Homenum Revelio

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Deixo esta carta endereçada a quem encontrá-la. Para que possa entregar à ela, para que seja conhecida minha história, meu sacrifício, minha demência.

Os tentáculos do monstro que me atormentava há meses prendiam a boca do meu estômago, e o calor incômodo em minhas orelhas, o formigamento em meu ventre, eram a prova cabal de minha loucura - com todas as implicações que este fato poderia trazer.

A primeira vez que pus os olhos nela foi numa manhã tediosa. Quarta - feira, para ser mais exato.

Eu já a conhecia a tempo suficiente - por volta de quatro anos- . Tempo este que gastei olhando para ela como uma ameaça odiosa, ou ainda, um ser digno de repulsa.

Naquela quarta- feira, tudo transcorria normalmente, exceto pelo fato de que era aula de feitiços, e o corpo dela parecia flutuar com o movimento leve da respiração tranquila, responsável pela fluidez da varinha no preparo do encantamento. Meus olhos pousaram nas mechas cor de chocolate, com mesclas de tons dourados. O movimento dos lábios ao proferir as palavras necessárias era quase impróprio, e a curva do pescoço desenhava um caminho sem volta, e eu, é claro, estava completamente perdido.

Naquele dia, Hermione Granger tomara para si minha atenção pela primeira vez. Como um tiro de canhão, dilacerou tudo o que havia dentro de mim, misturando ódio e atração numa mesma poça de sangue quente e borbulhante, causando-me nojo, medo e um ódio surdo, por não conseguir conter as reações do meu próprio corpo. Foi confuso, desajeitado e fora da ordem natural. Eu gostaria de me esconder e azara-la; amaldiçoa-la por fazer-me sentir uma vergonha inominável e, sobretudo, a culpa pungente invadindo minha alma.

Meu único pensamento na manhã preguiçosa, sob o olhar curioso do Prof. Flitwick, era o de que a mão pequena, que segurava a varinha com graça e habilidade, poderia estar acariciando meus cabelos.

Isso era deveras impróprio. Eu sabia.

--x--

Dizem os mais sábios - e os metidos a sábios também costumam palpitar neste sentido - que com o passar dos anos as convicções caem por terra. As pessoas amadurecem e criam para si novas manias e, em certos casos, alguns trejeitos são adquiridos pela convivência com outras pessoas. Da convivência com ela, eu havia adquirido o dom de observa-la sem ser notado.

Ela era o significado da impropriedade, na medida em que representava o fruto mais proibido da árvore proibida. Como se houvesse um medidor que auferisse o grau de "proibitividade" da árvore dos frutos proibidos. Meu pai a classificaria como a fruta podre dentro da árvore sã, esta sendo representada pelos bruxos de sangue puro. E por muito tempo ela havia sido a sujeira da sola dos meus sapatos, a erva daninha que crescia no meu mundo perfeitamente arquitetado pelos nobres.

No entanto, naquela aula de feitiços, talvez pelo sombreado de seus cabelos desenhando o pergaminho, ou quem sabe o brilho dos cílios, evidenciado pela luz do sol, que entrava fraca pela janela, eu olhei-a, de fato. Encarei-a como a mulher que estava se tornando, e assumi o risco do precipício, mesmo sabendo que a queda seria mortal.

Não que ela possuísse beleza extraordinária, quiçá um porte digno. Hermione Granger não possuía quaisquer atributos que justificassem a atração que tomara conta de mim. Talvez as notas de caramelo e baunilha que emanavam da pele leitosa, ligeiramente bronzeada pelas férias passadas em algum país da América fossem a razão. Eram o verdadeiro convite a um mergulho insano e desarrazoado.

O tic - tac do relógio cuco em cima da mesa do professor, pronto para ser transformado em areia, de acordo com a atividade proposta no início da aula, indicava que o tempo estava passando, rápido demais. Logo eles estariam em locais diferentes, seria difícil encontrar um ângulo para observa-la sem se fazer notar. Precisava manter a postura de arqui-inimigo, atuação esta que talvez não se sustentasse, tendo em vista a confusão que me possuíra. Eu sabia que, enquanto proferisse palavras asquerosas em relação a ela, ou tentasse a todo custo prejudicar aqueles a quem ela amava, o meu corpo, em protesto violento, clamaria pelo contato perfumado e quente que deveria ser o corpo dela, e minhas mãos suariam, ávidas por poderem alisar as maçãs do rosto dela, lisas e aveludadas.

--x--

Ouvi então a voz do Professor Flitwick, congratulando-a pelo sucesso com o feitiço. O relógio parara de fazer seu tic tac característico e se desfizera, dando lugar a uma areia fina e clara. Ela tinha que estragar minha observação? Nunca se cansava de me provocar, mesmo quando não sabia que estava agindo desta forma.

O professor deu a aula por encerrada e eu continuei me questionando acercado do atrevimento inconsciente da sabe - tudo infeliz. Tivera a audácia de realizar o feitiço e entregar o relatório primeiro do que eu, e ainda interrompera o único momento que eu poderia contempla-la furtivamente!

Idiota.

O ódio queimava em minhas veias, como sempre acontecia quando ela estava por perto, mas agora era um ódio de mim mesmo, por ser influenciado pela presença sútil e marcante de uma nascida trouxa. Uma nascida trouxa.

Quando o ultimo rastro de sua presença na sala se fora, eu pude concluir que ela era alguma espécie de desastre natural: Onde passava causava um estrago sem remédio. Aparentemente estava me deteriorando, e eu estava permitindo.

-x-

Abri o livro de feitiços aleatoriamente, tentando não segui-la com o olhar. As palavras piscaram, como se fossem parte de uma mensagem dirigida especialmente para mim:

Homenum Revelio

"Encantamento que revela presenças humanas."

Com minha pena, aproveitando os últimos minutos que restavam e esquecendo o relatório da maldita aula, desenhei uma seta no trecho que acabara de ler.

Quarta - feira, aula de feitiços. Ela tornou-se visível para mim.

Dez EncantamentosOnde histórias criam vida. Descubra agora