3. O FILHO DO LOBO [ATO 5]

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Altivo, o esnobe James cruzou os braços e arqueou as sobrancelhas, enquanto observava Ethan dormir profundamente, era um garoto de 11 anos, magro e dentuço. Em volta do beliche um cerco tinha se formado para assistir o novato, o dia já estava claro e estavam todos de pé, mas desta vez não estavam preocupados em tirar o pijama e se vestir para o café.

— Aposto que o faz chorar com apenas um tapa. — sugeriu um garoto gorducho com um cochicho.

Risinhos se manifestaram em volta.

— Shhh... Vocês vão acordá-lo. — repreendeu James. — Preciso batizá-lo antes. — ele levantou o braço direto com a palma da mão no alvo.

— Na testa.

— Acerte a testa.

— Isso: na testa!

— Querem calar essas malditas bocas. — vociferou James, desarmando o golpe. — Que tal dois tapas? Um de cada lado. — a platéia se agitou, e o garoto riu, imaginando o feito e a reação do novato.

— Bem forte. — encorajou Trevor, chegando mais perto e procurando um bom ângulo para ver a façanha, este era um garoto de 10 anos, baixo e sardento.

A mão direita de James estava erguida novamente, ele precisava ser rápido para conseguir estapear Ethan duas vezes em cada um dos lados da sua face, um sorriso precipitado escorreu pelos lábios do garoto, exibindo seus dentes grandes e tortos, e sua mão avançou com força de encontro ao rosto de Ethan, e então no meio do caminho, parou abruptamente com um som que lembrava o encontro de pele se chocando contra pele, mas não contra o rosto de Ethan, em volta do pulso direito de James uma mão o segurava com força, e o fez baixar o braço, os outros garotos olhavam para ele sem compreender nada. Ethan acordou com um sobressalto e ainda zonzo de sono viu a horda de garotos a sua volta com expressões estarrecidas, entre ele e James estava alguém que ele já vira antes. Os olhos de James estavam arregalados e sua boca debilmente aberta, o garoto puxou o braço com força e sem dar explicações se afastou em direção a porta do quarto.

— Onde pensa que vai de pijama, James? — indagou Irmã Rachel, surgindo no vão da porta. — Vamos! Todos vocês vistam-se! — ordenou a freira, puxando James pela orelha.

— O quarto dele não é aqui... e... ai! E ele estava embaixo da cama do novato. — queixou-se James com uma careta, enquanto sentia sua orelha ser torcida pelos dedos da freira.

— Vistam-se e saíam. — ela virou-se para Ethan e o garoto que desafiara James. — Exceto vocês dois.

Quando todos os outros garotos se trocaram e deixaram o quarto, a freira veio até eles, mas apenas Ethan estava com medo e acuado, nada ali era familiar, nem mesmo o garoto de costas para ele que acabara de defendê-lo, lembrava-se muito bem de tê-lo visto na primeira noite em que estivera no orfanato, lembrava-se muito bem da promessa que o garoto lhe fizera, mas que não fora capaz de cumprir, os hematomas em suas têmporas ainda estavam lá e ele os sentia, suas memórias remexidas pareciam tentar se organizar do modo mais confuso e dolorido em sua mente.

— Vamos começar por você, Seth. — disse Rachel com uma doçura irônica na voz. — Você não se cansa, garoto?

— Ele precisa da minha ajuda. — replicou Seth.

— Ah, mas é claro que sim. Todos precisam. — debochou a freira. — Ninguém pode te ajudar, querido. Agora vá.

Aquele aviso não tinha sido direcionado a Ethan, e a tristeza no olhar de Seth parecia perpétua, ele se levantou e rumou lentamente até a porta, Ethan tentou não demonstrar empatia nenhuma por ele, mas falhou, imaginou que se estivesse segurando um espelho, veria exatamente aquela angústia olhando-o de volta, era como se ele e Seth compartilhassem de uma dor parecida. Mas de repente lhe ocorreu que todos ali compartilhavam da mesma dor, afinal, em um orfanato só vivem aqueles que foram rejeitados por quem deveria protegê-los. Mas foi assim que aconteceu? A pergunta silenciou os pensamentos de Ethan por um instante, e a resposta mais simples lhe pareceu a mais certa: seus pais também o tinham rejeitado.

Ethan sentiu o colchão afundar, e quando abriu os olhos para a realidade, Rachel estava observando-o, sentada na ponta da cama. Diferente da freira mais velha que o ajudara, essa não tinha uma feição complacente, mas sim a mesma cobiça que vira nos olhos dos padres que o tinham trazido para aquele lugar. Um olhar malévolo, persuasivo e indiferente a qualquer sofrimento. Por um bom tempo ela ficou em silêncio e sem se mover, apenas fitando-o com uma sugestão de sorriso no rosto, era jovem e sua pele era de um branco incandescente, as íris eram verdes mescladas com linhas vermelhas, que davam a impressão de alguma irritabilidade nos olhos, mas ela não parecia incomadada, algumas mexas do cabelo loiro serpenteavam propositalmente para fora do hábito, que diferente dos outros não ostentava um crucifixo.

— Você é diferente, não é? — perguntou a freira com um sussurro meloso.

Ethan não respondeu, mas sentiu vontade de fazer a mesma perguntou à ela.

— Venha. Troque-se para o café. — Rachel o puxou pelo braço, mas não foi adiante, e com grito de dor caiu de joelhos sobre o piso de madeira.

Neste momento a visão de Ethan o levou para longe dali, o quarto e todas as coisas que havia nele pareciam um nevoeiro que se dissipou em segundos, e trouxe uma noite escura e aterradora. Não estava mais no orfanato. O garoto sentiu seu corpo colidir de costas com um chão pedregoso e úmido, estava amarrado e amordaçado, um vulto encapuzado o puxou pelos pés e começou a arrastá-lo com violência, árvores negras e esguias somavam-se a Lua cheia e as nuvens cinzentas que a cercavam para compor a visão macabra. A cabeça de Ethan ia levando pedras e galhos por onde passava, e ele tentava gritar com o pedaço de pano enrolado na boca, se debatendo desesperadamente em vão, pois não tinha forças para competir contra o seu oponente. A nuca e as costas do garoto ardiam como brasa, enquanto eram esfoladas pelo caminho, que agora começava a se tornar uma subida íngreme. Era possível ouvir a respiração feroz da criatura que o arrastava a passos lépidos pela floresta, o trapo que prendia a sua boca se soltou, e o grito aflito veio com força da sua garganta, mas ele sobressaltou-se ao perceber que aquela voz não era a sua, a criatura virou-se para ele e mesmo que não fosse possível ver o seu rosto, Ethan soube que aquilo era um sorriso. O caminho se aplanou novamente, ainda ofegante a criatura largou as pernas do garoto no chão, e respirou fundo. Estava cansada. E sedenta. Ethan ouvia seu próprio choro irreconhecível, e isso só fazia o seu medo crescer, ele tentou se afastar do vulto encapuzado a sua frente, mas as suas costas doíam, e ele não conseguiu se levantar, a criatura avançou para ele, não havia como fugir, apenas virou-se de bruços para não ver o que viria a seguir, mas antes de fechar os olhos, vislumbrou a grande vala abarrotada de corpos amontoados como objetos velhos e descartados, o cheiro da carnificina era ácido e putrefato, centenas de moscas sobrevoavam sonoramente os cadáveres, e Ethan teve a certeza que se juntaria a eles em breve, então com um último grito despertou-se do pesadelo.

— Mas o que está acontecendo aqui?! — indagou Eugenia, entrando as pressas no quarto.

Os olhos de Ethan estavam fora das órbitas, sua mão direita segurava Rachel pelo punho com firmeza, e esta gritava, fazendo força para se soltar, quando os dedos do garoto afrouxaram e seus olhos voltaram a enxergar o quarto, a freira estava em prantos e com um dos punhos ardendo em carne viva no local exato onde os dedos do garoto a tinham segurado. A feição de Ethan era vazia, e a de Rachel assustada.

— Ele... Ele me machucou! — replicou a freira mais nova com rispidez, olhando para o punho de onde agora começavam a brotar grandes bolhas.

— Como? Eu não... Eu não entendo. — disse Eugenia, atônita. — Querido? Querido, consegue me ouvir? — ela estalou os dedos na frente de Ethan, mas ele não lhe deu atenção. — Ethan, você está me ouvindo, querido?

— Meu nome não é Ethan. — respondeu o garoto com frieza na voz.

— Como?... Você está bem, Filho? — Eugenia sentou-se na beirada da cama, e procurou por algo de errado, enquanto Rachel se retirava do quarto, apavorada e com resmungos de dor.

E então a voz de Ethan soou mais uma vez, fria e soturna:

— Meu nome é Emma Porter e meu assassino vive aqui.

As Crônicas Nocivas: Orfanato (Livro 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora