11- Carpe Diem

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Perdi a hora no dia seguinte. Cheguei atrasada na aula do Tim, pedi licença pra entrar e me sentei no canto. Ele veio até minha carteira me entregar o texto com o qual os outros já estavam trabalhando. Comecei a ler. Quando já estava na metade, entretanto, me dei conta de que não havia prestado atenção em nada. Recomecei, mais uma vã tentativa. Larguei a folha e olhei ao redor, todos lendo, concentrados em aprender. Aprender o que mesmo?
Boa pergunta. O que é que a gente está aprendendo, e pra quê? Senti-me uma imbecil, ali sentada naquela sala de aula. Do que me serviria tudo aquilo? Tantos textos, tantos estudos, tanta cultura, tanta sabedoria e o que é que eu sabia realmente a respeito de tudo? Nada.
Tive a triste sensação de que a minha vida toda não havia passado de um jogo. Mas que, em vez de estar jogando, eu estava sendo jogada.
O professor se aproximou novamente, trazendo a folha de questões. Olhei para seus olhos verdes e sua barba ruiva e tive vontade de gritar com ele: "O que você pensa que está fazendo?
Nos ensinando o quê? Onde pensa que iremos chegar com toda sua sabedoria? Olhe pra nós, olhe pra si mesmo, aonde foi que chegamos? Não percebeu ainda que, quanto mais a gente estuda, mais a gente aprende que não sabe nada?!" Mas não gritei, não emiti sequer um som. Afinal, ele não tinha nada a ver com aquilo. Só estava fazendo sua parte. Todos nós fazemos.
Mais outro dia e mais outro, mais uma aula sem sentido, e mais outra. Mais uma tarde livre, pra não dizer vazia. E numa dessas aproveitei para devolver a camiseta do uniforme na cafeteria. A chefe me lembrou do cheque. Fui até o andar de cima recebê-lo. Cinquenta dólares e alguns quebrados. Na saída, sentei- me na escadaria sob o imenso céu azul e examinei o pequeno papel em minhas mãos. E pensar em tudo o que eu havia feito só pra mostrar aquele papel pro meu pai. "Tá aqui, ó, fui capaz de arranjar um emprego que não viesse de você". Que besteira! Acho que no fundo sempre soube que ele não tinha dito aquilo por mal. É sempre assim, ele fala um monte, berra, estrebucha, depois não aguenta, vira pro lado e começa a rir. E agora eu estava ali sentada com aqueles cinquenta dólares na mão. E pensar que o mundo gira conforme aqueles pa pe izinhos.
"Você sabe quanto custam cinquenta dólares?" Me lembrei do motorista, a primeira pessoa que eu conhecera em San Diego e que me perguntara isso quando lhe disse que podia ficar com o troco. Na verdade, eu não sabia direito. Naquela época de inflação era uma bagunça:
cruzeiros, cruzados e cruzados-novos! A conversão não era tão rápida assim. Mas agora eu já estava craque e sabia exatamente quanto valiam. Dava pra comprar um tênis, olhei pro meu já bem velhinho; uma jaqueta, as noites

estavam cada vez mais frias; ou quem sabe jantar algumas vezes por aí, o dobro disso se fosse no Brasil (naquela época, óbvio, hoje é o contrário). E dava também pra não fazer nada, caso você morresse com eles no bolso. Não é contraditório isso? As pessoas lutam tanto por uma coisa que no fundo não tem valor algum.
A não ser, é claro, que você cruze com um motorista atencioso que a ajude a achar o caminho de casa, bem na hora em que você estava mais perdida. E, por falar nisso, onde será que andava toda a sorte que ele tinha me desejado?
Domingo à noite fui tomar um café com o Lucas, no The living room, um café do campus que tinha mesmo a cara de uma sala de estar. Jogos antigos de sofás e poltronas espalhadas pelos cantos acompanhados de mesinhas iluminadas com abajur e música ambiente. O Lucas pegou um capuccino pra ele e um chocolate com chantily pra mim e fomos nos sentar numa mesa com duas poltronas. Ele me contou de um jantar que eu havia perdido, das suas aulas da semana, dos seus colegas de classe, do hotel onde estava morando...
— E você, não vai falar nada? Tá tão quieta hoje.
— Não tô com vontade de falar. Continua falando, me conta aí alguma coisa. — O quê?
— Sei lá. Alguma coisa. Me conta por exemplo, hum... da sua viagem pra
índia .
— Da minha viagem pra índia?
— É, você já me contou como é lá, mas ainda não me contou o que foi fazer
lá.
Ele ficou um tempo pensando como se estivesse lembrando, depois começou a
falar:
— Eu tinha mais ou menos a sua idade da primeira vez. Larguei tudo e fui pra
ficar meses.
Pra meditar. Acho que eu estava procurando uma razão, um motivo, um
sentido maior pra isso que a gente chama de vida.
— E achou?
Ele apenas deu um meio-sorriso. Pegou a colherinha, mexeu o café
demoradamente e deu um gole. Ele tinha que saber. Era uma pessoa extremamente culta, inteligente, falava cinco línguas, tinha lido muitos livros, entendia de arte, de música, tinha viajado o mundo, ido meditar na índia duas vezes, já estava com 31 anos... Ele sabia. Ele tinha que saber.
— Me fala, Lucas, qual é a razão da vida, qual é a razão disso tudo?
— A razão disso tudo? — ele repetiu e ficou olhando pensativo para a xícara sobre o pires, como se ali dentro estivesse todo o mistério. Depois levantou os "olhos ao encontro dos meus, respirou fundo e finalmente disse:
— Não sei.
— O quê?! Como não sabe?!

DEPOIS DAQUELA VIAGEMOnde histórias criam vida. Descubra agora