Capítulo 2

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Consigo ficar até o fim da aula de História sem ter um chilique, e então vou para a
aula de Trigonometria e me sento ao lado da carteira vazia do Ben. Por algum ato de Deus — ou talvez do diabo, ainda não decidi —, a professora escolheu os lugares aleatoriamente e acabei ficando perto dele.
Há três meses e quatro dias — dia 19 de junho, para ser mais exata —, eu teria morrido de alegria se me sentasse ao lado do Ben. Quero dizer, finalmente eu teria a oportunidade de falar com ele.
Mas é claro que ele ter se tornado o namorado da minha melhor amiga meio que mudou isso.Eu nunca contei a ela sobre essa minha paixonite. Se eu tivesse dito alguma coisa meses
atrás, antes de ele sair com ela, talvez não estivesse metida nesta confusão. Mas não falei nada.
É claro que eu já tinha falado para ela como o achava bonito, como ele ficava lindo de jeans, como seus olhos azuis eram maravilhosos. Mas nem em sonho eu poderia estar apaixonada mesmo por um cara com quem mal tinha trocado seis palavras, né? O que mais eu poderia ter dito a ela? Que a gente tinha uma ligação muito forte há bastante tempo, mas ele ainda não sabia? Que eu tinha certeza, sem dúvida nenhuma, de que ele era a minha alma gêmea?
Falou. É mais fácil um pônei criar asas e voar. E é claro que a gente sempre falava como o Ben era gostoso, mas eu nunca contei como me sentia de verdade, e foi assim. Até o dia 19 de junho.
Talvez 19 de junho tenha sido o dia em que a Nicole decidiu que não queria mais ser tímida,
o momento da mudança. É mais fácil enxergar tudo agora, olhando para trás, que existe a Nicole de antigamente e a nova Nicole, e 19 de junho é o divisor de águas entre as duas.
Eu conheço a Nicole melhor que qualquer pessoa no mundo, e então eu sei que, apesar de parecer tímida, depois que ela se acostuma com alguém, fica bem mais divertida. E alguém a colocou para ser parceira do Ben no pingue-pongue, e eles passaram duas semanas jogando juntos.
Ainda acho estranho imaginar isso, mas, de alguma maneira, ela tomou coragem e o convidou para sair. Ela provavelmente vomitou as palavras com tudo e ficou vermelha, mas o convidou.
E ele aceitou.
Ela estava sorrindo de orelha a orelha quando me contou, pulando de alegria, como se tivesse ganhado na loteria.
Eu não consegui contar para ela que tinha quase certeza de que estava apaixonada por ele havia anos. E agora que o conheço melhor — pela Nicole —, agora que eu e Ben conversamos e brincamos na aula e ele me conta tudo sobre seus encontros com ela, eu tenho mais certeza ainda. E tenho mais certeza de que a gente combina muito. Ben é “o cara” para mim. Meu par perfeito.
O problema é que ele já tem outro par, e agora eles estão comemorando três meses de namoro. Três meses são, tipo, uma década quando a gente está no ensino médio. Eu passei a maior parte do verão naquela lanchonete imbecil, então não fui forçada a aguentar momentos lindos dos dois juntos. Graças a Deus. Pelos próximos quarenta e cinco minutos, vou segurar a respiração, meu coração baterá descompassado, e os pelos do meu braço ficarão arrepiados. Essa é a minha vida na órbita do Ben, e é o ponto alto de todos os dias da minha existência sem sentido.
Minha paixonite pelo Ben começou há alguns anos; no verão, depois do sexto ano. Nicole e eu estávamos no Flaming Geyser, um parque estadual que fica perto da nossa cidade natal, Enumclaw, uma cidadezinha a uma hora ao sudoeste de Seattle. O parque fica ao norte do Vale de Green River, e é preciso pegar umas estradas compridas e cheias de ventania para chegar lá. O parque é cercado por pinheiros mega-altos, em que o rio é largo e corre devagarzinho, perfeito para nadar ou esquiar na água com uma boia de câmara de pneu de caminhão. Num dia quente, as margens do rio ficam cheias de carros estacionados até onde a vista alcança.
Naquele dia, eu estava usando o último biquíni que comprei na vida, a parte de cima era uma cortininha minúscula cor-de-rosa com bolinhas brancas, o tipo de coisa que eu preferiria morrer a usar hoje em dia. Nicole usava um maiô de velha — azul-marinho liso, o tipo de coisa que a equipe de natação da escola usaria. Naquela época, ela já vestia sutiã tamanho P, e andava com uma canga branca amarrada sobre o maiô. Eu não falei que aquilo só a deixava mais peituda ainda porque não queria que ela ficasse paranoica. Naquela época, ela era ainda mais tímida, e tinha medo de falar com qualquer outra pessoa além de mim.
Nicole queria passar a maior parte do dia na praia, jiboiando, comendo salgadinho e lendo um de seus romances. Naquela época, ela tomava remédio para acne, o que deixou a sua pele supersensível à luz, por isso ela estava besuntada com a camada de protetor solar fator 60 mais grossa que eu já vi. Ela ficou paranoica de tanto medo de ir nadar e tudo aquilo sair na água. Acho que a única coisa pior que ter o rosto cheio de acne é ter um rosto cheio de acne e queimado.
Eu, por outro lado, não aguentava ficar parada. Acho que se pode dizer que eu sou um pouco impaciente, sempre pronta para uma aventura.
Então, nadei para o outro lado do rio e escalei as margens de barro marrom avermelhadas, segurando-me nas raízes das árvores, e enfiando o pé na lama escorregadia. Apesar de o meu cabelo ainda estar pingando a água gelada, aquela trilha curtinha me fez suar. Mesmo no meio do verão, não fazia mais que trinta e dois graus em Enumclaw, mas, naquele bendito dia, estava fazendo uns trinta e seis.
Tem um penhasco de uns seis metros de altura do outro lado do rio. O pessoal pula de lá de cima, mas você tem de mirar bem na água; senão, é capaz de bater nas pedras que ficam a uns dois metros de profundidade e quebrar uma perna.
Diz a lenda que alguém morreu tentando pular dali, anos atrás. Ouvi dizer que a pessoa havia bebido demais e pulou antes de todo mundo. Essa história assusta um monte de gente, e todo mundo fica olhando fixamente lá para baixo por uns dez minutos, só para desistir e descer o morro de novo.
Às vezes, os espectadores — ou as pessoas espertas o bastante para nem subirem no penhasco — amarram suas boias na margem e ficam só flutuando de bobeira ali, esperando para ver quem tem coragem mesmo de pular e tirando um sarro da cara de quem não tem.
Naquele dia em que conheci Ben, ele estava lá em cima com mais três caras, todos encarando a água lá embaixo com olhos cheios de preocupação. Acho que ele ainda não era tão doido e ousado, não como é hoje. Eu não reconheci nenhum deles, nem o Ben, mas descobri depois que estudavam na Thunder Mountain, outra escola de ensino fundamental da cidade.
Quando finalmente percebi que eles eram um bando de medrosos, fiquei com vontade de simplesmente pular, sem falar nada, sem hesitar. E mostrar para eles do que é que eu era capaz. Mas eles estavam tão assustados que acabaram me deixando com medo também, até o frio na minha barriga ficar do tamanho de uma geleira. Eu tremia de leve, a água do rio ainda escorrendo de mim, o sol bloqueado pelas árvores.
Quando Ben viu, meio que deu risada para si mesmo e tentou disfarçar.
— O que foi? — Tive de colocar a mão no meu quadril ossudo encoberto pelo biquíni rosa. Eu não tinha curvas. Nem naquele tempo, nem agora.
O cabelo do Ben era até mais loiro que agora, clareado pelo sol e mais comprido. Um corte meio tigelinha, quase comprido o bastante para colocar atrás da orelha. Ele usava uma bermuda azul e vermelha e era magro, só com uma pista dos músculos que se desenvolveriam depois.
— Nada. — Ele cruzou os braços e se encostou em uma árvore perto da ponta do penhasco. — Nada de mais.
Meu coração parou de bater por um segundo quando aqueles olhos azuis intensos se viraram para mim, desafiando-me, forçando-me a ir em frente, duvidando de mim.
— Está com medo de eu mostrar como é que se faz? Você já está aqui há meia hora. — Levantei uma sobrancelha, determinada a não demonstrar como ele me deixava mais nervosa do que despencar lá de cima.
Ben não disse nada. Ele sabia que eu tinha razão.
Meus lábios se fecharam em um sorriso enorme, e fui para a ponta. Os meninos se afastaram um pouco, como se eu fosse levar todo mundo comigo lá para baixo. Ou como se meu jeito doido fosse contagioso. Parecia que meu coração ia parar de bater quando olhei para além da ponta do penhasco, e para aquele ponto tão pequenininho na água onde eu deveria mergulhar. De repente, eu entendi por que é que eles estavam plantados ali havia tanto tempo. Isso me lembrou daqueles desenhos em que os palhaços sobem uma escada que vai até as nuvens, e então pulam em um baldinho de água.
Eu poderia ter dado meia-volta e dito para os meninos que estava tão assustada quanto eles. Mas não falei nada. Pulei, planando pelo ar, e o rio Green River se aproximando dos meus pés. Quando caí no rio, a superfície gelada da água se fechou sobre mim, engolindo-me, e eu sabia que estava apaixonadinha por Ben e seu sorriso arrogante — mas lindo... Havia alguma coisa na maneira com que ele me desafiou, e me olhou direto no olho, que encontrou um caminho até o meu coração.
Passei o restante do dia vendo Ben e seus amigos nadando e brincando na água e rindo, e, sim, uma hora eles finalmente pularam lá de cima também. Acho que eles tinham de pular, depois que simplesmente me atirei do penhasco sem nem piscar.
Um mês depois, ele se mudou para o outro lado da cidade, o que queria dizer que estudaria na nossa escola, e não na Thunder Mountain, com todos os seus amigos. Tínhamos aula de Inglês juntos. Mas ele não parecia se lembrar de mim, e, quando percebi isso, foi como uma facada dolorida no peito. Eu não consegui me forçar a ir falar com ele quando nos sentamos a milhares de carteiras de distância na sala, e as outras meninas já estavam caindo matando em cima dele. Ele estava ainda mais bonito nas roupas novas de outono que naquela bermuda vermelha e azul.
Foi como se aquele momento no rio, quando olhamos fundo nos olhos um do outro, nunca tivesse acontecido. Às vezes, fico pensando se é por isso que nunca contei nada para a Nicole sobre essa paixonite. Talvez pela vergonha de aquele momento ter sido tudo para mim, e nada para ele.
— Oi — cumprimenta ele três minutos depois de se sentar na cadeira. Seu cabelo meio loiro está todo amassado com gel, e sua pele tem um bronzeado natural. Até aquela camiseta enorme e a calça jeans larga não conseguem esconder seu corpo agora musculoso, que ele conquistou com uma combinação de treinar pesado durante o verão todo, ajudar o pai no negócio de paisagismo e correr de motocross sempre que pode.
Mais uma coisa legal sobre o Ben: ele adora andar de moto na lama. E ele é muito bom, incrível mesmo. Eu poderia ficar vendo ele na pista o dia inteirinho. Ele tem uma moto amarela brilhante e, toda vez que voa com ela, meu coração pula com ele. É hipnotizante! Algum dia ele vai virar profissional e ter um monte de patrocinadores.
— Oi — respondo eu, sem levantar os olhos da lição de casa do dia anterior.
Em um dia normal, a gente troca pelo menos setenta e três palavras, o braço dele encosta no meu sete vezes, e o joelho dele entra em contato com o meu ao menos em três ocasiões. Ele olha no meu olho e sorri pelo menos uma vez, um sorriso que me garante em meio segundo que a gente formaria um casal perfeito.
Se ele não fizesse parte do que possivelmente já é um casal perfeito.
Eu suspiro para dentro pelo menos uma vez por minuto e suspiro alto, sem querer, pelo menos uma meia dúzia de vezes. Fico imaginando o rosto da Nicole mais vezes que o necessário, tentando me lembrar por que é que não posso paquerar esse menino. Talvez eu devesse achar irônico que a única razão pela qual não posso sair com ele é, na realidade, a única razão pela qual ele agora sabe quem eu sou. Se ele não estivesse namorando a Nicole, tenho certeza de que não me reconheceria em uma multidão. Ele se inclina para perto de mim. — Por que os vendedores de peixe são ótimos marqueteiros? Mordo o lábio e olho para a frente, pensando. Não tenho a mínima ideia.
— Porque eles têm de vender o próprio peixe — responde ele, batendo na mesa.
Ben e eu temos o mesmo terrível senso de humor. Gostamos de contar piada. E, quanto pior, melhor. Mas aquela piada ia muito além de tudo o que é tosco nessa vida.
— Tenho uma melhor: por que a laranja foi ao médico?
— Para doar vitamina C? Eu só olho para cima.
— Porque não estava descascando direito. Ele dá uma risadinha.
— Legal. Você ganhou. Eu sorrio e olho nos olhos dele. Isso faz meu coração se contrair um pouco. Ele é lindo demais para se descrever com palavras. Sua pele, bronzeada e perfeita, o jeito como sua camiseta desbotada fica presa aos músculos, que parecem se esticar com força por cima dos ombros, os calinhos na mão...
— Então vocês dois vão jantar em um restaurante chique hoje à noite, hein?
— É. Pelo jeito a comida é incrível e tem uma vista bonita do mar. Acho que deve ser um lugar legal. A Nicole está empolgada.
— Legal — falo, e olho de volta para a minha lição de casa.
— Legal mesmo? Eu não sabia do seu aniversário até hoje... A gente pode remarcar... — Ele ajusta seu relógio prateado no pulso, e seu braço encosta no meu pela primeira vez hoje.
Abano a mão, como quem diz que isso não tem importância nenhuma, apesar de um lado irracional meu querer que o Ben soubesse que hoje é meu aniversário. O dele é no dia 6 de março. Faz dois anos que eu sei, desde que ouvi um dos amigos dele desejar “feliz aniversário” no corredor perto do ginásio da escola.
— Não é nada. Eu faço aniversário todo ano. Mas vocês só poderão comemorar esse aniversário de três meses de namoro uma vez.
Eu me abaixo e coço a costura da minha meia-arrastão de novo. Está me deixando louca. Preferiria ter uma centena de formigas marchando pela minha perna direita agora a ter de usar essa meia por mais um minuto. Eu me abaixo de novo e faço um furo, para que a costura não fique mais encostada no meu joelho.
Quando olho para cima e para Ben, ele está me encarando com aquelas sobrancelhas escuras e perfeitas erguidas; seus olhos, de um azul profundo, estão fixos na minha meia-calça. Eu dou um sorriso, minhas bochechas esquentam.
— Desculpa. Essa coisa aqui está me deixando maluca.
Ele dá de ombros, escorrega um pouco na cadeira e estica suas pernas esguias à sua frente. O joelho dele bate no meu. Duas vezes.
— Mas essa meia é sexy, né?
Ah, não, não acredito. Ben nunca me elogiou, nunca em um milhão de anos. Ele guarda todos os elogios para a Nicole.
De repente, eu queria não ter feito um buracão na meia, e bem no joelho, enquanto faço que não com a cabeça. “Não cobiçai o namorado da melhor amiga.”
— Então, você fez a lição de casa? — pergunto, forçando-me a voltar para tópicos de conversa mais seguros.
Ben abre o fichário e dá uma batidinha na lição de casa, guardada no bolso da capa. Seu braço toca o meu de novo.
— Quase. Eu terminei os dois últimos problemas na sala de aula.
A Sra. Vickers finalmente anda até a frente da sala de aula, dez minutos exatos depois que o sinal tocou. Ela começa o dia anotando nossas tarefas na lousa, e todo mundo resmunga ao ver que ela está passando mais trinta problemas. Para amanhã.
Ben se inclina para perto de mim, tão perto que eu consigo sentir o cheiro do seu perfume. O aroma me envolve e eu preciso me forçar a manter os olhos abertos, em vez de fechá-los e respirar bem fundo e devagar.
— Essa mulher está tentando matar a gente — reclama ele. — Sua respiração é morna, ao atingir meu pescoço, e tem cheirinho de hortelã. Se eu virasse o rosto, só um pouco, meus lábios encostariam nos dele, e eu finalmente saberia como é beijar o Ben.
Mas, em vez disso, eu simplesmente faço que sim com a cabeça e olho fixamente para a professora, como se não tivesse noção de que estava mais pertinho dele naquele momento do que em qualquer outra oportunidade na vida. E não tenho mesmo. A menor noção. Porque ele é o namorado da minha melhor amiga.

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