Cap 1

1.1K 110 12
                                    

"Não existem razões para o desamor. Assim como o amar sempre será um incógnita."

Lorena

O dia amanheceu cinzento. O sol não tinha dado às caras. Fui até o quintal de casa, olhei para toda aquela bagunça de coisas jogadas, latas, papelão e todo o tipo de lixo reciclável.
Olhei para o céu, me certificando de que o sol era meu amigo. Ele não sairia hoje. Estava de luto assim como eu.
Escutei alguns passinhos e olhei com um sorriso. Era Lucas, meu irmão de apenas três anos.
- tatá- ele chamou.
- vem aqui meu amor- fui ao seu encontro e o levantei nos ares, rodando seu corpo, segurando seus bracinhos enquanto ele gargalhava.
Apertei-o num abraço forte, beijando seus cabelos negros como os meus.
- vou cuidar para que você seja feliz. Prometo que venho te buscar.
Lucas não compreenderia aquelas palavras, mas eu as disse mesmo assim. Quem precisava de uma promessa para continuar na verdade era eu!
- Lorena- minha mãe gritou de dentro do barraco que chamávamos de casa- tem uma mulher elegante aí fora te esperando. Quer levar você até um salão e depois comprar roupas.
Todo bom produto precisa de uma boa embalagem. Lorena Santiago era um produto, vendido a um preço que consideraram justo.
Considerei a possibilidade de fugir a alguns dias quando soube da notícia. Só que quando você é comprada por traficastes, sua alma passa a pertencer ao diabo, não tem volta. Não andaria nem três quarteirões entes de me acharem.
Dei mais um abraço apertado no meu irmão e sai para encontrar meu destino.
Meu pai não estava em casa, me poupando de uma despedida falsa. Minha mãe me olhou com pena, deixando escapar algumas lágrimas de remorso.
- me desculpe, filha. Não tínhamos mais o que fazer. Ou era isso ou morreríamos todos.
Não expressei nenhum sentimento. Não disse uma palavra. Abri a porta do que um dia foi a minha casa e sai, sem olhar para traz.
A mulher em questão, me esperava encostada em um carro de luxo. Deu uma averiguada em mim, olhando de cima em baixo. Abriu a porta de traz e fez sinal para que eu entrasse.
Obedeci.
No banco da frente, um homem moreno, vestindo um terno preto, estava na direção e a estranha sentou ao seu lado, no banco do passageiro.
Ninguém disse nada quando o carro começou a se movimentar.
Não tinha ideia de onde estava indo, só sabia que tinha sido vendida, por mil reais e três vidas, a do meu pai, minha mãe e Lucas. A minha não foi garantida.
Encostando a cabeça no vidro, me lembrei de quando comei a ter noção da minha beleza e como achei isso especial no começo. Na escola, os garotos sempre me paqueram, eu era a preferida deles em tudo. Comecei a odiar minha beleza quando perdi todas as minhas amigas na adolescia. Todas me isolavam porque alegavam que eu monopolizava a atenção dos garotos.
Com o tempo passei a odiar o que via no espelho, odiar a forma como era vista pelos amigos do meu pai quando vinham fumar maconha ma minha casa e a gota d'Água veio a primeira vez que passaram a mão na minha bunda na frente do meu pai e riram juntos.
Aprendi a nunca usar maquiagem, descobri que os cabelos presos e sem corte muitas vezes ajudavam, comecei a usar roupas largas que não marcavam o corpo.....por fim vivia em uma guerra constante com o que o espelho refletia.
No entanto, por mais que fizesse, algo sempre escapava aos olhos das outras pessoas e a última punhalada do destino veio a uma semana atras quando escutei meu pai me negociando como um produto.
- Eu não tenho nada Fera, não consigo o dinheiro pra pagar o Bonde- se referindo ao bonde, dono do morro.
- mano ele nao quer saber. Você comprou o bagulho e agora vai pagar com a vida se não tiver a grana. Ele já avisou que é para matar todos da casa e queimar tudo depois.
Me escondi perto da porta, tentando escutar o final da conversa. Sabia que uma hora isso aconteceria. Meu pai cada vez mais usava drogas e trabalha cada dia menos. Minha mãe fazia uns bicos passando roupa e eu ajudava fazendo algumas faxinas. O que ganhávamos não era suficiente nem para nos alimentar descendente, quanto mais para comprar drogas.
- Bonde está aberto a negociações. Pediu que eu falasse na real o que ele quer a troco da dívida.
Não respirei mais quando escutei aquilo. Eu sabia que não viria coisa boa.
- então diz o que ele quer porra!-meu pai falou.
- Lorena! Bonde quer a posse da Lorena.
Um silêncio se seguiu. Sentei no chão, incapaz de aguentar o peso do próprio corpo, já sabendo a resposta que não demorou a vir.
- se não tem outro jeito. O que ele vai fazer com a minha filha?
- não vai dar satisfações. Nem garantiu a vida dela. Mas é isso ou todos mortos. Se ela fugir, bonde mandou avisar que a encontra no inferno e de presente envia o seu filho em uma mala, picado.
Lágrimas de desespero começaram a rolar pelo meu rosto. Não tinha escapatória. Meu pai cavou a minha cova e só me restava deitar nela.
O que mais doeu foi perceber o alívio no seu rosto quando Fera se foi. Eu não tinha valor algum pra ele. Meu único valor era para pagar a dívida.
Naquela noite minha mãe discutiu com ele por horas, tentando me defender, mas por fim ela também percebeu que não tinha jeito e aceitou a situação.
- Lorena, você vai descer aqui. Tem alguém te esperando dentro dessa casa- a mulher falou me tirando dos devaneios.
O carro foi estacionando em frente à uma velha casa ainda dentro do favela.
Abri a porta e caminhei até a casa, tremendo, desesperada.
Bati na porta. Depois de alguns minutos, uma senhora abriu e fez sinal para que eu entrasse.
Fechando a porta, ela foi andando até um quarto que estava com a porta aberta.
- entre aqui. Tire suas roupas e vista uma camisola que está em cima da cama.
Tentei conter meu desespero. O que viria a seguir me apavorava.
Nunca tinha namorado ou dormido com algum rapaz. Só que a realidade do que acontecia quando uma mulher era abusada, estava escancarada no mundo que eu vivia, nos becos que passava a noite e escutava os gritos de desespero.
A tarefa de me tirar a roupa estava quase impossível. Meus dedos não me obedeciam. Agradeci por quem quer que fosse vir, estava demorando.
Estranhei a camisola branca e de mangas, que lembrança mais a de um hospital.
Quando terminei de vesti-la, uma mulher que aparentava uns quarenta anos entrou.
- deite na cama e abra bem as pernas.
Não me movi.
- não vou fazer nada com você- ela falou ao me ver relutante- só vou atestar sua virgindade. Sou médica.
Como um bom produto, ela averiguou, mediu minha pressão, temperatura, fez exame de glicemia e me pesou, anotando tudo em um papel.
- pronto. Está liberada. Pode se vestir e entregar esse papel para a Rose.
- quem é Rose?
- aquela mulher que te trouxe aqui.
Me vesti rapidamente querendo sair logo daquele lugar. Me sentia suja.
Entrei no carro que me aguardava e entreguei o papel a Rose como foi pedido.
Desta vez, o percurso foi muito mais longo e deixamos para traz a pobreza da favela para adentramos nos bairros mais nobres do Rio.
Me deixaram em um salão de beleza, onde tudo aquilo que eu escondi foi exposto. Meus cabelos cortados, unhas feitas, maquiagem.....
Lá mesmo me entregaram uma roupa que eu deveria vestir. Um shorts jeans todo rasgado que não cobria nada das minhas pernas, de tão curto, uma regata preta que deixava minha barriga à mostra e estampava a palavra sexy e um par de sandálias pretas com salto agulha.
Olhei no espelho e não reconheci o que vi.
Me senti muito mais que um produto, me senti uma prostituta. Eu sabia que era isso que eu seria até o final da noite.
Toda uma vida jogada para a sarjeta, todo os meus sonhos se esvaindo a troco de continuar viva.
Pensei que se não fosse para poupar a vida do meu irmão, hoje, a morte seria meu melhor presente!

Inexplicável amor  (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora