36 - Alucinações

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Lange viria falar comigo daqui a algumas horas. Eu estava sem celular. Ele tinha se despedaçado todo no acidente e nem conseguiram salvar o chip. Que droga!
Mamãe e papai estavam fazendo plantão na porta do meu quarto. Meu gesso na perna começava a coçar. Tentei imaginar como estava meu rosto agora. As enfermeiras sempre vinham trocar meus curativos do rosto. É claro que eu não deveria estar muito bonita.
Passei a mão pelo cabelo pela primeira vez depois do acidente. Senti meu couro cabeludo na parte de cima da cabeça e fui descendo até a nuca. Estava tão ferido que sentia arrepios só de tocar. Quando cheguei na nunca senti uma coisa estranha. Chamei meus pais aos berros.
- O que está acontecendo? - gritou minha mãe em desespero.
- O que é isso na minha nuca?
Papai sorriu e respondeu.
- Eles tiveram que fazer um furo para aliviar a pressão no seu cérebro. Você tem epilepsia, mas nunca manifestou sintomas até agora.
Eu senti a textura dos meus cabelos raspados e da cicatriz. Ela era grossa e rugosa, praticamente nojenta.
- Tem mais alguma coisa que eu não sei?
Meus pais se entreolharam e fizeram uma cara de que ainda estavam escondendo alguma coisa. Papai então me disse com a maior delicadeza possivel:
- Você tem Hepatite C. Em geral é tratável, mas o acidente piorou tudo. Você ainda está bem, mas o médico disse que talvez você piore depois do contato com várias bactérias aqui no hospital. Achamos que você contraiu isso por meio de - eles se entreolharam de novo e eu congelei - heroína.
Eu gargalhei muito com toda aquela encabulação. Fala sério? Eles achavam que eu estava metida com drogas!
- Pai, eu juro que não uso heroína! - pestanejei.
- Não encontraram nada no teste toxicológico mas não sabemos a quanto tempo não usa. Precisamos saber se precisa de nós.
- Eu não sou drogada.
- Então como contraiu essa doença? - interviu mamãe.
Eu corei de vergonha. A única maneira de eu ter pego era pela relação sexual, a qual eu só tive com um homem.
- Existem várias formas de se pegar Hepatite. Uma delas é... - tentei gesticular com as mãos, mas eles eram velhos e não entenderam.
- Transfusão? - disse minha mãe.
- Só consigo pensar em drogas - disse papai.
- Por sexo! Eu não sou mais a garotinha de vocês. Não uso drogas, mas eu faço sexo como todos no mundo - zanguei-me.
Papai ficou embasbacado com a minha resposta. Eu tombei a cabeça para o lado e bufei. Qual o sentido de todo aquela algazarra? Eu fiz sexo, não matei ninguém, ao não ser de prazer. Mais nada.
- Por que não nos contou? - repreendeu-me mamãe, ofendida.
- Por acaso eu tive tempo para isso?
- Estamos perdendo o controle das nossas filhas. - disse papai, ainda em choque.
- Eu transo, vocês transam, a Júlia transava e eu duvido que a Bianca também não faz isso.
- Da pra parar de falar essa palavra? - gritou papai.
- Qual o seu problema em aceitar que eu já tive relações sexuais? - tentei usar um eufemismo científico.
Mamãe interviu antes que papai dissesse algo de ruim:
- Não é isso, minha querida. O problema é que não queremos que saia por aí como uma vagabunda. Essa não é uma linguagem de uma pessoa civilizada. Eu sou assistente social e conheço a linguagem da favela. Não quero aquele ambiente na minha casa.
Até a voz da minha mãe estava me enfurecendo. A demora de Cellbit era angustiante e tudo aquilo me fazia querer gritar de ódio.
- Qual o problema de vocês? Vocês querem mandar mas minhas roupas, na minha linguagem, na minha vida sexual, nos meus amigos e na minha dor? Já cansei de ser controlada por vocês!
Senti umas pontadas no lado esquerdo do corpo, bem abaixo do seio. Eu respirei e percebi que ela não tinha a ver com o coração. Minha mãe estava aos prantos. Aquela velha gostava de me encher!
- Minha querida, eu não sabia que você se sentia assim. - disse mamãe entre os soluços.
- É, eu me sinto assim. E sabe o que mais? Eu...
Senti novamente a pontada no mesmo lugar, só que agora mais forte. O suor pingava na minha testa, estava com febre. Olhei para o lado a procura de um médico e vi Cellbit me observar no banco de visitas em frente ao meu quarto, atrás do vidro.
- Rafael? - sussurrei.
- Quem? - perguntou mamãe.
As dores ficavam mais fortes.  Tentei pressionar mas continuava doendo. Eu gritei para que minha mãe chamasse um médico.
Eu vi Cellbit novamente, mas dessa vez ele estava no meu quarto e ao meu lado. Eu suspirei.
De repente vi zumbis entrarem pela porta e tentarem me agarrar.  Eu me encolhi e Cellbit não fez nada.
- Me ajude, Rafael - repetia entre os tremores.
Os zumbis estavam de jaleco, se aproximando cada vez mais de mim. Eles diziam coisas sem sentido para zumbis como "ela está tendo delírios de febre". Um deles me agarrou enquanto outro me segurava. Senti uma luz horrível no meu rosto e logo esse zumbi disse:
- Ela está com icterícia. O fígado está em crise, acho que ela vai precisar de um transplante. Mas primeiro precisamos diagnosticar  o que está fazendo isso.
- Não é a Hepatite? - ouvi a voz da minha mãe vinda de um lugar desconhecido.
- A hepatite está sendo tratada, ela não faria isso. Vamos fazer exames para auto-imunes e...
- Vocês não vão tocar em mim - gritei enquanto me debatia.
Senti uma leve picada nas costas e uma força me jogou na maca. Minha respiração estava devagar e controlada. Minhas pálpebras estavam se fechando e eu já conseguia observar o rosto dos médicos a minha volta. Eu me virei e dei de cara com grandes olhos azuis me observando e repetindo:
- Você vai ficar bem.
Finalmente adormeci contra a vontade do meu corpo.

Amor de Gatos ❤ R.L CellbitOnde histórias criam vida. Descubra agora