O que é isso? O que tá acontecendo? Em vez de perder os sentidos, parecia que eu estava mais consciente ainda. Que lugar é esse? Um lugar sem formas, sem corpo, sem dimensão, só consciência. Lucidez. Paz É a morte, pensei. Era isso, eu estava morrendo. Morren... volta, volta, volta, volta, quarto de novo.
Minha mãe histérica no telefone. Da próxima vez eu vou de vez, eu pensei. Que pena que meu pai não está aqui, queria vê-lo pela última vez. Olhei pra escrivaninha, pensei em deixar-lhe um bilhete. Mas não teria forças. Também, escrever o quê? Que eu o amava muito e que ele tinha sido muito importante pra mim. Acho que ele sempre soube disso.
Vai, vai, vai, vai... volta, volta, volta. Meu quarto de novo. Cadê a paz? Eu quero ir pra aquele lugar. Quero ficar lá pra sempre. Vai, vai, vai... volta, volta, volta... meu quarto, um homem gordo de branco olhando pra mim.
— O que é que ela tem?
— Como o que é que ela tem? Você que é o médico e eu que vou saber? — minha mãe chorando.
Um outro, negro, alto, forte, saiu do quarto dizendo que iria buscar uma cadeira de rodas. Ele deveria ser o enfermeiro.
— Cadeira de rodas não dá — eu disse —, Vou desmaiar.
— Amaca não cabe no elevador.
Apaguei. Agora estava indo e voltando mais rápido. Acordei sentada na
cadeira, o enfermeiro me segurando dentro do elevador. Apaguei. Acordei deitada na cama, saindo do prédio. Ouço uma voz, devia ser do porteiro. "Nossa, é a menina, eu achei que fosse a avó!"
Apaguei. Acordei dentro da ambulância. O enfermeiro, nervoso, suado, trabalhando rápido. Tentava ajeitar o soro, olhava pra mim e dizia:
— Calma, calma, vai dar tempo.
Achei graça. Eu estava calma, o nervoso era ele.
— Pronto, pronto — ele disse.
A sorte foi que eu estava com a veia pega. Assim que ligou o soro, comecei a
me sentir melhor.
Quando cheguei ao hospital, me levaram para o pronto-socorro e, de lá, até
uma sala para tirar raio X. "Eu estou com hemorragia e eles vão tirar raio X? Acho bom chamarem o meu médico, já vi que esse povo daqui não manja nada." Me largaram numa cama dura de ferro, sozinha numa sala. Comecei a sentir dor e de novo uma vontade enorme de fazer xixi. Uma enfermeira entrou.
— Moça, por favor, eu preciso fazer xixi. Dá pra você me trazer uma comadre? — aquele negócio de fazer xixi deitada.
— Tá, já vai.
"Já vai" e continuou ali, mexendo em alguma coisa.— Moça, por favor, eu não estou aguentando de dor!
— Já ouvi!
Já ouvi e ficou ali parada. Pronto. Acabou minha educação, subiu o sangue, o
sangue siciliano.
— Puta que pariu, caralho, me traz essa porra, senão eu vou mijar aqui
mesmo!
Aí sim ela resolveu se mexer, mas aí já era tarde, a dor insuportável. Continuei
berrando.
— Me tira daqui que vocês não sabem porra nenhuma. Eu quero ir pro meu
andar, pro meu quarto, pros meus enfermeiros. Eu quero o dr. Anjo!
Alguém abriu a porta, tia Adia tinha chegado no hospital.
— Calma, Valéria, a gente já vai te levar lá pra cima. Já ligaram pro seu
médico.
Me levaram pro meu andar. Aenfermeira da noite veio me receber.
— O que aconteceu, minha querida, você saiu daqui hoje.
— Não sei, não sei. Tô fazendo xixi de sangue. Manda essa bruxa sair do meu
quarto! — era pra enfermeira idiota lá de baixo. — Cadê a Júlia, cadê o dr. Anjo? — Calma, a gente já ligou pra ele.
— Liga de novo. Ele vai dormir, ele vai me esquecer aqui.
— Não vai, calma.
— Me dá um remédio pra dor. Eu não tô aguentando de dor. Tá doendo muito! Ela aplicou alguma coisa dentro do soro.
— Pronto, Valerinha, daqui a pouco já vai passar.
— Eu preciso fazer xixi outra vez.
— Vamos fazer o seguinte? Eu vou colocar uma fralda de adulto em você. Daí você faz xixi à vontade e não precisa ficar se mexendo, tá bom?
— Tá, é melhor, que meu rim tá doendo muito! O dr. Anjo já tá vindo? Esse remédio não vai fazer efeito?
— Já vai passar, calma.
E passou. Dez minutos depois eu estava dando risada. Dando risada?
— Tia Adia, chega aqui. Não conta pra ninguém, mas sabe, me deram um
whisky muito bom, tôbebaça!
Minha tia olhou assustada pra enfermeira.
— Isso às vezes acontece, é reação do remédio, Valerinha, agora fica
quietinha e dorme.
— Que dormir o quê? Agora eu quero é uma festa! Tem outro whisky aí?
Tia Adia ficou ao meu lado, não sabia mais se chorava ou se ria. E eu fiquei
falando besteira até dormir.
No dia seguinte, acordei um caco. Dr. Infecto veio me ver.
— O que aconteceu? — perguntei.
Ele deu uma enrolada. Aposto que não sabia o que estava acontecendo.
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DEPOIS DAQUELA VIAGEM
AléatoireNo tom descontraído próprio dos jovens, Valéria relata as farras com a turma de amigos, a dúvida entre " ficar" ou namorar, o despertar da sexualidade, a angústia diante do vestibular e muitas outras coisas que atormentam qualquer adolecente. Tudo i...