"Vá em frente", ordenava a voz. "Não reaja!"
Ele apertou o embrulho debaixo do braço. Tateava pelo corredor estreito, incapaz de enxergar. Há quanto tempo estava ali? Não se recordava como chegara àquele ponto, nem das alternativas surgidas no caminho. Apenas o cérebro entorpecido e a voz dentro dele.
Quando se deparou com a porta, teve dificuldade em encaixar a chave na fechadura. Esforçou-se até que conseguiu entrar. Nos primeiros passos, escutou o som da água se chocando com a parede.
Veneza.
Ao menos, disso ele se lembrava.
Bateu a porta atrás de si. Percebeu o choque levantar um tanto de poeira, quase sufocando-o. Levou a mão ao rosto e notou uma maschera. Isso o incomodava bastante. Porém, outra coisa incomodava ainda mais.
O peito.
Havia algo estranho nele.
"O que você está fazendo? Não é hora para isso, ande logo!"
Ele obedeceu. Deu cinco passos até uma mesinha e colocou o embrulho sobre ela. Percebia agora: havia encontrado o pequeno móvel como se tivesse estudado aquele lugar diversas vezes para não errar. Existia uma lógica simples para saber onde cada mobília estava. Não eram muitos móveis, mas bastava contar os próprios passos — arrastados, a fim de sentir todo o chão colado aos pés para não cair — e localizar o que queria.
Foi quando o perfume da mulher chegou mais forte que tudo.
Mais dois passos à esquerda e ele encontrou a cama. Sentou-se. A mão tocou algo que parecia o ventre. Ela não se mexeu. Estava gelada, certamente pelo corpo nu estar há tanto tempo adormecido naquele local úmido e frio. Então ele deslizou os dedos pelo tórax dela, em direção ao rosto. Fez movimentos circulares com as mãos, explorando a face, que logo já não era tão misteriosa assim.
Parecia jovem. E bonita.
Em outra situação, poderia apaixonar-se facilmente por ela. Por que não? E talvez, houvesse tempo. Bastava um resquício de força, concentrar-se e vencer a voz. Podia acontecer, ainda mais que não tinha certeza absoluta se queria seguir em frente com aquilo. Não seria fácil, claro. Mas, afinal, não existe solução para tudo?
"Muito bem, você já construiu o seu retrato! O que está esperando?"
A voz. Sempre ela.
Prestava atenção em cada detalhe, não tinha como ele se livrar.
Ele recolheu as mãos e se levantou. Retirou um par de luvas no bolso. Calçou-as. Deu mais dois passos e retornou à mesa. Abriu a gaveta e buscou um controle remoto. Levantou-o a esmo, apertando o botão do topo.
O clique vindo de algum lugar da parede indicava que a câmera de vídeo iniciava a gravação.
"Enfim, chegou o momento!"
Ele desfez o embrulho, sem a necessidade da voz contar-lhe o que tinha ali. Melhor assim. Melhor que ficasse quieta daqui pra frente e deixasse tudo por sua conta. Então ele escolheu um objeto e retornou à cama. Balançou o rosto da jovem, dentro da própria escuridão e com bastante força, até que ela acordasse.
Para azar dela.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Ponto Cego
ActionEdição atualizada (2016) do premiado romance de Felipe Colbert. Sinopse: Um ano após o acidente que interrompeu a gravidez de Nilla e sentindo-se culpado pela iminente separação, o repórter Daniel Sachs recebe um pedido de socorro escondido em um ob...