Capítulo 5 - Remédio

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Havia uma ponte para a qual costumávamos ir conversar depois que a aula acabava. Depois passávamos uma noite inteira na casa de alguém do grupo, sem dormir. Por mais que eu tenha me adaptado forçadamente ao fato das medicações interferirem na minha memória, fazendo-me esquecer de diversas situações e informações, ainda sou capaz de sentir uma rajada de lembranças me preencher ao pisar novamente aqui. Eu me lembro de todas as coisas que eu pensei que queria ser. Eu me lembro de tudo o que por aqui se passou. Seria uma sensação boa se não fosse avassalador saber que todos esses momentos fantásticos ficaram e ficarão somente no passado. O mais doloroso deles é me lembrar de como no início da nossa amizade, no começo do ano, eu pensava que eu teria gratidão eterna por Deus me presentear com pessoas fantásticas, ainda mais por ter sido quando eu finalmente consegui colocar minha vida de volta aos moldes, um ano depois da superação do meu primeiro surto.

Qualquer um que agora passe por nós e olhe para a cena não conseguirá entender que na verdade nós seis somos o cadáver de uma amizade no passado muito vívida. Mesmo que eventualmente alguém venha contar nossas histórias de forma superficial a esse transeunte, ele me diria para dar, portanto, uma terceira chance a amizade. No entanto, quem conhece a história mais a fundo – como minha família e minha terapeuta – estaria agora tentando me impedir de fazer o que a hipotética pessoa que passa me aconselharia. Eu tinha tanto desespero para encontrar uma maneira de sair do meu mundo e, finalmente, respirar. Acho que é porque, com tanta imersão no meu próprio eu, eu venha inevitavelmente acabar, às vezes, me sentindo o próprio transeunte peregrinando por minhas emoções.

De mim transborda admiração por quem sabe as expressões corporais dos outros desvendar. De qualquer maneira, o pouco que sou capaz de interpretar já é o suficiente para me mostrar que as suas expressões não são de simpatia. Só gostaria de saber dizer se o que vejo é relutância, julgamento ou pena. Bem diante dos meus olhos eu vi, meu coração veio à vida.

Eu pergunto se eles estão bem, mas as suas respostas só confirmaram o que eu já previa. Que eles diriam que estariam bem só para não somatizar problemas. Porém não quero agir como eles. Se eles me deixaram porque me julgaram como sem noção, não vai ser agora que vou querer parecer o que eles chamam de mentalmente saudável para tê-los de volta. Ao menos a terapia me ajudou a querer por perto apenas as pessoas que me conhecem e do jeito que sou me aceitam.

Ao ver esses rostos que são a expressão de uma alma que pouco mudou se comparados ao meu espírito que desde então nunca mais tem sido o mesmo pergunto-me se realmente vale a pena resgatar esse problema apenas pelas histórias que conto para mim sobre quem nós um dia fomos. Isto não é fácil, não é para ser. Toda história tem suas cicatrizes. E eu não quero estar outra vez em ilusões entre quem a pessoa é e a ideia dela por mim criada.

Seria tão casual se depois de eles terem me dito que estão bem eu dissesse que também estava, no entanto eu decido ir direto ao ponto.

- Estou contente por viajar e tenho empolgação pela minha prima, mas não posso com isso dizer que estou bem. Sei que vocês querem saber como esses últimos tempos se passaram, por isso adianto que sim, as coisas melhoraram e estão tomando o rumo para ficarem ainda melhores, mas ainda assim não está tudo superado.

As suas expressões não parecem alterar. Não sei se já estou imaginando mas posso jurar que a pessoa por quem eu mais sentia afeto é quem me olha com a tal expressão que não sei dizer qual é de forma mais intensa.

Um deles então vem em minha direção e eu me vejo em surpresa ao receber o seu abraço. E é impressionantemente um abraço de calor. Ouço em seguida, quando ele é desfeito:

- Fico feliz em poder te rever. Que bom que você está aqui conosco de novo e que as coisas estão melhorando na sua vida.

Não acredito que isso surpreenda alguém, mas eu começo a chorar quando recebo um novo abraço. Mas não é porque não estou completamente crente se o que foi dito assim o foi de forma genuína, mas porque tudo o que eu queria ouvir ninguém disse. Por isso a minha mente já começa a criar os seus dramas. E a mentalizar frases que me ganhariam de volta...

Nenhum rio é muito vasto ou muito profundo para nós nadarmos até você... Venha quando você precisar, nós seremos a proteção que não deixará a tempestade passar...

Ao invés disso continuo ouvindo coisas como "vai dar tudo certo", "Deus proverá", "Que bom que você está contando com o apoio da sua família na Califórnia"...

Quando a dor te cortar profundamente, quando a noite te impedir de dormir, apenas olhe para nós e você verá que nós seremos o seu remédio. Quando o mundo parecer muito cruel e o seu coração te fizer sentir idiota, a gente promete, você verá que nós vamos ser o seu remédio. Nós vamos ser o seu remédio.

As lágrimas não cessam e eles devem pensar que estão fazendo a coisa certa. Mas acredito que o que mais me machuca não são esses pensamentos hipotéticos, e sim ainda não ter aprendido a superar as pessoas nem desacreditar em suas bondades, o que me faz aceita-los mesmo depois de eles não terem entendido a minha doença e terem me abandonado quando os sintomas voltaram a aparecer que era justamente quando eu mais precisava deles. Eu sei que o amor deles é uma verdade minha, mas eu irei sempre amá-los.

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