4. Daphne

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   Acordei com os raios de sol na minha cara.

Levantei-me a custo, sentindo-me uma verdadeira inútil na sociedade. Era sábado de manhã e eu acordava numa casa que não era a minha, sem detalhes nítidos da noite passada na memória, com uma revolução total no meu cérebro. Podia sentir as náuseas sentadinhas na boca do meu estômago, como boas meninas, à espera da altura certa.

Andei à volta, admirando a divisão.

Não me importava muito de onde estava, pois certamente aquele lugar era tudo menos perigoso: a manta que me envolvera pela noite toda tinha estampas de dinossauros coloridos e sorridentes, a toalha da mesa de centro destoava da decoração toda, com os bordados que talvez uma avó talentosa havia feito. Havia também ali um par de ipobrufenos e um copo de água, que eu engoliria rapidamente e com todo o prazer se não estivesse à beira de vomitar.

A minha lista de prioridades começava por encontrar uma casa de banho.

A sala era também o hall da entrada, mas dava para um corredor, e eu fui abrindo as portas ao calhas na esperança de encontrar uma casa de banho ou alguém que me guiasse até lá.

A primeira era uma espécie de estúdio, uma sala quase vazia coberta de espelhos por todo o lado, com alguma aparelhagem de som ao canto, quase uma sala de dança, mas quando eu vi um bloco grosso de papel atirado ao chão com os dizeres "Scripts- Shakespeare" percebi que o proprietário da casa cursava Teatro, ou Representação, ou sei lá qual era o nome do curso ao certo. Num lapso de curiosidade, abri o bloco e vi Romeu e Julieta, o primeiro texto, com algumas falas sublinhadas a marcadores fluorescentes. Então, era um rapaz. Um Romeu, pelos vistos. Sortudo.

Por burrice minha, só percebi que haviam fotos penduradas por todo o corredor quando saí do estúdio. Tipo, literalmente, todo o corredor. Um rapaz alto, encorpado, de cabelos negros e olhos azuis sorria em quase todas elas, algumas com outras pessoas, que constatei serem pais, avós e primos, até com cães e cavalos. Totalmente um menino do interior da América, ou talvez a família dele tivesse uma quinta para as férias, porque ele estava retratado em várias idades e tamanhos. Era como se, naquelas duas paredes paralelas, ele exibisse o orgulho de mostrar o que tinha vivido, pelo que tinha passado e com quem o havia feito. Se aquilo não era querido, o que seria, então?

Abri a porta a seguir, e então é que me lembrei.

Naquela cama, enroscados numa conchinha querida, estavam o rapaz das fotos e a rapariga que eu ontem me lembrava de ter conhecido.

Seriam namorados? Pelo menos naquela posição era óbvio que eles se tinham comido na noite anterior. Certo?

Pude ver as pálpebras dele tremerem notoriamente com a luz da porta aberta. Pronto, ele ia acordar. Antes que abrisse os olhos, encostei-me à parede ao lado da porta, esperando que não fosse vista.

Ouvi-o levantar-se lentamente, talvez tentando não acordar a rapariga, mas ela soltou um som delicado e involuntário, certamente desconfortável, mostrando que também ia acordar.

O que raio estava eu a fazer a espiar o quarto de um casal? Oh, por favor, não era algo que tivesse a ver comigo.

Avancei para a outra porta, e por sorte fui dar à casa de banho. Já não tinha vontade de vomitar, apenas náuseas mais leves. Aproveitei então para lavar a maquilhagem destroçada e bochechei com elixir bocal, água e pasta de dentes, para não ter aquele bafo mortal a álcool e manhãs.

Voltei para a sala, sentindo-me mais recomposta, e engoli os dois ipobrufenos com um sorriso sem motivo realmente algum e um copo de água.

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