Capítulo 15~

5K 564 27
                                    

Helena

               Já era a quarta ligação de Gio só na última hora. Arthur tinha me bombardeado de mensagens, todas devidamente ignoradas. Eu não precisava falar com ninguém. Eu não precisava de pena. Eu queria esmurrar a cara de Miguel. Eu queria o conforto do seu abraço. Eu queria nunca mais olhar na cara dele. O misto de emoções me deixava ainda mais confusa do que eu estava, então a segunda garrafa de vinho já estava pela metade. O problema era que nem Gio nem Arthur entendiam que eu só queria ficar trancada por uns dias, chateada por todas as coisas que eu não teria mais. Bem em breve eu iria melhorar, mas eu precisava ficar de luto pela minha falta de emprego e perda de pseudo-namorado por um tempo.
                Depois do escândalo que foi aquela apresentação, eu fui demitida. Ainda que fosse óbvia minha falta de empenho e que isso provavelmente tinha sido o grande motivo para que eu perdesse meu emprego, além da queda abissal das ações do conglomerado, nada me tirava da cabeça que eles haviam me descoberto. Todo dia isso se repetia na minha cabeça, a cada vez que eu encontrava alguma coisa de Miguel perdida pela minha casa. Era nessas horas que as taças acabavam mais rápido. Maldita hora que eu decidi dar uma chance ao vizinho de cima.
Deixei tudo o que encontrei dele do lado de fora da janela. Se ele as buscaria ou se o vento faria o trabalho de levá-las dali, pouco me importava. Eu só queria que todo resquício de memória sumisse da minha casa, embora eu não pudesse simplesmente jogar minha cama pela janela. Eu não tinha condições de comprar uma nova sem um emprego.
                Para melhorar o meu humor a respeito do meu novo status de desempregada, eu gostaria que os jornais parassem de noticiar a M&D. Não fui a única a ter de passar no RH, é claro, e a fila de demissões atingiu todas as divisões da empresa, não só a agência. Todo o processo me custou sete horas ouvindo todo e qualquer tipo de reclamação dos ex-funcionários. O voo de volta da Ilha da Trindade foi horrível, todos sabendo como era o nosso futuro era incerto. Saber que eu, de certa forma, causei aquilo era de corromper qualquer alma.
              Quando me estiquei mais uma vez para alcançar a garrafa, eu o vi pela visão periférica. Não achava que Miguel fosse reaparecer assim, ainda que os e-mails tenham sido todos marcados como spam. Pelo menos, ele teve o mínimo de senso de não começar de novo a desgraça do acesso remoto. Meu coração idiota acelerou os batimentos e acabei olhando para ele, ainda que a verdadeira vontade fosse de ir até a janela esbofeteá-lo até não poder mais.
              Miguel me encarou por um longo segundo. Ventava muito e eu podia ver sua blusa lutando inutilmente contra o ar agitado. O pesar em seus olhos não me convenceu em nada, mas era óbvio que ele já sabia da minha demissão, afinal eram 11 horas da manhã de uma quarta-feira em início de mês. Depois de um tempo, ele prendeu uma flor na minha janela, quando eu mal tinha notado que ele segurava uma. Eu esperei que ele subisse com aquele seu olhar de desculpas e algum tempo se passasse para ir até lá. Todas as coisas dele poderiam voar, mas não o lindo lírio que deixou ali. A flor era a minha favorita e eu me perguntava como o maldito poderia saber da minha fascinação por elas. Rosas, elas faziam um belo degradê até as pontas, onde eram brancas. Deixei-as sobre a estante da sala, em um copo d’água.
               Eu não tinha um amor pelos lírios por eles serem apenas flores muito bonitas. Várias outras eram assim. O lírio é considerado, por muitos, a flor do amor, seja ele um amor irrealizável, reprimido ou sublimado. Se ele for um amor sublimado, o lírio simboliza ainda a glória do amor. Ele também tem outros significados, como a flor do poder, da soberania, da lealdade e da honra. Eu gostaria que Miguel soubesse de todas essas coisas. Principalmente a parte sobre ser a flor do amor, da lealdade e da honra.

***

             O lírio floresceu por três dias. Entristeceu-me vê-lo murchar na estante, mas eu não não saberia como transformar a flor em uma mudinha e plantá-la, ainda que eu tivesse pesquisado sobre como fazer na internet. Eu queria fazer uma comparação tosca sobre seu ciclo de vida, pelo fato de ela ser a flor do amor que nasce, passa por uma linda fase, até que murcha novamente, mas percebi que era bobo demais e parei antes. Mas, que eu sentia que o meu relacionamento com Miguel poderia ser explicado dessa forma, eu sentia. E isso era muito triste, porque eu não era nenhuma mocinha que se iludia por começar um relacionamento e achar que seria eterno.
               Depois de tantos dias dentro de casa, ignorando todas as mensagens de Arthur e Giovanna, eu sabia que eles não tinham desistido de mim, porque nós somos melhores amigos, mas eu achei que eles me deixariam quieta por um tempo. Isso foi quando eu ouvi a campainha tocar. Eu deveria saber que, se a pessoa não tinha sido anunciada pelo porteiro, era alguém conhecido. Da lista de possibilidades, era Gio, Arthur ou Miguel. Agindo no automático, eu apenas me arrastei até lá e destravei a maçaneta. Eu me arrependi de ter aberto a porta no instante em que encarei Arthur do outro lado. Ele não estava nada feliz e aposto que agora eu estava fadada a ouvir, mesmo que eu não quisesse. Eu me virei e voltei a sentar no sofá, de onde eu tinha certeza de que não deveria ter saído.
              — Por onde você quer que eu comece, Lena?
             Eu me recusei a responder. Eu sabia, pelo tempo que Arthur estava em minha vida, que eu teria que enfrentar um grande choque de realidade. Era por isso que nós nos dávamos tão bem. Enquanto as outras pessoas usavam de meias palavras para tratar uns aos outros, eu e Arthur éramos diretos. Falávamos o que precisava ser dito, quando precisava ser dito. Só que eu não sabia se estava preparada para encarar os fatos. Já fazia algum tempo, mas eu fazia de tudo para que não se estampasse bem na minha cara, como ele estava prestes a fazer.
              — Lena, você tá me escutando? — Arthur tinha se agachado na minha frente, e suas mãos se apoiavam em meus joelhos. Eu nem o tinha sentido me encostar.
              — Estou.
Ele me encarou por mais um tempo, desacreditado. Bufei.
              — Você sabe que eu estou. Mas, não quero conversar agora.
              — E você vai continuar assim por mais quanto tempo? Porque essa não é a Lena que eu conheço.
              — Sou sim. Nunca fui tão eu em toda minha vida. — Debochei.
              — Definitivamente, não. Eu sei que você não estava esperando perder esse emprego, mas você tem que seguir em frente…
             — Seguir para onde, Arthur? Que agência vai me contratar depois desse escândalo?
           — Qualquer uma que tenha o mínimo de consciência! Não foi você que ameaçou ninguém, Lena. Você não fez nada de errado.
               Resolvi usar esse momento para esclarecer as coisas. Arthur ainda não sabia de toda a história, mas era hora de eu desabafar tudo aquilo com alguém. Encostei no sofá, desanimada.
               — Eu fiz, sim.
               — É claro que não, Lena. Presta atenção no que você tá falando!
               — Eu sei muito bem do que eu tô falando, Arthur. Porque fui eu que extraí boa parte dos arquivos da empresa e mostrei para ele. Fui eu que li o maldito dossiê incriminatório que ele me trouxe, fui eu quem ajudou Miguel nesse escândalo. Eu sabia que ele tinha invadido a rede do hotel, eu sabia do que ele era capaz. Eu só esperava que ele tivesse o mínimo de decência e não me largasse lá sozinha, não depois de tudo o que eu arrisquei. Não depois de tudo o que a gente passou junto, do nosso pseudo-relacionamento. Eu deixei de acreditar na empresa, não trabalhava direito… mas eu não acreditava que eu estava sozinha.
              Arthur tomou uma longa respiração e usou esse tempo para digerir tudo o que eu tinha acabado de contar. Depois de pensar um pouco, ele me encarou novamente.
              — Você só confiou na pessoa errada e o Miguel usou isso da maneira dele. — ele tentou aliviar as coisas, mas não funcionou.
              — Por que diabos você e a Giovana não esquecem a porra do Miguel?!
              Eu me levantei irritada e olhei para a janela. O vento balançava o vidro trancado com violência. Estava vindo chuva pela frente, mas não era isso que me incomodava. O fato era que Miguel tinha sumido depois do dia em que nos encaramos. Nenhuma tentativa de contato. Ele tinha me deixado pagar o pato sozinha na ilha, e nem ao menos me dirigiu a palavra depois disso. E-mails não contam. Eu sabia que ele estava em casa, porque eu podia ouvir a maldita cadeira giratória correndo pelo teto. Se ele achava que aquele lírio iria resolver alguma coisa, ele estava completamente enganado.
              — Olha. — disse Arthur, um pouco mais ríspido do que antes — Eu não quero assistir a isso sem saber que eu fiz de tudo para você enxergar as coisas como elas são. Lena, uma hora você vai entender que isso que você nutre pelo Miguel não vai te fazer bem nunca. Quem gosta da pessoa não faz esse tipo de coisa.
                — Sabe o que mais me irrita nisso tudo, Arthur? Ninguém, absolutamente ninguém, acredita no que eu falo. Eu já disse para a Gio e para você. Vou repetir de novo para ver se você entende. Eu não gosto do Miguel. Eu não estou apaixonada por ele. Vocês tem que tirar essa ideia maluca da cabeça! — Esbravejei, enquanto meu amigo me encarava.
               Ele se aproximou de repente, sem desviar os olhos dos meus e colocou as mãos ao redor do meu rosto, firmando para que eu não pudesse desviar o olhar.
               — Diz isso de novo. Diz, olhando nos meus olhos, que você não sente nada pelo Miguel. Diz de novo, me faz acreditar em você! — Ele segurou mais forte, impedindo que eu virasse a cabeça.
              Eu estava prestes a começar a falar, mas algo me chamou a atenção. O barulho do trinco da minha janela. Naquele ressoar tão cristalino, como se eu estivesse tão próxima, ainda que uns bons vinte passos me separassem de lá. O som do vento se intensificou quando o vidro se viu finalmente livre, enquanto a figura de Miguel se construía na minha visão periférica e eu tentava virar o rosto em sua direção. Ele dizia alguma coisa que o vento não me deixou ouvir, algo como estar cansado de esperar uma retaliação da minha parte, mas quando ele finalmente pousou os olhos sobre mim, sua expressão mudou completamente. Foi então que eu me toquei. Arthur estava segurando meu rosto, próximo o suficiente para que eu o encarasse nos olhos. No calor da discussão, eu mal havia percebido o quão próximo ele estava. Eu sabia que Miguel não era lá muito simpatizante do meu amigo desde o incidente da caixa explosiva, que resultou naquele outdoor, e eu até achei que as coisas tinham melhorado um pouco com o pouco contato que eles tiveram na ilha, mas a expressão dele agora demonstrava um pouco mais do que eu pensava.
                No instante que Arthur percebeu a presença de Miguel na janela, suas mãos se afrouxaram o suficiente para que eu pudesse girar totalmente o rosto. Ele encarava Miguel com cara de poucos amigos, mas isso não afugentou meu vizinho. Ele se recompôs em segundos.
                — Atrapalho? — disse, zombando, enquanto se escondia de novo atrás do sorriso debochado.

Lá em cimaOnde histórias criam vida. Descubra agora