No segundo em que passo pelas portas duplas e entro nos corredores acarpetados
da escola, a Nicole me cerca.
— Desculpe! Eu sinto muito, tanto, tanto! — pede insistentemente. Não falo nada. Continuo andando e rangendo um pouco os dentes. Ela anda de marcha a ré na minha frente, seu cabelo loiro insistindo em cobrir parte do rosto. Ela o afasta dos olhos com suas unhas recém-feitas à francesinha e me encara. Ela está usando um pingente de brilhantes em uma correntinha delicada de prata.
Fico pensando se foi um presente de aniversário de namoro. Tento lembrar se ela estava com a corrente na noite passada, mas, como não cheguei nem a trinta metros dela, não tenho certeza.
— Eu perdi totalmente a noção do tempo. Eu juro que tive um troço quando finalmente olhei para o relógio. Saímos correndo para a sua casa, mas ficamos presos no trânsito. Uma carreta tinha tombado na pista, e a gente teve de dar a volta e...
Ela finalmente percebe que não estou escutando de verdade.
— O que aconteceu não é importante. Eu juro que vou fazer de tudo para consertar essa situação. — Ela para de andar e sou forçada a parar também, para não dar um encontrão.
Olho fixamente em seus olhos azuis por um momento. Eles estão cerrados de preocupação, como se a qualquer momento eu fosse dizer que ela morreu para mim. Cruzo os braços.
— Eu mandei umas cem mensagens para você.
— Meu celular estava sem bateria.
Enrolo uma mecha do meu cabelo castanho e úmido, resistindo à vontade de simplesmente falar tudo de uma vez.
— A coisa toda foi um desastre, viu. Tudo.
Ela faz um bico com seus lábios carnudos e perfeitamente cobertos de gloss.
— Faço sua lição de Biologia por uma semana! Eu lhe empresto todas as roupas do meu guarda-roupa. Vou a qualquer show que você quiser. Levanto uma sobrancelha.
— A qualquer show?
— A qualquer show, contanto que ninguém dê um mosh em mim, ou algo assim.
Entorto os lábios de lado e olho para ela com cara séria por um tempo. Talvez, se eu tivesse outros noventa e nove amigos, poderia dar o tratamento de silêncio para ela por um ou dois dias, mas minha resolução já está fraquejando.
Cruzo os braços.
— Jura mesmo? Você não será perdoada se não cumprir tudo, combinado? Ela solta um suspiro comprido e lento de alívio.
— Eu juro.
— Beleza. — Descruzo os braços. É triste ver como concordei tão rápido. Mas é claro que ela não queria ter chegado tão tarde. E estou mais brava por causa daquela festa idiota do que com ela.
— E como foi seu jantar de aniversário de namoro? O rosto dela se ilumina.
— A comida era incrível! Eu pedi um risoto e, meu Deus, fico com água na boca só de pensar nisso. E a vista! É em Puget Sound, pertinho de Point Defiance. Eles têm um deque, só que estava fechado. Mas da janela dava para ver a água e também as barcas e os veleiros, essas coisas. Eu podia olhar para aquilo a noite inteira. E o Ben disse a coisa mais engraçada do mundo sobre o garçom! A gente ficou rindo disso o jantar inteiro e uma hora eu literalmente cuspi a minha sopa, mas o Ben foi um fofo e fingiu que nem percebeu. Foi tão lindo. A gente falou sobre você também, sabia? O Ben acha você rebelde. Foi ele quem disse, não eu. Rebelde? O Ben acha alguma coisa de mim?
— Então — digo, sentindo uma onda de raiva, já que obviamente ela se divertiu tanto sem mim —, valeu a pena ter perdido a minha festa.
— É. Não, não, é claro que não. Argh.
— Tanto faz. Já não me importo com isso.
— Me importo sim.
— Mas você está me devendo uns, sei lá, cem brownies de chocolate com menta. Seu sorriso se acende de novo.
— Vou começar a fazer tudo hoje à noite.
A gente sai andando de novo, para a aula de Biologia.
— E, além disso, você talvez tenha de fazer minha lição de casa de Biologia até o final do ano. Já estou perdida mesmo. Nicole dá risada.
— Minha mãe vai fazer a gente ir visitar minha avó hoje à noite, mas e se a gente se encontrar amanhã? Aí podemos revisar aqueles desenhos das células.
Eu faço que sim com a cabeça e entramos na sala de aula; a briga sobre a minha festa já estava quase totalmente esquecida.
Como se a festa propriamente dita fosse assim tão fácil de esquecer.***
Quando me sento à carteira na aula de Fotografia, horas depois, não consigo parar de me preocupar com a Nicole e o momento inevitável em que ela perceberá que já está adulta demais para ser minha amiga. A gente pode ter resolvido o lance da festa, mas e se esse só for o primeiro de muitos?
Se ela me abandona no meu aniversário, então qualquer coisa pode acontecer, certo?
Eu deveria estar fazendo o trabalho que, com certeza, arruinará a única nota A que tenho, entretanto, em vez disso, fico olhando para ela de relance. Neste momento, ela está de pé debruçada sobre uma bandeja cheia de revelador, um par de pinças na mão enquanto passa o papel no fluido. Hoje, ela está revelando um rolo de filme todinho de fotos do Ben, que eles tiraram durante o jantar de ontem.
Eu vi algumas delas. Eles foram dar uma caminhada na beira da água depois do jantar. Ela tirou fotos dele no píer, a lua só uma lasquinha de luz no horizonte. A água brilha por trás dele, linda e serena.
Ela não estava brincando quando disse que eles perderam a noção do tempo. Porque, naquele instante, ela deveria estar no meu jardim, mas estava longe, totalmente alheia, e andando feliz ao longo da Ruston Way.
Ainda estou meio brava. Eu jamais faria isso com ela! Mas também estou uma mistura de outras coisas: preocupada, irritada, aflita, triste. O negócio com a Nicole é que mudamos bastante nos últimos anos. Ou nós vamos ficar mais próximas ou nos afastaremos; e eu acho que sei no que isso vai dar.
Sabe, antigamente a Nicole não era muito bonita. Eu nunca me importei com o fato de seu rosto ser coberto de acne, ou que ela estava pelo menos uns dez quilos acima do peso, ou que era bem baixinha.
Mas seja lá o que ela estiver fazendo para o rosto, está funcionando, e nos últimos dois anos ela cresceu tipo vinte centímetros. Juro.
E como ela não ganhou nem um grama sequer, isso quer dizer que agora ela é magrinha, apesar de ainda ter muito mais coisas acontecendo no departamento peitoral em relação ao meu. O cabelo dela cresceu depois daquele corte trágico que ela tinha no ensino fundamental. Ela ainda tem um pouquinho daquela timidez, mas isso está desaparecendo um pouco mais a cada dia. Ela descobriu que não é mais uma nerd. Assim, agora só me resta esperar até que ela descubra
que eu ainda sou nerd, e então provavelmente me jogar para escanteio. Se o que aconteceu ontem for indicação de algo, significa que o negócio está ficando sério com o Ben, enquanto nossa amizade está cada vez mais se apagando.
Eu me inclino sobre o balcão onde estou ampliando uma foto, tentando me concentrar no meu projeto e ajustar o negativo para que não fique borrado, nem corte a cabeça de ninguém. Levando em consideração que já tive alguns dias para trabalhar nesse projeto, eu já deveria estar num estágio mais avançado. Ou seja, a Nicole já está tão à frente que nem está se preocupando mais com isso; e está aproveitando para revelar fotos do namorado dela.
O Sr. Edwards quer que a gente faça um “autorretrato”. Mas sua definição de autorretrato é meio bizarra, porque não podemos tirar fotos de nós mesmos. Tem de ser alguma coisa “representativa” de nós mesmos. E precisamos usar um dos efeitos especiais que aprendemos para tornar a foto mais criativa, como inverter o negativo ou mudar o foco, ou alguma coisa assim.
Eu escolhi essa aula porque parecia ser menos torturante que uma das aulas de Agricultura dos “futuros fazendeiros”, ou de Teatro, ou, que Deus me proteja, do Coral. Mas acontece que, na verdade, essa aula é meio sacal. Aparentemente, eu não tenho visão artística nenhuma.
O Sr. Edwards me deu umas notas razoáveis porque consegui manter os aspectos técnicos perfeitos, porém ele vive me enchendo o saco e dizendo como eu deveria usar meu “olhar interior” e “observar o mundo ao meu redor” e blá, blá, blá. E então ele passou nosso primeiro trabalho mais importante — metade da nota do primeiro semestre —, com uma superênfase em criatividade. Ui.
A pior parte é que ele é um daqueles professores dos quais você gosta de verdade, do tipo que realmente se importam com seus alunos e passam um tempão fora do horário de aula conversando e ajudando todo mundo.
Assim, acho que me sinto um pouco culpada por entregar trabalhos incrivelmente sem graça, semana após semana. Mas o que posso fazer? Algumas pessoas da aula simplesmente olham para alguma coisa e “click”, é arte instantânea. Eu não possuo esse talento natural.
Agora, tenho menos de duas semanas para terminar esse projeto e, pelo jeito que as coisas andam, eu vou expor um supernada. O que posso fotografar que me represente? Um quarto gigante vazio? Um telefone que nunca toca? A agenda da minha mãe, que não tem tempo nenhum para mim? A parte de trás da cabeça da Nicole, enquanto ela se afasta de mim, ou pior, dando uns amassos com o Ben?
Nicole coloca a foto para secar e recolhe os objetos espalhados ao redor do ampliador dela. A aula termina em alguns minutos.
— A que horas você quer me encontrar amanhã?
Nicole fecha o zíper da mochila. Ela fica bonita à luz vermelha do quarto escuro. Essa iluminação deixa sua pele mais clara, sem defeitos, e seu cabelo loiro brilha. — Hum... Às sete? Eu tenho uma consulta médica logo depois da escola.
— Beleza, para mim está bom.
Nicole joga algumas fotos rejeitadas do Ben no lixo entre nossas bancadas.
— Legal.
O sinal toca, eu resmungo e começo a guardar minhas coisas. Mais uma aula totalmente perdida...
Enquanto enfio as coisas na mochila e me viro para sair da sala, jogo uma foto arruinada fora, que acaba flutuando para fora da lata de lixo e aterrissa no chão.
Eu me agacho, pego a foto e a coloco no lixo, mas as fotos rejeitadas da Nicole chamam a minha atenção.
Na verdade, elas são muito boas. A primeira está borrada demais, mas a segunda, do Ben no píer, tem um foco leve, etéreo, como se as nuvens tivessem se afastado para a luz brilhar apenas sobre ele. Há alguma coisa errada com um lado da foto, como se a Nicole houvesse colocado o dedão na frente da lente, mas o centro, onde Ben está de pé, olhando para a água está perfeito. Eu olho ao redor da sala. Ninguém está prestando atenção em mim.
E então, sentindo-me como se estivesse roubando a Mona Lisa, enfio a foto no meu fichário, com o coração saindo pela boca.