Cordélia

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— Vamos chamar a polícia! – Anna exclama, ela traz a caixa de primeiros socorros que foi buscar na cozinha enquanto eu ajudo Eric a lavar o ferimento na banheira. Seguro a mangueirinha do chuveiro em cima da mordida, o sangue grosso e escuro jorra dos buracos abertos pelos dentes afiados do cão.

— Você ficou louca? – digo irritada para Anna — O que pretende dizer para a polícia? – Ela não responde, só abre a boca e titubeia um “Eu nã...” deixando o resto da frase morrer. Faço um gesto de cabeça em direção à gaveta do armário da pia, onde ficam as toalhas limpas, ela larga o kit de primeiros socorros ao meu lado e pega uma toalha branca. Mal consigo olhar nos seus olhos quando ela me entrega a toalha, estou com muita raiva por tudo que aconteceu. Seco o ferimento de Eric, a toalha fica manchada de vermelho, passo um pouco de água oxigenada para matar as bactérias que podem ter passado com a mordida e faço um curativo, dando várias voltas e amarrando a gaze bem forte.

— Está doendo? – pergunto para Eric, dei um analgésico para ele há cinco minutos.

— Um pouco – ele responde sibilante, seus olhos entrecerrados, o rosto pálido. Ele precisa descansar. Resolvo leva-lo para o quarto.

— Me ajuda aqui – digo para Anna. Ela põe o braço esquerdo dele por cima dos ombros, eu faço o mesmo com o braço direito. Saímos do banheiro e caminhamos pelo corredor até o meu quarto, Eric é pesado mesmo para nós duas, ele está quase desacordado agora, arrasta a perna ferida e anda tropeçando.

Puxo um travesseiro para sua cabeça enquanto o soltamos na cama, suas pernas ficam para fora, balançando, ergo com cuidado primeiro a esquerda, a perna boa, depois a direita, com o máximo de delicadeza que posso e ele solta grunhidos de dor.
***

Depois de me certificar que Eric está bem, desço com Anna e resolvo ver como está o cachorro. Quando tirei Eric do porão, antes de fechar a porta, joguei o bife envenenado escada abaixo, com a esperança que o cão comesse, agora espero que ele já esteja morto. Antes de descer ao porão vou à cozinha e pego a maior faca que encontro, caso ele não esteja.

Abro a porta do porão e mapeio atentamente o pouco espaço que a luz da cozinha ilumina. Arrependo-me de não ter trazido uma lanterna. Anna está atrás de mim, olho para ela, encolhendo-se de medo, como se quisesse se esconder, “Vadia covarde!” penso.

— Vai na frente! – eu imposto, contorno o corpo dela e dou um empurrão de leve em suas costas — e acenda a luz – Ela obedece, desce as escadas e para um pouco lá embaixo, olha para cima e para os lados e ergue lentamente a mão até o interruptor na parede. Quando a lâmpada acende eu desço.

O cachorro não está mais embaixo da escada, então procuramos pelo porão e o encontramos caído perto do armário. Anna se ajoelha ao lado dele e acaricia seu pelo, ele está ofegante, a língua de fora, uma poça de baba se formou em baixo da sua cabeça, seus olhos recuperaram a cor normal, o veneno fez efeito, ele está morrendo, seguro firme a faca e resolvo acabar logo com o seu sofrimento. Me aproximo e me agacho ao lado dele, erguendo a faca. Anna olha para mim, lágrimas escorrem pelo seu rosto.

— Faça! – ela diz, fechando os olhos e virando a cara — seja rápida.

Olho para o cachorro, seus olhos parecem implorar por misericórdia. Seguro a faca parada no ar, tudo que eu tenho que fazer é descê-la com força até seu coração, e pronto, tudo vai acabar ali, desço a faca rapidamente e paro. Não consigo fazer isso, não consigo matar o maldito cachorro que mordeu meu namorado, o cachorro que há algumas horas estava morto, não consigo porque ainda me importo com os sentimentos de Anna, porque ainda sou muito sensível, ou muito covarde.

Atiro a faca longe, a lâmina produz um som metálico quando bate no chão cimentado do porão. Anna abre os olhos e olha espantada para mim e para o cachorro, sorri e me abraça. Finalmente acabou, eu penso. Tudo não passou de um susto. Mas então ela me larga, olhando para trás de mim. Eu me viro. É Eric, ele segura a faca. Seus olhos estão vermelhos.

Noite de HorrorOnde histórias criam vida. Descubra agora