Era domingo pela manhã, quase perdi a hora. Após o romper da aurora e o som do despertador dormi novamente. Parcela disso era responsabilidade do Alfredo. Ele ocasionalmente me perturba no sábado à noite, talvez um tipo de saudade de sua juventude. Ele fora libidinoso, mas agora está cativo.
Domingo é o dia que vou à feira. Escolhi meu vestido florido, que ganhei da Dona Gertrudes, uma gentil dama que vive a duas quadras rua acima. A princípio não gostei do presente, mas aos poucos me afeiçoei. Ela sempre à espreita, mantendo expectativas sobre quando eu o usaria.
Talvez me veja hoje.
Desde que me mudei para essa vizinhança soube que teria muitas amigas idosas, esse parece ser um tipo de bairro preferido por eles. Quando saio pela manhã sempre os vejo tomando sol.
Eu sempre tive muitas dificuldades em lidar com idosos, não sei se era a paciência que me faltava ou a questão da higiene deles que me apavorava, mas em minha juventude fugi de sua companhia, feito doida, inclusive dos meus avós.
Mas foi morando por aqui que comecei a mudar de perspectiva, percebendo-os de maneira mais afetuosa. Agora eles eram para mim os heróis ou vilões de outrora, os tios queridos ou odiados de algumas crianças, já não mais crianças, ou aquele parente distante que sempre o recebemos com festa ou desprezo.
Tudo isso, para eles, ficou para trás.
Penso também neles, às vezes, como antigos boêmios de comportamento em estilo fora-da-lei, baderneiros mesmo, de todo tipo - só por diversão. Coloco-me a pensar que aquelas senhoras idosas chegaram a queimar sutiãs em praças públicas, nadaram nuas com seus namorados em praias desertas, beberam noite adentro e dançaram em boates, os grandes hits de décadas pregressas.
Às vezes me divirto imaginando tudo isso. É claro que no final termino pensando que é pura tolice de minha parte e repenso tudo, desfaço todo o trajeto mental e os recoloco como pessoas pacatas e do lar.
E por isso esse domingo em especial me provou que de certo modo eu poderia estar correta sobre eles, os velhinhos do meu bairro. Em minha insensatez de Amélia que sou, aos quarenta e cinco anos e com dois filhos, jamais poderia imaginar tal desfecho.
Ainda bem que há surpresa na vida!
Pois bem, saí de casa já atrasada e fui a pé até o ponto de ônibus. Era bem cedo ainda e a princípio ninguém estava por lá. De repente um desses idosos, um velhinho de uns oitenta e cinco anos, veio caminhando lentamente pela borda da rua - até me preocupei. Como nenhum carro o incomodou ele perseverou em sua lentidão característica e se acomodou ao meu lado, pronunciando com dificuldade um gentil "bom dia, moça!", que me fez sentir com dezessete anos.
Minutos depois de minha resposta, dois meninos de uns dezenove anos saíram do prédio do outro lado da rua e começaram a se beijar, assim na boca, como que numa despedida, ali às margens da rua.
Eu? Completamente constrangida.
Senti um impulso para impedi-los, aqueles meninos estavam desrespeitando um idoso. O senhor ao meu lado, por sua vez, com toda uma postura, que aparentava uma aura de militarismo, os observava.
Contive-me, o dano já estava feito!
Quando ele se preparava para me dizer algo, esperei uma daquelas frases típicas dos conservadores. Ele me encarou e pacificamente disse:
- Ah, o amor... Que bonito, né?
Respirei com alívio e me senti a mulher mais conservadora num raio de quilômetros.
(fim)
>>> Miniconto publicado no jornal "O Ponte Velha", Nº 245, Ano XXI, pág. 4, set/2016.
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Mini-histórias Sobre Mulheres
Short StoryOs dilemas que a maioria das mulheres enfrenta ao longo da vida, desde a prostituta até a empresária de sucesso, são narrados aqui de forma irreverente, arrebatadora, com desfechos que vão do drama à comédia em poucas páginas.