Tem que haver alguma razão. Tem que ter algum sentido. Não é possível a gente ter um corpo que sente, um coração que bate, um nariz que respira, um cérebro que pensa, uma alma que sonha e, no fim, não ser nada. Saí da cama e sentei no chão, mais perto do espelho. Fiquei me olhando, me olhando... Sinceramente, não sei o que é pior: ser um nada e estar livre de tudo, ou ser alguma coisa e estar presa a outra a qual nem se sabe o que é.
Abri a gaveta pra pegar meu pijama. Mas ao lado dele havia uma camiseta velha, enorme, de malha bem molinha com grandes listras desbotadas, cinza, azul e vinho, e três botões na gola. Era do meu pai. Eu tinha passado a mão nela antes de ir embora. Sempre tive essa mania de usar roupa velha dele. Bem, agora que eu tinha o meu banheiro, dentro do meu quarto, podia dormir do jeito que eu quisesse. Tomei banho, me vesti e deitei. Mas quando estava quase dormindo alguém bateu à porta. Caramba, isso é hora?
— Quem é? — perguntei.
— É a Alrica, abre aí.
Levantei e abri. Dei de cara com ela. Só que ela não estava sozinha.
Acompanhavam-na dois caras. É sempre assim, você passa dois meses dormindo decentemente vestida e, no único dia que resolve dormir toda maltrapilha, só de camiseta e calcinha, aparecem dois caras na sua porta. Disfarça... Segurei a barra da camiseta e puxei pra baixo. Ainda bem que era comprida. Tive vontade de abrir um buraco e entrar dentro. Mas depois lembrei que a gente estava num dormitório americano. Se duvidasse, tinha neguinho andando de cueca pelo corredor.
— Tudo bom? — disse a Alrica. — Vim te apresentar esses dois caras. Este aqui é brasileiro. — Eu já o conhecia. Conversamos um pouco em português.
Olhei pro outro cara. Ele era alto, moreno, de cabelos e olhos castanho- escuros. Parecia mais velho que a gente. E usava roupas mais formais. Era o Lucas.
— E você é de onde?
— Suíça. Da parte alemã. — Ele falava manso, quase tímido.
— Engraçado, você não tem cara de suíço. Tem cara de italiano.
— É que minha mãe é italiana.
— Ah. Tá explicado. Você tá chegando agora aqui na universidade?
— Não. Já estou aqui faz quatro meses.
— Tudo isso? Não lembro de ter visto você. Vai ver que nossas aulas eram em
prédios diferentes, por isso que a gente não se cruzou.
— E. Mas eu lembro de você, sim. Te vi uma vez lá no prédio da
administração.
— Ah, é? — Achei meio esquisito o fato de ele ter me visto uma só vez e selembrar disso.
Alguma coisa em mim deve ter chamado a atenção dele. Fiquei imaginando o
quê. Curioso, isso. O que será que leva uma pessoa a se lembrar especificamente de alguém no meio de tantas outras? Só espero que não tenha feito nada de errado naquele dia. Dei uma risadinha.
Ele continuou:
— Achei que você fosse indiana. Seus olhos...
— Tem muita gente que acha. Quando fui pra Inglaterra, há dois anos, todo
mundo me perguntava isso. Você sabe, lá tem muito indiano, principalmente em Londres. E uma vez, em Madri, na Espanha, também me perguntaram a mesma coisa.
E aquela história passou rapidamente pela minha lembrança. Eu tinha ficado hospedada num hotel por cinco dias. Bem em frente havia uma relojoaria. Todo dia, quando eu passava por ali, dava uma olhada na vitrine. Mas só entrei mesmo no último dia. Um indiano jovem, de trajes e gestos humildes, veio me atender. Pedi a ele que me mostrasse uns relógios e, enquanto eu os examinava, o indiano olhava pra mim. Até que ele resolveu perguntar:
— Você é de onde?
— Do Brasil.
— Puxa, eu podia jurar que você também era indiana. Faz cinco dias que vejo
você passar aí na frente e, apesar das suas roupas e do corte de cabelo diferente, eu podia jurar que você era indiana. Mas quer dizer então que você é do Brasil? País rico o seu, hem? E você? É mais uma daquelas milionárias brasileiras que entram e compram a loja toda?
Comecei a rir. Eu estava de shorts, tênis velho, camiseta desbotada e mochila nas costas.
— Eu pareço muito rica? — perguntei. Ele também riu. — Sabe de uma coisa? Acho que o milionário daqui é você. Pensa que eu não vi aquele monte de indianos riquíssimos, cheios de jóias e panos de luxo, caminhando e comprando nas ruas de Londres? — Era verdade, eu os tinha visto. Mas sabia que, como no Brasil, aquilo era apenas uma pequena parte da população. A grande maioria era muito, muito pobre. Mas, como tudo não passava de uma brincadeira, e ele também sabia disso, continuei gracejando: — Vai, diz a verdade, você é muito rico? Diz aí!
Ele continuou a rir e, em seguida, disse meigamente:
— É, eu sou muito rico sim. Eu e todo o meu povo somos muito ricos. Mas ricos aqui — e pôs a mão no peito —, ricos de coração.
Nunca mais esqueci aquele humilde indiano, que trabalhava numa simples relojoaria, numa ruela qualquer desse mundo. Um homem rico, um homem rico de coração.
Olhei pro Lucas suíço, que eu tinha acabado de conhecer -, disse meio sem
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DEPOIS DAQUELA VIAGEM
AcakNo tom descontraído próprio dos jovens, Valéria relata as farras com a turma de amigos, a dúvida entre " ficar" ou namorar, o despertar da sexualidade, a angústia diante do vestibular e muitas outras coisas que atormentam qualquer adolecente. Tudo i...