2. INOCÊNCIA DE VIDRO [ATO FINAL]

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Como num estalar de dedos, Charlotte White desapareceu, e Peter mal conseguia formar uma ideia para o que estava acontecendo. Sentiu um desconforto atrás da nuca como se estivesse sendo observado, mas não havia ninguém por perto. Nem mesmo o fantasma da jovem garota, que acabara de ver. Encostou-se na parede, e respirou fundo, sentia que estava perdendo o controle, acreditando em coisas que não deveriam acontecer. Era um dos melhores detetives da sua corporação, levara anos para ganhar respeito e prestígio, coisa que seu pai conseguira tão rápido, mas perdera com a metade do tempo por acreditar em sandices. Tirou a arma do coldre e checou a munição, mas aquilo lhe pareceu a mais estúpida das atitudes, escorregou lentamente pela parede do orfanato, e se sentou no chão.

Precisava refletir.

(— Um dia vou usar uma dessa também, Papai? — perguntou o pequeno Peter com os olhos vidrados na arma de Vincent.

— Só quando eu não estiver lá para te proteger, amigão? — respondeu o pai sorridente.

O garotinho sorriu e saiu atirando com os dedos e imitando sons de tiros com a boca pela casa. Há quatro anos ele crescia feliz entre os afagos do seu novo e atencioso pai, que mesmo não abandonando velhos hábitos como carregar uma arma na cintura, enfim abdicara do trabalho. Peter ainda não entendia, mas percebia amor e dedicação nos atos daquele jovem homem marcado, ainda não conhecia sua história macabra e como fora parar sob a guarda dele, ainda não tinha idade para compreender tamanha crueldade, mas sabia que sob seus cuidados estava protegido.)

Não era a claridade do sol que incomodava Peter, mas sim leves chutes que ele sentia nas pernas, piscou ligeiramente ainda recusando a luz do dia, e a figura de Margot se formou aos poucos na sua frente. Só se deu conta de que adormecera sobre o cimento frio do lado de fora do orfanato, quando a guia do museu começou a tagarelar. Levantou-se de um pulo, e esfregou os olhos, seu ombro estava dolorido, e sua cabeça latejava onde havia colidido com o banco do carro. Margot analisava-o atrás de seus óculos quadrados com a pergunta na ponta da língua, mas ele respondeu antes:

— Meu carro... Tive um pequeno acidente, e meu carro não ligava, então vim para cá, mas não havia ninguém.

— E resolveu invadir uma propriedade privada, Senhor Stanhope? — replicou Margot.

— Peter.

— Que seja. Ninguém pode morar num lugar como este distante de tudo. O fato é que não tem permissã...

— Está vendo esse distintivo, Senhorita Parker? — ele puxou a insígnia do bolso da camisa. — Ele vale mais do qualquer chave que você possua.

A mulher ficou séria como se estivesse com dificuldade de respirar.

— E por falar em chave, — prosseguiu. — vou precisar das suas.

— As minhas chaves? — ela tentou devolver as chaves que segurava ao bolso da saia. — E para que precisa das minhas chaves?

Não esperou que ela lhe desse as chaves, apontou a arma para a cabeça da mulher e as exigiu. Margot entortou o salto de um dos sapatos numa fenda no chão, e se desequilibrou ao ver o revolver tão próximo ao seu rosto, a arma quase roçava seu nariz. Colocou as chaves na mão estendida de Peter e saiu do caminho, o detetive passou por ela com a pontaria ainda na sua direção, e se dirigiu a entrada do edifício. As respostas que procurava estavam ali dentro, e ele precisava encontrá-las, mesmo que isso significasse confrontar os seus credos. Suas mãos estavam trêmulas demais, e o molho de chaves dançava entre seus dedos, demorou alguns minutos para conseguir abrir a grande porta, espiou por cima dos ombros, mas não havia sinal algum da guia do museu, deveria estar apavorada e acuada em algum canto, e talvez fosse pela ansiedade em suas veias, mas Peter não sentia culpa.

Entrou no orfanato e trancou a porta, sua respiração estava acelerada e o suor começava a brotar na testa, estava mais escuro do que da primeira vez que entrara ali, com passos cautelosos, passou pela grande sala vazia e lôbrega, e seguiu pelo corredor estreito, já estava diante da grande escada que levava aos andares de cima, quando escutou um som indistinguível vindo do corredor onde vira Charlotte pela primeira vez.

— Charlotte? — o nome ecoou no vazio tétrico. — Charlotte, está aí? — chamou novamente, tentando ver entre as tábuas pregadas nas duas paredes.

A resposta veio na forma de um gemido gultural, mas desta vez Peter não ousou chamar pelo nome da morta de novo, pois o medo petrificava suas pernas, e sua voz ameaçou não sair quando ele abriu a boca. Pulou a barreira de correntes, e só decidiu ir em frente quando o gemido veio da escuridão como um pedido de socorro. Abaixou-se, ficando sobre os joelhos, e de arma em punho se apertou no vão entre o chão e tábua que impedia a passagem, deslizou para dentro do corredor, deixando um rastro vermelho e ardido um pouco acima do cóccix e um pedaço da sua camisa presa em uma farpa. Apenas a escuridão densa como graxa pela frente, pegou o celular do bolso do jeans para descobrir que as janelas estavam todas tapadas assim como o caminho. Portas e mais portas trancadas, e os passos de Peter se tornavam mais ávidos à medida que ele avançava movido pelos gemidos de agonia, chegou à última porta com o instinto aguçado e o medo escoando pelos poros, pegou na nona maçaneta daquele corredor e a girou, a porta se abriu com uma claridade inesperada.

Lâmpadas fluorescentes expunham o âmbito desumano e sórdido que era a sala, no meio da sala um homem nu gemia amordaçado com os punhos presos por uma corda, e os braços esticados de uma ponta a outra da sala, logo abaixo dele, seus pés se contorciam para não afundar na cama de pregos, atrás dele um respaldo de couro despontava, e Peter se perguntou porque o homem não se sentava, sua pergunta foi respondia assim que ele adentrou mais alguns passos no calabouço: no lugar do assento havia uma pirâmide com uma saliência cortante. Os olhos do homem arregalaram-se para Peter e seus gemidos se tornaram choro e desespero, ele se contorceu e o detetive conseguiu ver as fezes secas entre suas pernas, a sala era fétida e claustrofóbica. O homem era jovem e não parecia estar preso ali mais do que alguns dias, Peter não o conhecia, mas as perguntas poderiam ficar para depois. Guardou a arma no coldre e correu para libertá-lo, não conseguiu, pois um golpe forte na sua nuca o fez cair desacordado no chão.

As Crônicas Nocivas: Orfanato (Livro 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora