Capítulo 10

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Quando acordo na manhã seguinte, abro um olho só, devagarzinho, e olho ao redor do
quarto. Depois daquele pônei e dos chicletes de bolinha, sinto como se existisse mais uma emboscada à minha espera.
Mas os chicletes de bolinha não apareceram de novo. Obrigada, estrelinha da sorte! Não sei o que meu irmão fez com eles, mas finalmente ele fez algo de benfeito na vida. E uma olhada rápida pela janela me garante que não tem nenhum pônei comendo nossa grama perfeitamente verde. A vida está de volta ao normal. Que felicidade!
Mas, quando me encaminho para a porta do quarto, escuto um barulho. Vindo do meu guarda-roupa.
Fala sério! Se meu irmão aprontou outra, nem que seja uma coisinha de nada, vou contar tudo para a minha mãe. Minha vida virou uma doideira desde que ele voltou a morar aqui e é tudo culpa dele.
Marcho até o guarda-roupa e abro a porta com tudo.
Meu coração quase para de bater quando dou de cara com um par de olhos verdes emoldurados por cílios compridos e curvados. Tem uma menina que nunca vi na vida sentada lá dentro do meu guarda-roupa. Sem brincadeira. Eu berro e pulo para trás, pego a cadeira da minha escrivaninha e coloco-a entre nós duas, como se a cadeira fosse minha arma secreta. Morte por cadeira com rodinhas.
Percebo que a cadeira não vai ajudar muito a me proteger, portanto me estico até a escrivaninha para pegar... Uma régua. Empunho a régua como se fosse uma espada, ainda escondida atrás da cadeira. Talvez, se eu tiver sorte, possa transformar clipes de papel naquelas estrelinhas de ninja.
A menina estranha está simplesmente sentada no chão, com as pernas cruzadas, usando a roupa mais horrorosa que já vi: meia-calça listrada vermelha e branca, um vestido azul de algodão e um avental branco. O cabelo cor de morango dela é rebelde e todo enrolado e cai até o meio das costas em cachos bem crespos; e fios dele podem ser vistos espalhados em tudo quanto é lugar. Ela tem um monte de sardas ao longo do nariz e lábios tão grossos que não parecem ser naturais.
Ela parece ter a minha idade. O negócio é que não está nem aí por estar presa no meu guarda-roupa.
Se essa é a menina que meu irmão está namorando a distância, ele tem um mega mau gosto. Mas, se eu pensar bem, ela está namorando meu irmão, então talvez seja ela quem precise de ajuda nessa história.
— Quem é você? — pergunto, indo em direção à porta, como se ela fosse um cachorro com raiva. Estou dominada por um medo irracional de que ela vá pular do nada e vir para cima de mim, como uma aranha saltadora, ou algo parecido.
— Ann — responde ela, com a voz fraquinha, quase um sussurro.
— Tá, Ann, e o que você está fazendo no meu guarda-roupa?
— Estou sentada — diz, como se fosse óbvio. Ela pisca algumas vezes e me encara de um jeito esquisito, como se eu é que não devesse estar no meu próprio quarto.
— Beleza, mas por que você está sentada dentro do meu guarda-roupa?
— Eu sou a sua melhor amiga. Eu moro aqui! — explica ela, com a voz mais firme e menos parecida com um sussurro. Ela pronuncia cada palavra de um jeito esquisito. Não é um sotaque, mas parece a maneira como alguém pronuncia uma palavra que acabou de aprender há cinco minutos. O ritmo fica meio atrapalhado.
— Não mora, não — respondo, dando um passo para a frente. Ela precisa sair do meu guarda-roupa. Agora. O que ela acha que isso aqui é? Nárnia?
— Moro, sim.
— Não mora, não.
— Moro, sim.
Ranjo os dentes. Que menina irritante.
— Tá. E quem é você?
— Ann — responde ela de novo. — Ann do quê?
— Só Ann.
— Não existe esse negócio de só Ann.
Ela me encara. Pisco algumas vezes, na esperança de que ela desapareça. Tem alguma coisa estranhamente familiar nela. Saio de trás da cadeira para olhar direito para ela, ainda com a régua empunhada.
Se tudo der errado, eu posso medi-la até que morra.
— Eu conheço você de algum lugar? — Minha voz sai mais medrosa do que eu queria, e pigarreio um pouco.
Ela ri só um pouquinho, e por algum motivo aquilo me irrita. Quem é ela para rir quando está invadindo o meu quarto?
— Claro, Kayla. A gente já se conhece faz oito anos.
Ela sabe o meu nome. Fico com frio no estômago. Não consigo entender. Ela está me assustando. Será que saio correndo para chamar meu irmão? Vai que ela é uma louca que fugiu do hospício... Talvez ela fique me seguindo, me olhando pela janela. Não esquecer: comprar cortinas novas.
— Você precisa sair do meu guarda-roupa — ordeno, com a voz ainda trêmula. Não estou preparada para lidar com invasores antes das sete da manhã.
— Não é culpa minha você ter me enfiado aqui. Hein!?
— Eu não coloquei você aí. Que coisa mais ridícula. Isso aqui não é um albergue.
Se a régua tivesse quarenta e cinco centímetros, talvez fosse suficiente, mas ela está ficando cada vez menor na minha mão.
— Tem cinco anos que estou naquela caixa — declara Ann, apontando para uma caixa branca no fundo do guarda-roupa.
— Sua cama era muito mais confortável.
Ann engatinha para a frente, para fora do guarda-roupa, e descruza as pernas. Enquanto ela se levanta, meio que tropeça e cai para a frente, atropelando a minha cadeira e jogando-a contra a parede. Dou um pulo gigante para trás.
A cadeira deixa um enorme arranhão na minha parede perfeitamente pintada em um tom ameixa.
Que ótimo. Pelo menos, meu irmão trabalha em uma loja de material de construção.
Ela se apoia na minha cama e consegue se levantar, até ficar totalmente em pé, quase chegando ao meu um metro e sessenta e cinco. Ela não solta a cabeceira da minha cama.
Na verdade, ela parece meio molenga, como aqueles cavalinhos que acabaram de nascer que a gente vê no Animal Planet.
Quando ela fica de frente para mim, com uma das mãos ainda segurando na minha cama, eu consigo olhar para ela direito. De repente, eu é que preciso me apoiar em algum móvel. Eu sei por que ela me parece familiar.
Ela está vestida como a minha boneca de pano, a Trapinho. É por isso que ela falou sobre aquela caixa? Será que ela fuçou nas minhas coisas e viu minha boneca velha?
Nossa, que péssimo. Uma roupa daquelas fica fofa em uma boneca, mas ridícula em uma adolescente. E, com aquele cabelo mega-armado e as sardas bem escuras, ela provavelmente é a garota mais estranha que eu já vi na vida.
Cruzo os braços, irritada. Então ela acha que pode vir aqui e tirar uma com a minha cara e minha obsessão pela Boneca Trapinho? Será que essa palhaçada toda é para isso?
— Legal a sua fantasia. Pena que ainda está cedo para o Halloween, você não acha? — pergunto.
Ann olha para o próprio vestido e alisa o avental enquanto faz cara feia.
— Você sempre gostou da minha roupa.
— É, quando eu tinha sete anos!
Ela dá de ombros e finalmente solta a minha cama, para colocar as mãos na cintura. Ela dá uma balançada, mas continua em pé. Putz, será que ela estava enchendo a cara dentro do meu guarda-roupa?
— Eu gostava mais de você naquela época.
Sua voz vem se transformando durante a nossa conversa; vai ficando mais normal. Quanto mais ela fala, mais sua voz se parece com a minha, e fico com mais frio na barriga. Ela aprende tudo numa velocidade assustadora. Ela só me ouviu dizer algumas palavras e está me copiando direitinho.
Por que ela está fingindo que me conhece? Com certeza, eu me lembraria de alguma garota boba desse jeito.
— Você não precisa ir para casa, mas não pode ficar aqui — digo, indo para a porta.
— Eu já falei. Eu já estou em casa.
— Você não está em casa. Eu estou em casa. Este é o meu quarto. — Minha voz fica uma oitava mais alta. Meu irmão conseguiria me escutar se eu gritasse, né?! Mas e se ele estiver ouvindo música no iPod?
— Nosso quarto — ela rebate. Ela me olha e então me copia, cruzando os braços e deixando as pernas afastadas na largura dos ombros.
Chega. Já estou assustada o bastante. Dou outro passo para trás e pego a régua de novo.
— Olha, se você não sair daqui em trinta segundos, vou chamar a polícia.
— Por quê? Você ainda é apaixonadinha pelo guarda Barrows?
Arregalo os olhos. Nunca contei aquilo para ninguém. Quando eu tinha dez anos, tive uma paixonite por um guarda de vinte e dois anos que ficava na faixa de pedestres em frente à escola. Eu cruzava a rua várias vezes por nada e devia deixar o cara maluco da vida. Eu nunca contei isso nem para a Nicole. Afinal, era um mico gigante.
— Como é que você sabe disso?
— Você falava que ia se casar com ele e morar em uma casa com uma cerquinha branca. E que ele ia proteger...
— Eu sei que falei isso, mas como é que você sabe?
Ela franze as sobrancelhas e me lança um olhar tipo “dããã”. Por que eu é que estou me sentindo idiota, se é ela quem está vestida como uma boneca gigante?
— Você tem de me reconhecer. Eu fui a sua melhor amiga por uns bons anos. Eu sei de tudo. Ou você se esqueceu de mim depois de me enfiar naquela caixa?
Quando suas palavras finalmente fazem sentido, começo a rir, girando a cadeira e dando tapas nela.
Que ótimo. Quem será que convenceu essa menina a fazer isso?
— Você acha mesmo que é a Trapinho, né?
Ann tenta dar risada, me copiando direitinho. O cabelo na minha nuca fica arrepiado. É como ouvir a minha própria risada em um gravador.
— Não estou fingindo, Kayla. Sou eu!
— Não é, não. A Trapinho é uma boneca, ô bobinha. Ann suspira.
— Além do guarda Barrows, você também era apaixonadinha pelo carteiro, pelo menos até ele ser substituído por aquele cara grisalho com os sapatos que faziam um barulhinho irritante. E você quis ser uma palhaça de rodeio por uns cinco minutos, até ver um touro de perto. Além disso, o nome do meio do seu pai é Preston Lewis, o que você sempre achou ridículo porque são dois nomes, e não um, e os dois parecem sobrenomes distintos. A sua cor favorita é pêssego, apesar de você odiar pêssegos porque a casca peludinha lhe dá nojo. No sexto ano, você descobriu que tinha ficado menstruada porque...
— Chega! — peço, tapando os ouvidos. Não há necessidade de reviver justo essa lembrança. A cada revelação de Ann, meu coração batia mais rápido, e agora estava pulando no peito como um bicho doido. Ela sabe de coisas que eu nunca contei para ninguém, nem para a Nicole.
E não sou tonta a ponto de escrever um diário ou alguma coisa assim. Então, ou ela tem morado naquele guarda-roupa e ouvido meus segredos nos últimos seis anos ou...
Não. Isso é totalmente, completamente impossível. Tem de existir uma explicação para isso. Uma explicação lógica.
— Olhe, eu tenho de ir para a escola. Você pode voltar para o guarda-roupa e ficar sentada lá, conversamos quando eu voltar.
Talvez se eu conseguir mandá-la de volta para o guarda-roupa e trancar a porta, possa sair correndo do quarto e pedir para o meu irmão que a tire daqui. Ou talvez eu deva mesmo chamar a polícia. Mas não tenho tempo para decidir qual é a melhor opção.
Ann dá de ombros, vira-se e volta para o guarda-roupa. Quando a porta se fecha e ela some de vista, quase consigo me convencer de que imaginei aquilo tudo. Mas quando vou até a porta e olho pela frestinha, vejo que ela está sentada no chão, no meio das minhas roupas, trançando o cabelo. Atrás dela, eu vejo a caixa branca onde a minha boneca ficava, e que agora está vazia.
Engulo em seco e dou um sorrisinho, fecho direito a frestinha da porta.
Ai, se meu guarda-roupa fosse como um cofre de banco e eu pudesse trancá-la ali dentro para sempre...
Alguma coisa me diz que não será fácil me livrar dela.

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