1. MEDO DO ESCURO [ATO 4]

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"... a perícia feita no local confirmou que este novo crime segue um padrão, o que sugere que foi cometido pelo responsável dos quatro massacres que chocaram Detroit há poucos meses. E isto significa que temos um assassino em série a solta pronto para fazer novas vítimas. O toque de recolher permanecerá, informou o Detetive Vincent Baker, que está investigando os casos e..."

A transmissão do rádio começou a falhar, e as luzes da casa da família White começaram a pisca. A Senhora White se levantou e foi até a janela da sala verificar, mas as luzes dos postes não apresentavam qualquer problema que indicasse um possível blecaute. Já passava da meia-noite quando Eve White assustou-se ao perceber um vulto esguio no jardim, não conseguia ter uma noção de quem era o sujeito que a bisbilhotava pelo vidro da janela, mas sentiu o arrepio e incômodo que aquela presença causava. As luzes da casa se apagaram e o rádio era estática pura, a mulher olhou para uma das poltronas com ressentimento: o Senhor White dormia pesadamente com a baba escorrendo por um dos cantos da boca. "Inútil!" Praguejou em pensamento, enquanto rumava sorrateiramente até a porta, mas parou ao ver as luzes das sirenes do carro da polícia.

Quando as luzes voltaram, e um dos oficiais de polícia cruzou a sala de estar, Eve ficou contente por estar usando sua camisola de cetim, que deixava seus seios proeminentes e suas pernas ao dispor daquele belo rapaz. Jeoffrey White continuou roncando numa das poltronas, enquanto ela conduziu o policial até a cozinha, era um homem jovem, forte e com um lindo par de olhos verdes, usava a farda da polícia e um distintivo dourado no peito.

Nunca tinha sentido nada pelo homem com quem tinha se casado, nunca tinha o amado, e isso era recíproco. Jeoffrey White era o seu pior pesadelo, do qual tinha que fugir e tentar acordar todos os dias. O velho asqueroso insistia em fingir que se preocupava, tinha chamado a polícia um minuto depois do horário que estipulara, era autoritário, gordo e decadente, mas Eve sabia que ele não queria deixar sua filha viver, não deixar Charlotte conhecer os prazeres da juventude, assim como havia feito com ela.

— Oficial Thomas. — apresentou-se o policial.

— Muito bem, Thomas. Posso chamá-lo assim? — ela sorriu, e pegou um cigarro do maço em cima do balcão. — Se importa? — Thomas fez que não com a cabeça, Eve deu duas batidinhas no cigarro e o acendeu. — Está uma noite quente, não acha, Thomas?

— Senhora White, sua filha deveria estar em casa há três horas. — falou o segundo oficial entrando na cozinha, fazendo o sorriso malicioso de Eve murchar. — Acho que o clima deve ser a última coisa que quer discutir.

A fumaça do cigarro entre os dedos de Eve serpenteou pela cozinha, e ela desejou uma taça de vinho, aquela atmosfera perfeita que só a juventude tem. A juventude que perdera para se casar tão cedo. Jeoffrey White não poderia ser chamado de homem perto do ser voluptuoso que estava bem a sua frente. Podia imaginar Thomas entre suas pernas, com seus lábios jovens e aveludados e sua língua, que naquela idade deveria ser muito hábil. Mas o segundo policial soprou suas expectativas vulgares para longe, e uma culpa a cutucou insistentemente até ela se lembrar de Charlotte.

— Três horas, não é? Eu me lembro... — Eve deu uma longa tragada, e fitou o segundo oficial, era tão forte quanto o primeiro e seus olhos eram verdes também, mas havia austeridade no modo como a olhava. —... Que Jeoffrey ligou para a polícia ás nove em ponto. — ela riu. — Três horas para atender um chamado, Senhor...?

— Joseph, Senhora. — respondeu o segundo oficial. — E sinto muito em informá-la que sua filha não é a única jovem rebelde nesta cidade, que sai por aí bebendo com estranhos e entrando em seus carros.

— Então devo dizer que ela puxou a mim. — redarguiu Eve, soltando fumaça no ar.

— Sua filha pode ser detida por descumprir uma lei, Senhora. — interveio Thomas.

— O terceiro de vocês é um babaca também? — ironizou a Senhora White.

— Não há um terceiro oficial, Senhora. E peço que tome cuidado com as palavras. — pediu Thomas.

— Ah, mas é claro que há. Eu o vi espiando no meu jardim. Com qual finalidade eu me pergunto? Ele não é forte como vocês. Um magricela alto. Estão o escondendo? — Eve riu forçadamente. — Com três já se pode dizer que é orgia, não é?

— Nos chamou aqui para procurar a sua filha ou para bater papo, Senhora? — indagou Thomas com ar irritadiço.

— Ou talvez pense que temos interesse em fodê-la, enquanto seu marido gordo e velho ronca no sofá. — debochou Joseph.

—Joseph. — interveio Thomas mais uma vez.

Eve não respondeu, lágrimas quiseram brotar dos seus olhos, mas ela não permitiu, havia um conjunto de taças em cima do balcão, e ela deixou-se imaginar arremessando uma a uma contra os dois homens em sua cozinha, a sensação fez seus nervos relaxarem, mas precisou acordar quando a mão de Thomas apertou-a em volta do seu braço. Ela puxou o braço, mas o policial era mais forte, e seu olhar agora era tão austero quanto o do seu parceiro.

— Temos pressa, Senhora White.
— falou ele. — Precisamos de uma foto para identificá-la. Como percebeu, já se passaram três horas.

— Saiam da minha casa. — ordenou Eve.

— Senhora, por favor...

— SAIAM!!! — Eve puxou o braço com toda a força, e se afastou. As marcas vermelhas dos dedos de Thomas ficaram impressas em seu pulso. — Eu vou denunciá-los. Não preciso...

Antes que pudesse se dar conta e terminar o que queria dizer, Joseph ergueu Eve pelo pescoço, facilmente usando apenas uma das mãos, ela arqueou com os pés balançando no ar, mas não conseguiu gritar, Thomas tentava fazer o parceiro soltá-la, mas ele parecia satisfeito demais para desistir do espetáculo.

— Você vai se arrepender, sua velha vadia.

Com estas palavras, as mãos de Joseph apertaram a garganta de Eve e a soltaram no ar, suas costas foram de encontro ao chão, e desta vez Eve não conteve as lágrimas, e a culpa não apenas a cutucou, mas a abraçou bem forte, não conseguiu se desvencilhar, agarrou suas pernas e chorou como uma criança, vendo os policiais lhe darem as costas e irem embora. Era a pior mãe do mundo. Sempre fora. "Sua filha está desaparecida e você está tentando trepar como uma adolescente." Recostou a cabeça no armário do balcão e ficou ali, imóvel, rodeada por arrependimentos provocados pela garrafa de vinho vazia no lixo. "Sua velha vadia!" Quanto tempo mais demoraria para acreditar no que estava acontecendo? Quanto tempo até aceitar a verdade sobre a criança que trouxera ao mundo? Cenas nostálgicas passaram como um filme desbotado em sua cabeça, e ela só se libertou do transe quando a porta da sala foi batida com extrema força causando pequenos tremores nas paredes.

— Filhos da puta! — vociferou, tentando ficar de pé.

Com dificuldade, Eve se levantou, e rumou para a sala, decidida, mas parou abruptamente, pois as luzes voltaram a piscar, e o rádio voltou á estática mesmo depois de desligado. De repente, a casa mergulhou na escuridão, um arrepio percorreu todo o seu corpo, ela respirou fundo, a noite estava sendo uma das piores, e uma sensação mórbida rondava seus pensamentos. Esperou no escuro, mas era em vão, decidiu voltar para a cozinha, e procurou a tato o isqueiro, acendeu-o e se dirigiu novamente à sala, mas quando lá chegou, as luzes voltaram a iluminar a casa, e seus gritos foram ouvidos e ecoaram por toda a rua, enquanto seus pés nus golpeavam o asfalto, deixando para trás o cadáver na poltrona de sua sala: no lugar dos olhos, ouvidos, boca e todos os orifícios do Senhor White, surgiram tentáculos grossos semelhantes a galhos de árvores secos e podres, o sangue escorria por todos os lados banhando o assoalho.

As Crônicas Nocivas: Orfanato (Livro 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora