
— Para com isso, menina — disse ele. — Você vaiacordar a casa inteira.
Mas Audrey não parou. Forçou a cabeça suavemente contra o joelho dele e o olhou dentro do facho de luz
brilhante e estreito que ele trazia na mão direita. Ele juraria que o olhar era pidão.
— Tudo bem — disse ele. — Tudo bem, tudo bem. Passeio.
A guia pendia de um gancho ao lado da porta da despensa. Quando foi pegá-la (pendurando a lanterna no
pescoço pelo cadarço), ela meneava na frente dele, mais como gato do que como cachorro. Se não fosse a lanterna,
ele teria tropeçado nela. Seria um finalgrandioso para aquele dia de merda.
— Só um minuto, só um minuto, espera.
Masela latiu para ele e recuou.
— Quieta, Audrey! Quieta!
Em vez de se calar, ela latiu de novo, o som alto e chocante na casa adormecida. Ele levou um susto. Audrey
correu para a frente, agarrou com osdentesa perna da calça dele e começou a andar de ré para o saguão, tentando
paxá-lo junto.
Agora curioso, Rusty se deixou levar. Quando viu que ele ia, Audrey o soltou e correu para a escada. Subiu dois
degraus, olhou para tráse latiu de novo.
Uma luz se acendeu no andar de cima, no quarto deles.
— Rusty? — Era Lin, a voz meio tonta.
— Sou eu sim — gritou ele, o maisbaixo que pôde. — Na verdade, é a Audrey.
Ele seguiu o cachorro escada acima. Em vezde subir do jeito puladinho de sempre, Audreyparava toda hora para
olhar para trás. Para quem tem cachorro, a expressão do animal costuma ser perfeitamente legível, e o que Rusty via
agora era ansiedade. Asorelhasde Audreyestavam caídas, o rabo ainda entre aspernas. O Ganido Esquisito subira
para um novo nível. De repente, Rusty imaginou que houvesse um ladrão na casa. A porta da cozinha estava
trancada, Lin costumava ser boa nisso de trancar tudo quando ficava sozinha com as meninas, mas...
Linda chegou ao alto da escada, amarrando o roupão de atoalhado. Audrey a viu e latiu de novo. Um latido de sai
da minha frente.
— Audi, para com isso! — disse ela, mas Audrey passou correndo, esbarrando na perna direita de Lin com força suficiente para derrubá-la contra a parede. Então, desceu o corredor na direção do quarto das meninas, onde tudo
ainda estava em silêncio.
Lin pescou a sua minilanterna no bolso do roupão.
— Meu Deusdo céu...
— Acho melhor você voltar pro quarto — disse Rusty.
— Porra nenhuma! — Ela correu à frente dele, o facho claro da lanterninha pulando.
As meninas tinham 7 e 5 anos e, recentemente, tinham entrado na “fase da privacidade feminina”, como dizia Lin.
Audrey chegou à porta delas, ergueu-se e começou a arranhá-la com aspatasda frente.
Rusty alcançou Lin assim que ela abriu a porta. Audrey entrou num pulo, sem sequer olhar a cama de Judy. A
menina de 5 anosestava profundamente adormecida.
Janelle não dormia. Nem estava acordada. Rusty entendeu tudo assim que o facho das duas lanternas convergiu
sobre ela e se xingou por não ter notado antes o que acontecia, o que devia acontecer desde agosto, talvez até
desde julho. Porque o comportamento de Audrey — o Ganido Esquisito — estava bem documentado. Ele
simplesmente não vira a verdade bem diante do nariz.
Janelle, de olhos abertos mas totalmente virados para cima, não estava em convulsão — graças a Deus —, mas
tremia toda. Derrubara a coberta com os pés, provavelmente no início, e com o facho duplo das lanternas dava para
ver a mancha úmida na calça do pijama. A ponta dosdedos se mexia, como se ela se preparasse para tocar piano.
Audrey sentou-se ao lado da cama, fitando a mocinha com atenção enlevada.
— O que tá havendo com ela? — gritou Linda.
Na outra cara, Judy se mexeu e falou.
— Mãe? Tá na hora do café? Perdio ônibus?
— Ela está tendo um ataque — disse Rusty
— Ora, ajuda ela! gritou Linda. — Fazalguma coisa! Ela vai morrer?
— Não — disse Rusty. A parte do seu cérebro que continuava analítica sabia, quase com certeza, que era só
epilepsia menor, como deviam ter sido os outros ataques, senão já saberiam. Mas era diferente quando a vítima era
da família.
Judy sentou-se de repente na cama, jogando bichos de pelúcia para todo lado. Os olhos estavam arregalados e
apavoradose não se consolou muito quando Linda a arrancou da cama e a abraçou com força.
— Fazela parar! Fazela parar, Rusty!
Se fosse epilepsia menor, pararia sozinha.
Por favor, Senhor, faça com que pare sozinha, pensou ele.
Pôs as palmas das mãos no lado da cabeça de Jan, que tremia e se agitava, e tentou girá-la para cima, para
garantir que as vias aéreas continuassem abertas. A princípio, não conseguiu; o maldito travesseiro de espuma
lutava com ele. Jogou-o no chão. Ele bateu em Audrey ao cair, mas ela nem se mexeu e só manteve o olhar
enlevado.
Então Rusty conseguiu inclinar para trás a cabeça de Jannie e ouvi-la respirar. Não era rápido; também não havia
nenhuma ânsia por oxigênio.
— Mãe, o que tá acontecendo com a Jan Jan? — perguntou Judy, começando a chorar. — Ela tá maluca? Tá
doente?
— Maluca, não, e só um pouco doente. — Rusty se espantou com a calma da sua voz. — Por que você não vai
com a mamãe lá pra nossa...
— Não! — gritaram asduas juntas, na harmonia perfeita de um dueto.
— Tudo bem — disse ele —, mas fiquem quietas. Não assustem ela quando acordar, porque é capaz de já estar
assustada. Um pouco assustada — emendou. — Boa menina, Audi. Muito, muito boa menina.
Esses cumprimentos costumavam provocar em Audrey paroxismos de alegria, mas não naquela noite. Ela sequer
balançou o rabo. Então, de repente, a cadela soltou um latidinho e se deitou, pousando o focinho numa das patas.
Segundosdepois, os tremoresde Jan sumiram e osolhos se fecharam.
— Que coisa! — disse Rusty
— O quê? — Agora Linda estava sentada na beira da cama de Judy com a menina no colo. — O quê?
— Acabou — disse Rusty
Mas não tinha acabado. Ainda não. Quando Jannie voltou a abrir os olhos, eles estavam normais, mas não o
viram.
— A Grande Abóbora! — gritou Janelle. — É culpa da Grande Abóbora! Você tem que parar a Grande Abóbora!
Rustya sacudiu de leve.
— Você estava sonhando, Jannie. Um pesadelo, acho. Masacabou e você está bem.
Por um instante ela ainda não estava totalmente ali, embora os olhos mudassem e ele soubesse que agora ela o
via e ouvia.
— Acaba com o Halloween, papai! Você tem que acabar com o Halloween!
— Pode deixar, querida, O Halloween acabou. Completamente.
Ela piscou e depoisergueu a mão para afastar da testa o cabelo suado e embaraçado.
— O quê? Por quê? Eu ia ser a Princesa Leia! Por que tudo tem que dar errado na minha vida? — Ela começou a
chorar.
Linda se aproximou — com Judyatrás, segurando a barra do roupão da mãe — e pegou Janelle no colo.
— Você ainda pode ser a Princesa Leia, querida, eu prometo.
Jan olhava ospais com espanto, desconfiança e medo crescente.
— O que vocêsestão fazendo aqui? E por que ela tá acordada? — Apontando Judy.
— Você mijou na cama — disse Judy, metida, e quando Jan notou, notou e começou a chorar mais alto, Rusty
teve vontade de dar umas boas palmadas em Judy. Ele se sentia um pai bastante esclarecido geralmente (ainda
mais se comparado aos que costumava ver se esgueirando no Posto de Saúde com os filhos de braço quebrado e
olho roxo), masnão naquela noite.
— Não importa — disse Rusty, abraçando Jan com força. — Não foi sua culpa. Você teve um probleminha, mas
agora já acabou.
— Ela tem que ir pro hospital? — perguntou Linda.
— Só pro Posto de Saúde, e não agora. Amanhã de manhã. Vou dar um jeito nisso com os remédios certos.
— INJEÇÃO, NÃO! — berrou Jannie e começou a chorar com mais força ainda. Rustyadorou aquele som. Era um
som saudável. Forte.
— Nada de injeção, querida. Comprimidos.
— Tem certeza? — perguntou Lin.
Rustyolhou a cadela, agora deitada calmamente com o focinho na pata esquecida de todo o drama.
— A Audrey tem certeza — disse ele. — É melhor ela passar a noite aqui com as meninas.
— Oba! — gritou Judy. Caiu de joelhose abraçou Audi com extravagância.
Rusty pôs o braço em volta da esposa. Ela descansou a cabeça no ombro dele, como se estivesse cansada
demaispara sustentá-la.
— Por que agora? — perguntou ela. Por que agora?
— Não sei. Só temosque agradecer porque foi só epilepsia menor.
Nessa questão, a sua oração fora atendida.

Under The DomeOnde histórias criam vida. Descubra agora