Quando a aula acaba, não estou a fim de ir para casa. Ultimamente, aquele lugar está
mais para zona de desastre, e se meu irmão ainda não tiver acabado de recolher todos aqueles chicletes, eu é que não vou aparecer a tempo de ajudar.
Evitar as situações sempre foi meu melhor mecanismo para lidar com as coisas. E por que mudar agora?
Então, tomo uma decisão corajosa: vou ao evento de motocross do Ben hoje à noite. Não é nada de mais... É pertinho de casa e eu chego lá andando em meia hora. Eu sei que, se for, não vou pensar em nada enquanto ele estiver pilotando, e é exatamente disso que preciso.
Vou fazer o exame para tirar minha carteira de motorista3 na sexta-feira. Com um pouco de sorte, será a última vez que terei de sair a pé pela cidade. Principalmente se eu puder usar a Ranger velha do meu irmão. Então por que não aproveitar ao máximo meu último dia de pedestre e sair para uma caminhada legal hoje à noite?
Esse evento vai rolar em uma pista de motocross de um cara, cheia de rampas e morros gigantes e outras coisas malucas que gente normal não se atreveria a percorrer, mas que o Ben domina com um pé nas costas. Lá tem uma arquibancada com umas dez fileiras, cada uma com uns dez metros de comprimento, então tem lugar para uns cem espectadores; e hoje vai estar pelo menos com metade da lotação. As noites de quarta são abertas para os pilotos praticarem sem ter de pagar uma mensalidade animal, nem se preocupar com competições. Em geral, eles só vão lá para curtir, e o pessoal vai assistir.
Está calor, mesmo sendo outono; paro em um posto de gasolina no caminho e compro um refrigerante. Vai muito bem com o pote cheio dos famosos brownies de chocolate com menta da Nicole. Ela cumpriu a promessa e fez umas fornadas só para mim, por ter perdido a minha festa. Eu ainda estou brava com ela, mas os brownies já ajudaram a curar um pouco da minha raiva.
Ando ao longo do acostamento de terra batida dessa estradinha de interior, meu lanchinho na mão, sentindo-me relaxada pela primeira vez nesta semana. É difícil ficar preocupada ao andar ao lado de moitinhas cheias de rabos-de-gato, cercadas por campos gramados repletos de cavalos e vacas, e com o sol brilhante e quente nessa cena que pode ser a última nesse outono. Eu ando debaixo de uma fileira de árvores de bordo, suas folhas cor de laranja formam uma camada tão grossa no chão que chega até as minhas canelas.
Era disso mesmo que eu precisava: uma noite longe de todo mundo e pra largar mão de me preocupar com tudo.
Passo por entre os carros parados no campinho que também serve de estacionamento, meu All Star preto afundando na lama. Tem mais caminhonetes que carros aqui, numa proporção de pelo menos três para um. Eu não deveria achar isso interessante, mas acho. Em Enumclaw, as caminhonetes sempre reinarão supremas.
Vou para a arquibancada de madeira, passando entre um monte de estranhos, e acho um lugar para me sentar onde a tinta branca não está descascando. Os invernos nessa região do Noroeste Pacífico4 não têm dó de estruturas assim; no entanto, em um dia de outono com sol, como hoje, eu acho que jamais gostaria de morar em outro lugar.
Os pilotos já começaram com suas gracinhas. Um cara numa moto dois tempos laranja bem “cheguei” decola de um morro de terra gigante e passa por cima de vários pilotos que estão lá embaixo, protegidos por seus capacetes, conversando.
É fácil encontrar o Ben: ele tem uma moto amarela brilhante, usa um capacete azul e uma jaqueta com um desenho preto e azul-royal. O número dele é nove, que tem sido o meu número favorito desde o dia em que fui com a Nicole ver uma corrida dele.
A Nicole sempre diz que essas noites de quarta-feira, quando o Ben não está competindo, demoram horrores e são um saco, barulhentas, sem falar na lama. Ben não se importa se ela não vai, porque eles não podem conversar mesmo.
E isso me mata: eles têm tão pouco em comum. Tudo bem que me esforço para não ficar por perto quando os dois estão juntos, mas ao mesmo tempo não entendo esse relacionamento.
Eu nem sei se ela o ama tanto quanto eu o amo. E se ela ama o Ben mesmo, por que não está aqui?
Apesar de reconhecer duas pessoas da escola sentadas na primeira fileira, elas nem olham para mim, nem dizem nada. A Nicole nunca saberá que estive aqui, porque ela jamais apareceria do nada, e o Ben está de capacete e correndo a zilhões de quilômetros por hora.
Ben sobe na moto e dá partida com o pé na primeira tentativa. A moto ganha vida, com um ronco profundo que mostra que ele instalou com muito esforço um monte de peças picaretas. Eu sei, pois ele fala sobre isso na aula de Matemática. Eu acho que sei tanto sobre a moto dele quanto ele. Fico pensando se a Nicole sabe que ele passou o fim de semana passado inteiro colocando uma forquilha nova. As botas dele vão quase até os joelhos, com um desenho que combina com a jaqueta e a calça. Ele está usando óculos de proteção sobre o capacete, então não consigo nem ver seu rosto.
Não tem problema que ninguém mais o reconheça. Eu sei exatamente como ele é por baixo daquele equipamento todo. Já decorei.
Ele decola de uma rampa que deve ter pelo menos uns trinta metros, então cai com a roda da frente e aumenta a marcha quando o próximo morro se aproxima à sua frente. Segue ao redor do meio círculo, subindo na parede de terra, até ficar quase de lado: as únicas coisas que o seguram são a velocidade e a força centrípeta. Quando sai da curva, já está em terceira e a caminho de uma série de pequenas montanhas.
Ele salta a primeira e passa sem tocar o chão sobre as próximas duas, e então aterrissa e acelera de novo. O morro à sua frente é pontudo e anguloso e, quando ele bate na pontinha dessa rampa, a moto voa.
Ben tira os pés dos pedais e joga as duas pernas para o lado direito da moto, e então faz uma tesoura muito doida. Ele consegue fazer a perna voltar direitinho para o lado esquerdo e já está com uma de cada lado da moto quando atinge o chão de novo. Suas pernas malhadas se dobram a cada salto.
Meu coração voa com ele. Não consigo acreditar que ele consegue fazer tudo isso e não morrer de medo ou ter um ataque por causa da adrenalina. Fico pensando se um dia ele me deixaria pilotar sua moto, ou se me mostraria como é se sentir sem peso nenhum por aqueles segundos preciosos.
Ele só diminui a velocidade de leve, ao fazer mais uma curva, e parte para a próxima seção da pista: três rampas enormes em seguida. Uma após a outra, ele vai até a ponta, voa, aterrissa e corre por mais uns dez ou doze metros, e então decola novamente. Às vezes, faz uma manobra legal, tipo empinar a roda da frente ou soltar as duas mãos do guidão quando está no ar.
Eu nem percebo que estou segurando a respiração, até que meus pulmões começam a gritar pedindo oxigênio, e tenho de respirar fundo por um bom tempo. Não sei como a Nicole pode ficar de saco cheio disso aqui.
Ben sobe mais um morro e joga a moto de lado por um minuto — de propósito —, depois a endireita de novo, bem a tempo de aterrissar. A galera berra e bate palma. Eu fico de pé com eles também e grito com toda a força, batendo palma e assobiando.
Ben é um dos melhores pilotos da região. Ele diz que não quer fazer as corridas mais profissionais ainda, mas bem que poderia. No primeiro dia da aula de Matemática, vi todos esses adesivos no fichário dele e fiz um monte de perguntas. Ele falou que a loja de motos da cidade dá todas as peças de que ele precisa, desde que eles possam colar o adesivo da loja na moto dele e também o logotipo em sua jaqueta. Eu acredito nisso. Ele é bom de verdade. Meu celular toca, e atendo sem pensar:
— Alô?
— Oi, Kayla! — diz a Nicole.
Meu coração pula do meu peito, e aterrissa em algum lugar perto dos meus pés. Eu esqueci totalmente que a gente se encontraria hoje à noite para estudar aquele desenho das células. Se eu sair daqui neste segundo, posso chegar em casa a tempo de ir encontrar a Nicole. Talvez.
— Oi — respondo. Cubro o bocal do telefone com a mão. Será que ela está ouvindo o barulho das motos ao fundo? Putz, isso é tão suspeito.
— Minha consulta no dentista terminou mais cedo. Você ainda quer vir aqui em casa?
— Dentista? Eu pensei que você tivesse falado que era uma consulta médica. Ela fica um instante quieta.
— Claro. Mas dentista também é médico, né? Só que um tipo diferente. Faço cara de conteúdo. Acho que faz sentido. Mas é meio estranho.
— Ah. Bom... é... hummm... Eu estou meio ocupada agora, sabe? Que tal amanhã?
A culpa está se inflando e preenchendo o meu estômago. Cubro o bocal do telefone com a mão de novo quando uma moto faz a curva e vem em minha direção. Seguro a respiração quando o piloto acelera.
— O que foi isso?
— O cortador de grama — respondo rápido. Rápido demais.
— Você está cortando a grama? Mas a sua mãe não paga uma pessoa para fazer isso? Fecho os olhos e respiro fundo.
— Pois é, a minha mãe falou que esses caras de paisagismo não estavam dando conta do recado. Então... eu me ferrei. A gente pode estudar aquele desenho da célula amanhã? — pergunto de novo.
— Não posso. A gente vai ter de fazer isso no fim de semana, sei lá.
Eu faço que sim com a cabeça, e então me lembro de que ela não está me vendo.
— Claro, sem problemas. A gente se vê na escola amanhã, então.
Bem na hora em que desligo o telefone, mais um grupo de pilotos passa voando em frente à arquibancada.
Isso é tão... errado. Quero dizer, estou escondendo o barulho das motos da Nicole: tem alguma coisa errada aqui, né? Se eu estou me sentindo culpada, é porque sou uma mentirosa e ainda fico de olho no namorado dela.
Eu não deveria estar aqui paquerando o cara que nunca vou poder ter. Putz, até quando vou fazer isso comigo mesma? Por quanto tempo mais vou ficar me torturando e babando por ele de longe, totalmente obcecada pelo menino, enquanto tento esconder tudo isso da minha melhor amiga?
Não estou mais a fim de ficar aqui.
Tenho de parar com isso. Tenho de parar de querer ficar com ele. É tão idiota me passar por isso! Talvez eu possa tentar aquele lance de “longe dos olhos, longe do coração”. Talvez eu deva tentar me curar dessa paixonite e deixar a Nicole ficar com ele em paz, e esquecer que Ben Mackenzie existe.
Isso acaba aqui. Agora.
Eu me levanto e desço a arquibancada, escolhendo uma rota segura entre os espectadores. Estou na metade da descida quando todo mundo ao meu redor se levanta, e uma onda de risadas invade o ar e me cerca.
Por um segundo, acho que deve ter alguma coisa ridícula grudada na minha bunda e tento limpar minha calça, discretamente.
Mas então percebo que está todo mundo olhando para a pista. E apontando.
Olho para a frente, e meu estômago congela. “Ah, não!”
É o pônei. O maldito pônei cor-de-rosa.OBS: 3. Nos Estados Unidos, os jovens podem dirigir a partir dos dezesseis anos. Com essa idade é permitido a eles prestar o exame para obter a habilitação (carteira de motorista). (N.E.)
4. Enumclaw é uma cidade localizada no Estado norte-americano de Washington, no Condado de King e Condado de Pierce. (N.E.)