Peguei o avião bem cedo no dia seguinte. Era a primeira vez que eu viajava para um país tão longe. Sempre achei essa história de avião um barato. A pessoa entra, senta, fica ali algumas horas e, quando sai, está no outro lado do mundo. É... O homem já inventou grandes coisas. Até ido para Lua antes mesmo de eu nascer. Só que agora eu estava com AIDS e ninguém podia fazer nada.
O avião aterrissa e eu desço naquele aeroporto tumultuado: gente diferente, língua estranha. Socorro! Mas no meio daquela multidão vejo uma cara conhecida:
— Tio André! — Ele, bíologo, havia recebido uma proposta de trabalho do Memorial Hospital e mudado com a família pra lá fazia quatro anos. Desde então a gente não se via. Fomos pra casa e lá encontro minha tia. Ela, irmã da minha mãe, era a tia com quem as pessoas diziam que eu mais parecia. No Brasil, ela era jornalista; agora em Nova York, não estava trabalhando , porque os meus três primos ainda eram pequenos. O último, nascido lá, eu nem conhecia ainda.
Sempre fui louca por crianças, acho as coisas mais fofa do mundo. Mas lembro que naquele dia tive medo de tocá-las. Eu havia conversado com o dr. Ginecologista, amigo da família, a respeito disso, e ele dissera que não existia risco algum, mas o preconceito das pessoas era tão grande que eu só fiquei mais tranquila depois que conversei direito com meus tios. Eles tavam bem informados, tinham procurado saber tudo quanto fosse possível. Não que já soubessem muito sobre a AIDS, na verdade acho que não se sabia quase nada. Só mesmo que pegava e matava. E mesmo havendo casos de algumas mulheres contaminadas continuava a ser a " doença dos gays".
Fiquei lá com eles uns três meses e durante esse tempo, fiz curso de inglês e amizade com uma grega, visitei vários museus perambulei pela cidade. Eu adorava ficar andando e olhando as coisas, aquelas pessoas estranhas, as mulheres cheias de laquê na cabeça, chiquésimas,mas de tênis, os caras todos de terno, os judeus de chapéus e dois rolinhos de cabelos saindo do cavanhaque, os indianos com brinco no nariz, os black people com aqueles sons enormes ligados no mais alto volume. As mulheres negras superbem- vestidas, as madames limpando cocô de cachorro para não levar multa... Eta cidadezinha esquisita.
Um dia, minha tia me emprestou a máquina fotográfica, dessas mais antigas, estilo profissional só que toda manual. Comprei um filme preto-e-branco e saí tirando fotos pelas ruas. Meu tio dissera que fotografia era uma coisa mágica. Era como parar um instante no tempo. Hoje, cinco anos depois, gosto de pegar meu álbum, com todos os instantes que roubei do tempo, do tempo que passei em Nova York. As pontes, as ruas, as pessoas... Tem uma foto aqui que eu gosto muito, acho que foi uma das melhores que já tirei um cara andando de bicicleta, do lado, mais atrás, um outro correndo de patins, e, ao fundo, as pessoas paradas tomando sol num imenso gramado. Dá pra ver direitinho que os dois caras estavam na maior velocidade, o cabelo puxado pelo vento, as expressão no rosto. Daí eu chego e click, paro tudo. Fica bem nítido. Não importa o quão rápido está acontecendo, é só chegar e fazer parar.
Tem outra que também é muito interessante. É uma que eu tirei de um restaurante pelo lado de fora do vidro, pra mostrar como era a decoração lá dentro. Só que, além disso, aparece o meu próprio reflexo no vidro. Um reflexo... Sabe, acho que era isso mesmo que eu parecia, um reflexo. O mundo continuava igual, os carros passando, as pessoas trabalhando, o sol quente brilhando, só eu já não era mais a mesma. Estava ali no meio de tudo, existindo sem existir, exatamente com um reflexo.
Depois de ter andado o dia inteiro, voltava pra casa e me sentava num sofá cinza que tinha na sala, grande e confortável, e ficava ali horas, olhando pro nada. A televisão ligada, as crianças brincando, minha tia cozinhando, meu tio chegando e eu ali, sentada, olhando pro nada.
Chegou o dia de repetir os exames, mas, em vez de repeti-los, meus tios me deram a idéia de consultar outro médico, assim teria a opinião de mais uma pessoa, um especialista americano. Naquela época, meu inglês não era lá grandes coisas, então meu tio foi comigo.
Levamos os exames feitos no Brasil e explicamos tudo o que tinha acontecido. O médico não acreditou que eu estivesse contaminada. Primeiro, porque era mulher; segundo, porque não tinha praticado sexo anal e'terceiro, porque um dos meus exames deu negativo.
Além do mais, ele me explicou que aquele sapinho no esôfago era coisa de paciente em estado terminal. Eu estava vivinha da silva e parecendo bem saudável; logo, ele concluiu que aquilo tudo podia ser um grande erro. Lembro dele me dizendo:
— Nós vamos repetir o teste. Se der negativo, você vai esquecer tudo isso e encarar como uma difícil experiência pela qual você passou.
Uma luzinha acendeu de novo. Meu tio me abraçou e quase chorou no corredor do hospital.
Eu só pensava numa coisa, ligar para os meus pais e dar a grande notícia, dizer que tudo não passara de um pesadelo. Mas achei melhor esperar e ligar só quando estivesse com os resultados nas mãos. Fui dormir feliz, pensando num moreno de olhos castanho-claros que eu havia deixado no Brasil.
O exame ficou pronto, só que deu positivo. Coitado do médico, não sabia nem como me contar, me mostrou os resultados dizendo que havia repetido mais de uma vez, pois pra ele era difícil de acreditar.
— Tudo bem — eu disse. — Tudo bem.
Me despedi do meu tio, que iria continuar lá trabalhando, no hospital, e voltei
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DEPOIS DAQUELA VIAGEM
RandomNo tom descontraído próprio dos jovens, Valéria relata as farras com a turma de amigos, a dúvida entre " ficar" ou namorar, o despertar da sexualidade, a angústia diante do vestibular e muitas outras coisas que atormentam qualquer adolecente. Tudo i...