CAPÍTULO 2: EM MEUS ARREDORES

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Cada grunhido que escapava entre os meus dentes, que rangiam, era mais uma tentativa frustrada de liberdade. Meus punhos, avermelhados, queimavam por causa do repetido atrito da pele contra a corda. Na verdade, àquela altura, dificilmente eu conseguiria dizer qual ferida em meu corpo mais ardia.

Aquelas amarras pareciam impossíveis de serem desfeitas.

Estava diante de um empasse dos grandes. Eram muitas as razões, mas a incerteza sobre o que poderia acontecer era o que me fazia temer denunciar à polícia aquelas agressões. As constantes ameaças de papai, que não era mais pai, e, em especial, uma delas, me deixava quase de cabelos para o ar. Ao empostar uma voz grave e deixar escapar um hálito ácido daquele uísque vagabundo, o homem me amedrontava: "O que acha de ficar sem as mãos?". Ele certamente voltaria àquele estado entorpecido de ira quando descobrisse que, com extrema dedicação e, acima de tudo, paciência, saí vitorioso da guerra contra os nós em meus pés e mãos. Estúpido como sempre fora, Victor facilitou minha soltura ao abandonar, no mesmo lugar onde promovera seu espetáculo de sangue, sem que percebesse, a faca que usou para me ferir. Bêbados... se acham merecedores de glória enquanto no auge da embriaguez, todavia, quando chega o fim da balbúrdia, retornam à sua rotina defasada de encostar suas cabeças em um muro de lamentações e se queixarem sem pausa de suas vidas fúteis e corações vazios.

Repulsivos.

Pouco antes de oficializar o avental aos meus trajes nada reais, disparei escadas acima até o banheiro a fim de tratar as lesões em meu corpo. Em mãos, algumas pomadas que, nos rótulos, prometiam evitar infecções e acelerar a cicatrização; um pacote com pequenos maços de algodão e uma minúscula caixa de curativos em adesivo para camuflar as feridas - as que fossem possíveis de esconder.

O desafio que restara era olhar o meu reflexo naquele pequeno espelho de bordas alaranjadas e manchas pretas sem que eu me chocasse com minha própria imagem.

A autoestima beiraria o limbo.

Para minha surpresa, analisando com um pouco mais de atenção, os cortes no rosto não foram tão profundos quanto imaginei. Fora inevitável, contudo, driblar a necessidade de usar um pouco a mais do que o planejado em algodões para que eu conseguisse higienizar totalmente o antebraço, onde o número de lesões fora maior. A contar daquele dia, as camisetas longas e os casacos de frio seriam meus grandes aliados até mesmo em dias de mormaço. Partes das marcas da covardia, que edificara seu império em meu coração e que, muito possivelmente, impediram que eu confrontasse Victor, ficariam bem escondidas, ao menos por enquanto. As do pescoço dariam um pouco mais de trabalho para ocultar à vista dos curiosos. Acabei por me render aos infalíveis macetes da maquiagem. Por sorte ou uma grande coincidência, lembrei que mamãe havia esquecido uma de suas maletas de produtos de beleza quando partiu. Estava empoeirada dentro da terceira gaveta de sua cômoda. Vaidosa, Vivian sempre me dizia para não subestimar o poder dos cosméticos: 'Nunca se engane com mulheres muito produzidas', ela alertava. Tive de concordar. Um pó marrom-claro, ou seja lá o que fosse aquilo, parecido com o tom da minha pele foi suficiente para deixar a aparência do pescoço e punhos mais uniforme. Não era nada perfeito, mas o bastante para evitar muitas perguntas.

Ah, mamãe! Sem dúvida alguma, ela seria uma das primeiras pessoas a quem eu recorreria para traçar minha rota de fuga e desaparecer para sempre do hospício que minha casa se tornou. Vivian era quem me ouvia quando eu precisava desabafar. Ela me apoiava, dava os melhores conselhos... era presente; mas tudo acabou de repente. Mamãe sumiu da minha vida como o sol em dias nublados.

Eu não sabia mais onde procurá-la.

E nem por que.

Justo nos tempos de negrume em que mais precisei de sua ajuda, não a tive. Pelo telefone, nas raras vezes em que me atendia, sempre com seu novo namorado ao lado implorando para que voltasse a cavalgar sobre ele, Vivian dizia algumas poucas palavras e, apressada, clicava no maldito botão vermelho. Nenhuma frase do tipo 'Já se alimentou hoje?' ou 'Leva um agasalho quando sair'.

Nada.

Sendo sincero, embora guardasse mágoas, muitas, inclusive, não a culpei por ser alheia em seu ofício de mãe. Era uma mulher bonita, jornalista, independente, sedutora e ainda exalava juventude; ela seria idiota se, após sentenciar como fracassado o seu então casamento, não quisesse aproveitar bem tudo o que seu corpo lhe proporcionava. A verdade é que a não mais srtª Avilla, apesar dos incontáveis atributos, com o uso das palavras certas, era facilmente manipulável. Não foi atoa que caiu como um rato enfeitiçado pelo queijo no discurso de amor que Victor sempre lhe fazia em seus românticos encontros no intervalo das aulas de jornalismo, na faculdade. Ainda assim, preferi acreditar que ela me amava e que, de alguma maneira, se preocupava comigo, mesmo que a cada dia estivesse mais inalcançável. A cada dia menos parte de mim.

A cada dia uma estranha.

Horas da minha vida desperdiçadas limpando aquele lugar; lutas sofridas contra o ardor insuportável das fissuras em minha pele; disso houve um prêmio de consolação: o cortiço, ou melhor, a casa, finalmente retornara a sua ordem cotidiana. Entretanto algo me incomodava em toda aquela história de invasão: enquanto observava os móveis organizados e sentia o cheiro forte dos produtos de limpeza rasgando meu nariz e me fazendo chorar sem vontade, concluí que não havia nenhum bem faltando. Por que um ladrão faria tamanho escarcéu e não levaria nada? Talvez Victor tenha mesmo feito toda aquela bagunça e, para se livrar da culpa, atuou e lançou à lona a responsabilidade do seu ato.

Quem diria! A teoria hollywoodiana poderia ter fundamento.

No primário, conheci uma garota chamada Chloe. Ela era filha única de um casal de novos ricos, os Agnes. Thomas, diretor executivo e dono de uma fábrica de automóveis em expansão, tanto na pequena Lelton como no mercado internacional, e Elisabeth, diretora e proprietária do colégio onde eu era bolsista. Chloe tinha quase a minha idade e exalava a rebeldia. Ela não se sentia nada contente com o luxo descabido que rodeava sua vida. Especulações pelos quatro cantos da pequena cidade davam a entender que Chloe era uma menina fácil, sem caráter, vazia e esnobe. Tudo mentira. Eu a conhecia mais intimamente do que seus próprios pais, e sabia que, ali dentro, nada havia além de um coração que ansiava por liberdade. Enquanto toda a Lelton acreditava que o dinheiro e o status eram a solução, para Chloe, eles eram o problema. A visibilidade que sua família costumava ter a deixava desconfortável, além de prendê-la em um molde que odiava: o de riqueza e recato.

Mesmo com tantos problemas, Chloe esteve sempre junto a mim nos momentos mais conturbados que enfrentei. Era reconfortante ter alguém para passar o tempo e esquecer, mesmo que por apenas algumas horas, as paranóias que torturavam a minha mente. Como era de se esperar, estar muito próximo a alguém como ela fazia brotar do além olhares nada amigáveis de muitos rapazes do colégio e até de fora dele. Estudávamos na mesma turma e por vezes nos encontrávamos para fazer algo divertido no fim de semana; era praticamente impossível não repararem em como éramos próximos. Tamanho alvoroço tinha um motivo, e este não era o dinheiro: a herdeira única dos Agnes carregara consigo, dado por alguns rapazes do colégio, o título de a garota mais bonita. Ainda que fosse um tanto repetitivo, negar que a moça fazia jus a seu status popular seria o mesmo que cometer um crime hediondo ou atirar no próprio pé.

Devido a nossa relação fraterna, muitos colegas de turma, pessoas de outras classes e até mesmo alguns novatos cogitavam um romance secreto entre nós, mas, para infelicidade desses, a realidade estampou em seus rostos o amargor da decepção: Elisabeth, pelos corredores e salas de aula, expunha em seus olhares fulminantes uma infinita desaprovação na minha relação com sua filha. Com certeza já aconselhara inúmeras vezes a garota a ficar longe de um inseto como eu. Um envolvimento que ultrapassasse as fronteiras da amizade nos afastaria para sempre.

Nós não queríamos isso.

"De ponta à ponta, os sentimentos mais intensos
se confundem dentro de mim. Eles me rondam."

O Peso do PensarOnde histórias criam vida. Descubra agora