12- Minha terra tem hortênsias...

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Na outra semana ocorreu a cerimônia de encerramento do curso. Mas, como nesse estágio eu só havia feito as aulas mais técnicas da manhã, não pegaria o diploma, já havia pego um certificado. Mesmo assim fui até lá pra prestigiar e despedir dos amigos que estavam de partida. Só que, quando estou distraída conversando com um pessoal, ouço o meu nome pelo microfone. Levei um susto. Olho pra mesa e lá está o professor Tim com um canudo na mão. Ele fez sinal com a cabeça para que eu me aproximasse. Cheguei perto e disse:
— Já peguei o certificado.
— Eu sei — ele respondeu —, mas fiz questão de te dar esse diploma em mãos. Parabéns!
Nunca entendi por que ele fez aquilo. Talvez porque, no fundo, soubesse que pra mim aquele simples curso tinha tido um valor especial. E esse pode ser o lado bom da AIDS, pensei, fazer com que eu saia do lugar-comum e consiga ver as coisas por um prisma diferente.
Me despedi também do pessoal do dormitório. A Alrica me deu um disco de reggae da banda de sua mãe e eu lhe deixei uma carta dizendo que havia aprendido muita coisa com ela e que sua voz era uma bênção, que ela nunca deixasse de cantar.
Levei também um cartão pro doctorGust, agradecendo tudo que ele fizera por mim. Contei a ele que tinha conseguido acabar o curso e ele ficou muito feliz. Perguntou como havia sido com a especialista e eu disse que tudo bem, não tinham achado nada no meu rim.
— E ela é legal? — ele perguntou.
— Dá pro gasto. Mas legal, legal mesmo aqui só tem você.
— Que é isso, Va..
— Verdade, doctor. Você é especial. Se eu pudesse, te levava pro Brasil.
— Ah, menina... Vê se se cuida, hein?
— Tá, vou me cuidar.
— E não se esqueça de continuar sorrindo sempre.
— Tá, vou me lembrar disso também.
Me mudei pra casa da Helen. No começo, tive um pouco de vergonha, me
sentindo uma intrusa. Vergonha de abrir a geladeira quando tinha fome, vergonha de ligar a TV quando quisesse, mas depois acabei me acostumando, além do que ela me deixava bem à vontade.
Me matriculei também numa academia de ginástica. Agora que eu estava com todo o dia livre, seria bom poder fazer exercícios mais regularmente. Continuei estudando inglês por minha conta. Não sabia ao certo o que iria fazer dali pra frente. Antes de resolver qualquer coisa, precisava saber do resultado dos CD4.

As tardes, geralmente, eu saía com o Lucas. Aproveitamos bem aqueles dias. Conhecemos o Zôo de San Diego, considerado um dos melhores do mundo, fomos a outros parques, praias, cinemas, shows, restaurantes, museus. Tudo uma maravilha!
Certo dia, voltando desses passeios, paramos em casa. Comemos alguma coisa e depois nos sentamos à mesa para olhar um novo tarô que a Helen havia comprado. Diferente dos outros que eu conhecia, suas figuras eram lindíssimas, pareciam verdadeiras obras de arte.
O tarô de AleisterCrowler, "o espelho da alma". A gente continuava com aquela brincadeira de ler cartas de vez em vez e, quando juntávamos nós três, íamos até tarde rindo e jogando conversa fora. Mas nessa tarde a Helen não estava, o Lucas pediu então que eu lesse uma vez pra ele. Não que eu soubesse, mas tínhamos um livro que explicava o significado de cada carta. Por sinal, era um ótimo exercício de inglês, o vocabulário não era nada fácil. Ficamos lendo e conversando até que, meio do nada, falei:
— Sabe, Lucas, vou sentir muito a sua falta quando você for embora. É uma pena que a gente seja de lugares tão diferentes. Se eu pudesse, ia querer ficar pra sempre perto de você.
Pra quê? Na hora ele não falou nada, até fez uma cara de "é, é mesmo". Mas, no dia seguinte, chegou lá em casa feito louco, todo nervoso, dizendo que precisávamos conversar, que aquela situação não poderia ficar daquele jeito, que não era certo a gente se ver todo dia, toda hora. Me irritei:
— Então não aparece mais aqui, oras!
— Não é isso, você não entende.
— Não entendo mesmo. Se a gente é amigo, qual o problema de sair junto?
— Será que a gente é só amigo mesmo? Eu já não consigo ficar um dia sem te
ver. No domingo, no cinema, a gente ficou o tempo todo de mãos dadas!
— Ah, que problemão, hein? No seu país os amigos não pegam na mão, é?
— Não é isso...
— Você está achando o quê, Lucas? Vamos falar inglês claro: que a gente vai
acabar tendo um caso, é isso? Pois se for esse o problema, eu já te falei que não vou ter caso nenhum com você!
— Eu também não.
— Então, pronto, pra que esse estardalhaço?
— Você disse, outro dia, que gostava de mim...
— Ah, então não era pra gostar? Você é meu melhor amigo e eu não posso
gostar de você?
Devo gostar de quem, então? De algum inimigo?
— O problema não é gostar, é o jeito de gostar.
— O problema agora é o jeito. O jeito! — eu já estava berrando. — É isso, eu não sei mais de que jeito a gente está se gostando.

DEPOIS DAQUELA VIAGEMOnde histórias criam vida. Descubra agora