Capítulo 1

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Ao acordar, tento levantar e percebo que mais uma vez dormi de mau jeito, porque meu pescoço dói muito. Massageio levemente no local onde está doendo e me sinto melhor. Estou suada por conta do calor causticante dentro do carro; a pequena abertura que deixei na janela é o suficiente para me deixar viva e aquecida durante a noite, mas de dia a temperatura elevada me faz sentir como se estivesse dentro de uma lata selada. Antes de sair do carro, confiro a estrada: nada vivo à vista.

O carro onde passei a noite é um modelo pequeno e simples, onde acabei encontrando um lençol e uma blusa em ótimo estado. O lençol está rasgado em alguns pontos, mas pode servir de travesseiro. Apoio minha mochila — que é totalmente preta por causa da necessidade que tenho de me camuflar — em cima do capô. Guardo todos os meus pertences com cuidado e, do bolso da frente, retiro um pouco de cereal. É difícil come-lo sem um pouco de leite, mas é melhor do que morrer de fome. Tenho vontade de comer até a última migalha, mas devo economizar. Ainda estou seguindo por uma rodovia, em busca de uma cidade para repor meus suprimentos. Infelizmente, ainda estou cercada por uma densa floresta, que parece não ter fim. Eu emagreci muito depois de tudo o que aconteceu, porque estou sempre em movimento e poupando ao máximo meu pequeno estoque de comida. Porém, fiquei mais ágil. Consigo correr longas distâncias sem muito esforço, e isso me ajuda a continuar viva.

Gostaria muito de ter um lugar específico para ir, talvez um refúgio ou comunidade, mas acho que isso já não existe. Apenas vago por aí, e nunca fico no mesmo lugar por muito tempo. Eles estão à solta, caçando tudo o que é vivo, sentindo seu cheiro, escutando seus mais ínfimos barulhos. Cada detalhe, cada movimento, cada suspiro, define se você irá viver ou morrer. Eu escolhi sobreviver a tudo e a todos, e luto por isso todos os dias. Perdi as contas de quantos deles já matei, em quantos corpos minha faca deixou sua marca.

Nunca consigo evitar olhar para eles depois de abater algum, e tudo neles me revira o estômago. O vazio onde antes eram seus olhos, suas garras e dentes monstruosos, a falta de pelos, os ossos expostos em meio às suas peles pálidas, sujas e grudentas. E o insuportável fedor de carne podre, que os identifica antes mesmo que eles cheguem perto. Alguns possuem tumores tão grandes que o corpo tomba para o lado onde está o enorme cisto. E não pára por aí, a coletânea de horror continua com os que não tem quase nenhuma pele, ou então os que tossem tanto que cospem seus órgãos internos. Toda vez me pergunto: "Como chegamos a esse ponto?". E a resposta sempre machuca.

Somos tão idiotas. Nós, seres humanos. O topo da cadeia alimentar agora precisa fugir dos predadores que eles mesmos criaram. Perdemos tudo para nossa própria arrogância, nossa falta de caráter, bondade, amor...

Sinto pena desses seres que vagam pelo mundo, buscando uma paz que só existirá quando uma faca ou uma arma acabar com seu sofrimento. Sinto uma verdadeira tristeza porque eles não são a causa do fim do mundo, mas uma consequência dele. Nós já estávamos destruídos quando eles surgiram.

Inundações, terremotos, falta de água potável, poluição, elevações na temperatura, doenças misteriosas, e vários outros desastres naturais que traziam uma mensagem muito clara da natureza: "Nos deixem em paz". Os países pobres foram extintos depois desses "recados". E logo depois, os governantes de países ricos e emergentes esfolaram-se uns aos outros em guerras intermináveis, querendo conquistar o que ainda restava. O resultado? Mais destruição, mais mortes. De uma só vez, países em desenvolvimento, e alguns dos ricos recentes, foram riscados do mapa. Bombas nucleares tornaram esses lugares inabitáveis. Os poucos sobreviventes foram realocados para os continentes europeu, africano e asiático, que ainda estavam de pé. Foi então que o presidente da Rússia decidiu fazer uma reunião, querendo achar um modo de elevar o moral do povo.

Com os recursos humanos praticamente extintos, eles recorreram a quem já estava de saco cheio de cooperar. A mãe natureza. Seus filhos mais sofisticados, os animais, foram escolhidos para ajudar o novo projeto. Muitas espécies estavam extintas, somente as mais adaptáveis às mudanças climáticas sobreviveram. Procuraram neles alguma luz, uma esperança. Analisaram seu organismo, seu sangue, sua saliva e o que mais tivesse para olhar.

Morte aos LobosOnde histórias criam vida. Descubra agora