8- todo mundo devia subir no Empire State Building

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Terminado o primeiro estágio, mudei-me para um dormitório particular onde só dividiria o banheiro com mais uma pessoa. Preenchi um daqueles formulários na tentativa de acharem um par perfeito. Pedi para dividir o banheiro com uma pessoa silenciosa, não-fumante e americana, já que eu queria aperfeiçoar o meu inglês. Me colocaram ao lado de uma turca fumante e barulhenta. Que ouvia som no mais alto volume até as três horas da manhã.
Detalhe: a porra da música também era turca!
Quase enlouqueci. Aguentei dois dias, mas no terceiro fui falar com o administrador do prédio, que, na verdade, era um estudante de administração. Mais uma invenção dos americanos; em vez de pagarem um salário altíssimo para um administrador formado, contratam um estudante dali mesmo como estagiário e pagam um salário menor. Esse tal era o Steve, um cara duns 25 anos. Eu já o conhecia.
— Escuta aqui, Steve, pra que você me fez ficar duas horas preenchendo aquela droga de formulário se, no final, fazem tudo errado?
— Você não está satisfeita?
— Satisfeita?! Eu pedi um quarto num andar calmo com uma juitmate que não fumasse e falasse inglês. Vocês me colocaram ao lado de uma fumante, turca, que só fala turco, que faz reuniões no quarto com mais dez turcos e ainda por cima aquela droga de música no meu ouvido sem parar! Olha, eu te juro que eu não tenho nada contra os turcos, mas, se eu quisesse aprender a língua deles, eu teria ido pra Turquia!
— Calma, calma, não precisa ficar nervosa, eu vou ver o que posso fazer.
— Ver não! Acho bom você resolver!
— É que já está tudo praticamente ocupado, vai ser muito difícil!
— bom, então você me dá a grana de volta que eu vou pra outro lugar. — Era
só um blefe, pois a essa altura provavelmente já não haveria outro lugar para eu ir. Mas, pela cara dele, tinha funcionado um pouco.
— Bem, o dinheiro fica difícil de devolver.
— Então você me arranja outro quarto! — Ele não disse nada e eu provoquei mais ainda.
— Engraçado, eu sempre ouvi dizer que os EUA eram o país onde tudo funcionava direito, onde todas as pessoas eram honestas; pois bem, eu me mudei pra cá e paguei essa grana toda porque vocês me garantiram, entre outras coisas, que eu dividiria o quarto com uma americana. E eu vim pra cá para aprender inglês, lembra?
— Tudo bem, tudo bem. Eu vou dar um jeito nisso. Apesar de que, depois desse seu sermão todo, eu diria que seu inglês está ótimo. Passe aqui lá pelas três horas que eu já terei resolvido.

Mas olha, eu já vou avisando, lugar calmo aqui nesse dormitório, vai ser impossível.
— Tudo bem. Que você me coloque com alguém que fale inglês e não fume já está bom.
Voltei lá às três horas. Ele estava ocupado atendendo outra pessoa em sua sala. Sentei no saguão para esperá-lo. Até a entrada nesse dormitório era mais bonita, parecia um hotel, com uma pequena recepção e um jogo de sofás na frente dos elevadores, onde eu estava sentada. Fiquei olhando o movimento. Vários estudantes estavam chegando com suas mudanças, para o novo semestre de aula. Muitas malas, livros, geladeiras, forno de micro-ondas, computador, telefone. Todo mundo fazendo força e carregando suas próprias coisas, inclusive as meninas.
Depois de uns instantes apareceu o Steve. Ele segurava uma chave e me chamou para vermos um novo quarto. Pegamos o elevador e fomos para o sexto andar. Ótimo, pensei, era num andar mais alto. Quando nos aproximamos, achei melhor ainda, era o último no corredor, se tivesse muito barulho seria somente de um lado. Ele abriu a porta e nós entramos. Como todos os outros, era um quarto retangular, grande, espaçoso, com cama, escrivaninha, cômoda, um armário embutido com porta toda de espelho. "Esses espelhos estão me perseguindo." Logo ao lado da pia, a porta do banheiro. O Steve tentou abrir, mas não conseguiu. "Deve estar trancada por dentro", ele disse. "Vamos entrar pelo quarto de sua vizinha." O banheiro, que ficava no meio, tinha porta para os dois lados.
Fomos ao quarto vizinho, cuja porta tinha um papel com um nome, Alrica, assim se chamava quem ali morava. Batemos na porta, mas ninguém atendeu. "Ela deve ter saído", disse ele abrindo a porta com a chave mestra. "Vamos passar por aqui só para abrir a porta por dentro." Dei uma olhada no quarto enquanto entrávamos: arrumadíssimo. A pessoa que ali morava certamente era muito limpa e organizada. Enquanto o Steve abria a porta do banheiro, dei mais uma olhada e vi que, na parede ao lado da porta, havia uma enorme bandeira de pano com uma criança negra desenhada. De onde eu estava também pude notar que no painel de cortiça sobre a escrivaninha havia várias fotos de pessoas negras. Negra?
A pessoa que morava ali era negra? Certamente era.
O Steve abriu a porta do pequeno banheiro, que era tecnicamente igual ao que eu dividia com a guria turca do segundo andar. Mas com uma grande diferença: limpíssimo. Ele destrancou a porta por dentro e nós passamos para o outro quarto.
— E aí, Valéria, você fica com este aqui?
Uma negra? Me lembrei do que algumas pessoas me falaram antes de eu viajar: "Tome cuidado com os negros nos EUA: eles odeiam os brancos. O racismo lá é dos dois lados e é pesado". Mas aí eu lembrei também que as

DEPOIS DAQUELA VIAGEMOnde histórias criam vida. Descubra agora