3. O FILHO DO LOBO [ATO FINAL]

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Os pingos de água tinham gosto de terra, a goteira era uma fissura na madeira apodrecida da parede, a sede havia secado os lábios de Eve a tal ponto da mesma não sentir o inchaço e os cortes que as correntes haviam feito em torno dos pulsos presos atrás das suas costas. A chuva fustigava o casebre, mas do porão Eve só ouvia o som do temporal. Não sentia a água molhar sua pele. Seus lábios. Sua sede. E isso a desesperava. Estava exausta e zonza, e não tinha forças para se preocupar com o rapaz desacordado e acorrentado ao seu lado. Evitava olhar para o corpo de Andrew, nu e castigado. Imaginava se Charlotte também estaria naquelas condições ou pior: morta.

O assovio alegre veio de lá de cima, acompanhado de passos pesados sobre a madeira, Eve fechou a boca, um gosto de barro e musgo se espalhou pelas suas papilas gustativas, e ela empertigou-se como se fosse receber alguém de suma importância. Na verdade queria apenas demonstrar força diante do monstro que teria de encarar. A porta do porão foi aberta, e o açougueiro desceu para a sua sala de cortes. E ele assoviava como uma criança feliz que tivesse ganhado uma cesta de doces e guloseimas, mas seus interesses eram mais obscuros e perversos do que se fartar de doces. Jeremy Ryland abriu seu sorriso cinzento e podre para Eve, um sorriso que fez a sua pose se desarmar: era repulsivo e assustador olhar para aquele homem. Atrás dele o focinho do lobo negro farejou ar, mas ao contrário do que faria um lobo faminto sentindo o aroma da sua presa, este parecia incomodado com o cheiro. E o cheiro vinha de Eve. O lobo avançou lento e solene com os dentes a mostra e um rosnado ameaçador, farejou a mulher de perto, e seu focinho se concentrou nas suas pernas, ou do que havia no meio delas. Eve se encolheu contra a parede e sentiu os olhos do animal atravessarem-na. O lobo se virou para o homem e choramingou, e foi como se eles entendessem um ao outro. Ao final da conversa os olhos do açougueiro brilhavam intensamente para Eve.

— O diabo fodeu você. — falou ele. — Sim, ele fodeu você. — deu uma gargalhada demente. — É, ele fodeu a sua bocetinha. E você... — ele chegou perto de Eve e sua língua nojenta lambeu o rosto da mulher. — Hummm... Você gostou, não foi?

(Eve estava tendo um daqueles sonhos eróticos novamente, o edredom estava entre suas pernas e a calcinha tinha sido arremessada para longe. Não por ela. Ao seu lado estava o seu marido, o velho e sem graça Senhor White jazia em um sono profundo, enquanto Eve gemia com os toques da criatura sobrenatural que a tocava e a lambia por todo o corpo no escuro do seu quarto. E então o grito amedrontado a despertou no momento de maior êxtase.

Vinha do quarto de Charlotte.

A mulher piscou os olhos na escuridão e levantou, aturdida, tateando o cômodo a procura do interruptor. A luz foi acesa e revelou o ser desprezível que dividia a cama com ela há 6 anos. O marido protestou com sua cara bufonídea e nojenta, mas ela não lhe deu atenção, deixou o quarto e correu para o quarto ao lado quando mais um grito foi dado. Girou a maçaneta e entrou para socorrer a pequena Charlotte, que chorava agarrada ao seu pequeno urso de pelúcia.

— O que está acontecendo, querida? — indagou a mãe, aninhando a garota nos braços.

— Ele... Ele estava aqui de novo, Mamãe. — Charlotte sussurrou, esquadrinhando cada canto do seu quarto, mas não havia nada ali, exceto as grandes sombras dos objetos projetadas pela luz que vinha da janela.

— Não tem ninguém, querida. Está tudo bem, ok? — Eve abraçou a filha, mas sentiu um incômodo roçar sua nuca. — Acalme-se.

Não demorou até que a pequena Charlotte voltasse a dormir nos braços da mãe, e aquela não era a primeira vez em que Eve acordara no meio da madrugada com os gritos da filha. Havia algo de errado com Charlotte, uma força que a rondava desde o seu nascimento: algo além da compreensão humana. Quando por fim sentiu que ia adormecer, Eve se levantou e deixou o quarto da filha, mas como sempre prometia, a luz permaneceria acesa. Era o que esperava...

Eve seguiu cambaleante de sono pelo corredor, e não se deu conta de que as luzes piscavam freneticamente, só abriu os olhos quando sentiu um vulto gelado passar por ela. Parou a dois passos do quarto e esfregou os olhos com força, as luzes piscavam e sumiam como se o brilho se extinguisse, e quanto mais escuro ficava mais frio ela sentia. E então ela viu a presença se materializar bem a sua frente; era alto, magro, vestia um terno preto como qualquer homem que ela já tivesse visto, mas não era, pois no lugar do rosto não havia um rosto, não como os que conhecia; este não tinha olhos, nem nariz e nem boca. Antes que pensasse em gritar, a mulher sentiu algo lhe revirar a genitália. Um toque gelado e sem pudor. Rápido e excitante. Eve gemia e tentava decifrar o que estava diante dos seus olhos. Suas pernas se juntaram na tentativa de impedir o que se movia ali, mas foi em vão. Segundos depois com um arrepio que fazia todo o seu corpo estremecer, um líquido viscoso e incolor escorreu das suas pernas, e ela caiu de joelhos com um grito esganiçado de prazer e medo.)

Os olhos de Eve voltaram a ver o homem e lobo a sua frente, e ela teve a certeza de que ambos eram espíritos do seu passado sórdido que haviam voltado para assombrá-la. As coisas que tinha se permitido viver tinham voltado para buscá-la de uma vez por todas. Charlotte era o motivo. Não existia explicação para o que acabara de sair da boca daquele homem grotesco. O passado era o culpado e não Andrew, como ela pensava. Este continuava debilitado no chão frio e sujo daquele porão, aguardando a sua sentença. E ela estava próxima. Andrew não conseguia gritar, mas Eve sentia os olhos do rapaz clamarem por socorro, não estava mais acorrentado, mas de lhe nada adiantava aquela liberdade temporária. O lobo estava apenas esperando a vítima começar a correr.

— Corra. — ordenou Jeremy.

Andrew não se moveu, apenas emitiu um choro fraco.

— Corra. — repetiu o açougueiro.

Andrew moveu a cabeça.

— CORRA! — a ordem veio seguida de um chute que atingiu as costelas do rapaz.

— Pare! Pare com isso, seu demente! — pediu Eve balançando o corpo pra frente num tilintar de correntes, enquanto Andrew se contorcia de dor em silêncio.

— CORRA!

Andrew não esperou pelo próximo chute, reuniu toda a força que conseguiu e correu oscilante pelo porão, gemendo com um misto de fraqueza e desespero. Tropeçou em ferramentas enferrujadas e sujas com sangue seco e caiu por duas vezes até alcançar a escada. Eve fechou os olhos, pois sabia o que viria a seguir. O jovem já tinha subido até a porta de saída e suas mãos seguravam a maçaneta quando o lobo veio sedento e saltou sobre as suas costas. As mordidas rasgaram a pele e perfuraram a carne de Andrew em questão de segundos, o sangue escorreu escada abaixo em meio a gritos de dor e agonia, e gritos de compaixão vindos do outro lado do cômodo. Jeremy apanhou o cutelo em cima de uma das mesas e aguardou o seu animal de estimação trazer a caça fresca. O lobo arrastou o corpo ainda com vida até o seu dono e Eve, horrorizada, não teve coragem para assistir ao espetáculo impudico que se seguiu; enquanto a mão esquerda de Jeremy trabalhava para descolar a cabeça de Andrew do restante do corpo com golpes certeiros do cutelo, a outra ocupava-se em masturbá-lo. O lobo continuava a devorar o restante do rapaz, e o som de carne descolando dos ossos era angustiante. Ao final a daquele ato a voz de Jeremy soou como um presságio maldito:

— Não tenha medo. — ele suspirou de satisfação, sua mão direita ainda segurava seu membro embaixo da camisa. — Quando for a sua vez, vamos poupar a sua boceta. — ele riu, misturando o sêmen ao sangue sobre o cóccix do cadáver. — Ela já tem um dono.

As Crônicas Nocivas: Orfanato (Livro 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora