Giuseppe Pacino dobrou o corredor principal da questura e a claridade das lâmpadas fez sua cabeça latejar como nunca. O investigatore cerrou os olhos tentando domar o desconforto, mas em vão. Então percebeu que o efeito da noite maldormida não passaria tão cedo — especialmente após consumir, sozinho, duas garrafas de Pinot Grigio. Todavia, atravessou o salão em direção à escrivaninha, passando por uma porta fechada e a placa prateada com grandes letras escuras que servia como evidência: "L'INVESTIGATORE CAPO / INVESTIGADOR CHEFE". Sinal que Alberto Fazolato — considerado por muitos como o homem mais ranzinza de Veneza — já havia chegado e mantinha-se trancado em seu gabinete.
Pacino acomodou seus 1,79m e 85 quilos na cadeira, próximo a janela, vendo a suntuosa interjeição entre o Grande Canal e o di Santa Chiara. Mesmo que a luminosidade exacerbasse os efeitos da ressaca, seria incapaz de fechar as persianas. Via-a como uma janela sagrada. Todos os outros distribuídos no mesmo andar invejavam a sua posição, não apenas pela vista privilegiada, mas pela oportuna distância que mantinha da sala de Fazolato.
Ele havia sido o último a pendurar o paletó e o casaco. Fora do ufficio, a temperatura não ultrapassava os cinco graus, bem diferente do lado de dentro. Ainda assim, pensou se realmente queria estar ali. Preferia enfrentar as geladas fondamenta e rive a ficar enfurnado durante todo o expediente.
Sobre a escrivaninha, relatórios espalhados disputavam espaço com um peso para papéis, um porta-caneta e um telefone. Também havia um computador, mas não sabia dizer a última vez em que foi ligado. O teclado estava em algum lugar abaixo de pilhas de boletins ou solicitações de outras questure. Porém, apenas uma pasta importava e se destacava em meio a turbulência; dentro dela havia uma ficha, preenchida há alguns dias, com a foto de uma jovem grampeada no canto superior esquerdo.
Barbara.
O nome surgiu como um estalo.
Pacino segurou a pasta. Até há pouco tempo, aquela jovem veneziana de vinte e cinco anos, loira e com rosto esguio, incluía uma das quase duzentas e sessenta mil pessoas que habitavam a cidade. Um número que, como sabia, vinha caindo a cada ano. Mas a baixa de Barbara aparentemente não ocorrera de forma normal. Talvez, nem mesmo espontânea. No alto, a palavra "desaparecida" escrita a lápis tirava a atenção do resto da folha. Uma palavra que ele não gostaria de ter escrito ali. Melhor... não gostaria nem mesmo de ver aquela pasta na sua frente.
Uma voz chegou sorrateira às suas costas:
— Os outros a estão chamando de "fugitiva do carnevale".
— O quê?
— Talvez ela tenha se encantado com algum visitante e deixado a cidade às pressas — arriscou Pietro, o mais jovem investigatore da cidade. — Elas são capazes de cometer esse tipo de loucura, especialmente nessa época do ano.
O rapaz deu a volta e colocou-se à frente de Pacino. Segurava um copo de espresso pela metade. Tinha um pouco mais de idade do que a vítima, o que deixava a observação mais engraçada.
— Nesse caso ela deveria ter levado ao menos uma mala de roupas, o que não fez — respondeu Pacino.
— Não se fosse com um ragazzo muito rico. Nunca assistiu isso no cinema?
— Não.
— E o passaporte? Você conferiu?
Pacino quis perguntar se ele se achava tão esperto, mas preferiu ficar calado. Pietro era ótimo com computadores, o que lhe outorgava adjetivos como engenhoso e perspicaz, ditos pela maioria. Porém, era lento em investigações de campo.
Pacino tirou uma série de documentos de dentro da pasta e jogou em cima da mesa, aumentando o caos nela.
— Como pode ver...
— Ela não o levou. Nenhum deles — objetivou Pietro.
Pacino aquiesceu. Viu que ele tinha uma mancha de café no canto da boca, e fez um gesto indicativo para que a limpasse.
— Olhe, sua teoria é a mais óbvia possível. Ela não pode ser descartada, mas não devemos nos focar em probabilidades — disse.
— E o que você descartaria nessa hipótese?
— Um bilhete de despedida seria encontrado por alguém. Além disso, uma jovem que mora sozinha com a mãe não largaria uma signora doente abandonada à própria sorte.
— Ou talvez ela tenha se cansado disso tudo, e um pequeno botão esquecido foi acionado em sua cabeça.
— Um botão...?
Pietro fez sinal com a palma da mão esticada enquanto jogava o copo vazio na lixeira. Pretendia explicar melhor. Enquanto isso, Pacino se levantou impaciente, indo em direção ao banheiro. A cabeça doía e queria afastar-se de toda aquela baboseira inexperiente.
Pietro o seguiu, sem interromper a linha de raciocínio.
— Ela trabalhava em um bar, certo?
— Exato.
— Sabemos que em época de carnevale, muitos turistas transitam por lá. Pedem bebidas, se divertem... — Ele abriu a porta para Pacino passar. — Até que resolvem puxar conversa com a bela italiana que está atrás do balcão.
Pacino fez que sim, forçado. Pietro continuou:
— O.k., digamos que tenha acontecido. O único mundo que ela conhece é aquele, e ele é bem limitado. Passa seus dias esfregando copos com um pano molhado e olhando para a televisão de bar, assistindo notícias sobre lugares que ela sempre sonhou em conhecer.
Pacino quase podia enxergar a cena, e até considerou a teoria razoável, mas não passava daquilo: razoável. Abriu a torneira e esfregou a água fria no rosto.
Pietro perguntou:
— Pense bem, qual é o futuro de uma garota impetuosa na cidade mais medieval do nordeste da Itália?
— Vamos ver... você é quase tão jovem quanto ela. Diga-me, qual é mesmo seu futuro?
— Provavelmente, muito diferente do seu — respondeu, esbanjando um sorriso que Pacino compreendeu de imediato. O alcoolismo não era surpresa para mais ninguém. Mas isso não o segurou de esbravejar:
— Ora, caia fora daqui, senão...
Antes que ele terminasse, viu a porta do banheiro encostar. Pietro já havia deixado o local.
Pacino fechou a torneira e secou as mãos e o rosto, esperando que aquilo melhorasse o latejar dentro da cabeça, pois necessitava concentrar-se. Afinal, Barbara sumira sem que nenhum pedido de resgate tivesse sido feito. Se realmente tratava-se de um crime, era pouco comum para a cidade. Tudo bem que Veneza não possuía um passado exemplar, mas as coisas andavam calmas. Ultimamente, Pacino via-se envolvido com delitos mais frequentes como brigas, drogas, furtos ou assaltos nada sofisticados. Assassinatos também aconteciam, só que de forma mais esporádica. Mas desaparecimentos? Desde quando?
Ele afrouxou a maldita gravata. Gostaria de tirá-la, mas não era permitido. Ao menos escondia um pedaço da camisa branca amarrotada, buscada com desatenção do fundo do guarda-roupas.
Viu a porta do banheiro se mover outra vez e a cabeça de Pietro ressurgir de trás dela.
— Adivinha quem está chamando por você? Disseram que a esposa o obrigou a iniciar uma nova dieta. Imagine só como está o humor dele...
Pacino não precisou se esforçar muito.
Fazolato.
Então percebeu que a noite maldormida não tinha sido nada.
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Ponto Cego
AksiyonEdição atualizada (2016) do premiado romance de Felipe Colbert. Sinopse: Um ano após o acidente que interrompeu a gravidez de Nilla e sentindo-se culpado pela iminente separação, o repórter Daniel Sachs recebe um pedido de socorro escondido em um ob...