Capítulo 5 - Dias quentes

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Benajah

O caminho até Hobblemourne era longo. Muito longo. Após levantarem acampamento uma ou duas vezes, o grupo de soldados teria de contornar toda a gigantesca Floresta Paxum. Evitar a trilha aumentaria em quase uma quinzena todo o trajeto até a base. Porém, pelo o que se ouvia, uma quinzena era um preço pequeno a se pagar. Muitas estórias e relatos assustadores cercavam aquela selva. Boatos diziam que coisas desconhecidas passaram a habitar o centro das matas úmidas nos últimos anos. Uma ou outra pessoa sempre comentava que conhecia alguém, que dizia ter visto homens e mulheres entrarem na floresta e nunca mais voltarem. Essas estórias faziam os pelos da nunca de Ben arrepiar cada vez que ele se atrevia a desviar os olhos para observar os mistérios da floresta. Até mesmo durante o dia, ela era repleta de escuridão e segredos. Os troncos das árvores eram largos e cobertos de musgos, os cipós compridos se emaranhavam nos galhos grossos e nas folhas verdes gigantes, os insetos rastejavam por entre a vegetação e cada ponto aonde a luz não chegava passava a impressão de que algo sombrio observava os soldados ao longo de seu caminho. Ben só queria apertar o passo. Mas eles levariam vários dias para chegar à base, apertando o passo ou não.
- Ben, esta tudo bem? – perguntou Caesar de cima de sua égua, enquanto o distraído menino buscava ver além da escuridão da floresta.
Ele retornou os olhos para frente rapidamente.
- Sim, claro – disse engolindo seco.
A chuva havia parado alguns dias atrás e algumas nuvens quase cinzas bloqueavam Ohr. O mormaço, no entanto, queimava a pele daqueles que vieram menos protegidos. O calor era forte e destacava o cheiro úmido de musgo e o perfume venenoso das flores que vinha da floresta e enchia a cabeça dos menos corajosos de medo.
Horas depois, Ohr se pôs por detrás das árvores e a luz prateada da lua tomou os campos dourados por onde os soldados marchavam. Um grande acampamento foi levantado rapidamente pelos soldados. O dia quente deu lugar a uma noite úmida, mas agradável.
Alguns homens haviam juntado alguns galhos e construído uma fogueira pequena, para iluminar a noite escura. Ao redor dela eles colocaram alguns cepos para se sentarem.
- A gente pode se sentar aqui? – perguntou Ben abrindo seu sorriso amigável enquanto Caesar chegava logo atrás.
- Claro, sentem-se – respondeu um homem que aparentava ter cinquenta e poucos anos. Ele tinha a pele clara e levemente enrugada, quase não possuía cabelos na sua cabeça oval, mas tinha uma barba curta completamente branca, como neve recém caída, olhos azuis-claros que passavam um ar de simpatia. Era um homem forte. Sua barriga caía sobre as coxas e seus braços eram grandes e compridos. Mesmo sentado, dava para perceber que era alto, mais do que Caesar, porém um pouco menos que Ben. Trajava uma camiseta branca sem mangas feita de algodão e calças marrons também de algodão, só que cerrado. Usava os coturnos que havia recebido com os outros soldados na Grande Capital. Também estava usando um cinto e nas laterais de seu abdômen, dava pra se ver os canos grossos de duas armas que estavam colocadas para dentro das calças.
Ben acenou com a cabeça e sorriu. Puxou um cepo e se sentou. Caesar fez o mesmo.
- Me chamo Rolo Simt – respondeu o homem – como se chamam? – perguntou olhando para o lenhador.
- Me chamo Caesar e este é Benajah - apontou o polegar para o amigo que estava ao seu lado.
Antes que Rolo pudesse dizer qualquer coisa, um dos outros dois homens se levantou e se apresentou. Ele observou Caesar e Ben com certo desdém. Era mais jovem que Ben, tinha os braços e pernas finas, o cabelo loiro acastanhado e passava, por algum motivo, um ar sinistro vindo de seu rosto fino e esguio.
- Eugene Stokes, de onde são? – disse olhando para os dois ao erguer seu queixo fino.
- Eu sou de Goldenleaf e Caesar de Northbury – responde ainda mantendo o sorriso e esticando o braço para cumprimentá-lo – e você?
- Sou da Grande Capital – ao falar, estufou o peito como se fosse algum tipo de rei ou monarca e ignorou o gesto amigável de Ben – interioranos para variar, só tem esse tipo de gente aqui – murmurou. Ele deu as costas e abaixou para por lenha na fogueira.
- Não ligue para ele – disse Rolo ajeitando seu cinto – ele age como se ter nascido na capital mudasse o que somos nessa merda de guerra – sorriu.
- E quem é você? – perguntou Ben para o outro homem que estava sentado um pouco mais longe na fogueira. O homem tinha seus quarenta, quarenta e cinco anos. Seus cabelos eram compridos e grisalhos principalmente no topo da cabeça, amarrados atrás da cabeça na direção da testa com um elástico, enquanto o resto lhe caía sobre as costas até a altura dos ombros. Seus olhos eram escuros como o cabelo devia ter sido há alguns anos atrás. Tinha o rosto quadrado e machucado na bochecha e embaixo do queixo. A da bochecha era um corte comprido e vermelho e a no queixo, provavelmente uma pancada que recebera. Era da altura de Caesar, um pouco menor talvez. Era magro, mas não como Eugene.
- Me chamo Aaron – respondeu enquanto talhava um galho comprido em uma lança, usando uma faca pequena de aço enferrujado. As lascas de madeira finas caíam no chão e formaram um monte aos seus pés.
A voz grave e seca do homem deixou Ben meio assustado e como Aaron não disse mais nada, ele se virou novamente para Rolo. O homem lhe ofereceu um pedaço de carne que estavam assando em espetos de ferro sobre a fogueira.
- Então, ouviram falar o que estão falando da floresta? – perguntou Rolo mordendo ferozmente um pedaço de coxa de um bicho qualquer que haviam caçado mais cedo e abrindo seu sorriso cheio de carne entre os dentes, quase que desafiando a coragem dos dois com a expressão.
- Ouvimos alguns comentários quando passamos pelos vilarejos – comentou Caesar.
Ben desviou o olhar, por cima dos ombros. Atrás dele estava a floresta. O mistério e o silencio pairavam entre as copas das árvores, quase como algo físico. O rapaz estremeceu e preferiu voltar os olhos para a fogueira. Rolo percebeu que Ben estava no mínimo perturbado.
- Acha que tem alguma coisa na floresta rapaz? – perguntou.
- Não sei – respondeu Ben – talvez – estremeceu.
- Realmente, ela esta mais sinistra do que das outras vezes que passei por aqui – disse Eugene – falam que quando a névoa branca nas copas das árvores se torna vermelha, não há muito mais que se fazer. Ela chega – o rosto fino do rapaz foi tomado pela luz da fogueira.
Ben estremeceu mais uma vez e abriu a boca devagar para perguntar.
- Ela quem?
- A chamam de Caçadora. Ela é horrenda e escamosa, fogo corre por suas veias e de suas garras pingam gotas ferventes de sangue das vítimas. Ela é enorme, mais alta que a maior árvore que você encontraria na floresta. Seus cães de caça são maiores ainda. Não tem c...
- Pare de assustar o garoto – disse um homem ao puxar um cepo e se sentar ao lado de Rolo. Sua voz era bem rouca, mas ainda sim suave. Seu rosto era redondo e um pouco mais delicado do que qualquer homem. Tinha os olhos verdes bem escuros, quase pretos e o cabelo era castanho e parecia comprido, mas não havia como saber pois estava coberto por uma boina bege. Estava usando uma gabardina também bege, só que mais escura, porém não a do uniforme militar. Por baixo, uma camiseta de lã preta que devia estar cozinhando sua pele pelo calor, mas ele não parecia nem suar. Também trajava uma calça preta simples de algodão cerrado.
- Relaxe, são apenas estórias, não é mesmo Ben? – disse Eugene encarando-o com seu sorriso fino.
- Desse jeito eles vão se mijar cada vez que ouvirem um corvo grasnar – disse Rolo soltando uma gargalhada e dando um tapa no ombro de Caesar.
- Revistei tudo que estava na mesa do general – disse o homem rouco que havia se sentado há pouco.
- E o que achou? – perguntou Rolo enquanto colocava a coxa que estava devorando em um balde e se voltava para o homem. Ele parecia estar esperando por algo importante.
- Não achei nada com seu nome – lamentou.
A expressão outrora entusiasmada de Rolo deu lugar a decepção clara.
- Aconteceu algo? – perguntou Ben, buscando consolar o homem.
- Esperava que Gil pudesse ter encontrado cartas da minha família pra mim – comentou cabisbaixo – não ouço nada sobre eles há muito tempo.
- Por que ele foi em seu lugar procurar as cartas? – perguntou Caesar curioso.
- O general não gosta muito de Rolo, nem de mim – disse Gil – ele não sabe que eu estive lá.
- Gil aqui é o cara mais discreto que conheço – Rolo sorriu novamente e colocou um braço em volta do amigo – ele conseguiria entrar na sua cabeça sem que você percebesse, se as entradas fossem grandes o suficiente, claro - Gil deu de ombros e sorriu simpaticamente, enquanto Rolo gargalhou da sua própria piada sem graça e sem sentido.
Após alguns minutos conversando e dando risadas, os soldados entraram nas tendas e foram dormir. No dia seguinte, as nuvens haviam se dissipado e Ohr tomava o céu azul. Ben levantou-se bem cedo para tomar banho no riacho que ficava entre a floresta e a estrada, antes que levantassem o acampamento. O rapaz teve seus receios para entrar no riacho, mas ainda sim, entrou. Tomou o banho mais rápido de sua vida e saiu logo. Quando voltava para sua tenda, percebeu que Caesar e os demais não estavam em suas tendas e uma multidão de soldados se formava ali perto. Ben caminhou passos largos até onde todos estavam. Uma roda se formava. No centro, um homem de feição quadrada e áspera, como a de um comandante, estava estirado no chão, de bruços, com os braços abertos. Era o general, com algo estranho e vermelho fincado nas suas costas.
Aaron, Eugene, Rolo e Gil estavam próximos, mas pareciam não conseguir se aproximar do homem que ainda gemia de dor, assim como os demais soldados que viam a cena.
Ben não pensou duas vezes e empurrou todos que estavam a sua frente para se aproximar. Ele entrou no circulo e um odor fumegante de carne podre entrou violentamente pelas suas narinas. Quanto mais ele tentou se aproximar, mais o cheiro queimava e ardiam seus olhos.
- Não se aproxime – disse Aaron, colocando a mão no peito de Ben, impedindo que ele se desse mais um passo. O rapaz se vira para trás e vomita. Aaron se mantém em pé a olhar o general caído.
Caesar chegou também ao local protegendo o nariz e os olhos com uma mão. Ele trazia consigo na outra, um galho comprido, bifurcado na ponta, que havia pegado na margem do riacho. Ele o segura com cuidado e tenta alcançar as costas do general que nem parecia mais respirar. Por cima das vestes militares do homem, bem acima da base da coluna, estava um fino espinho vermelho que havia perfurado sua pele. As roupas ao redor estavam queimadas, no formato de um circulo quase perfeito.
A pele do general parecia derreter aos poucos quando Caesar conseguiu remover o espeto com o galho empurrando-o. Ao tocá-lo, a madeira ficou em brasa e uma parte da carne das costas do general, do tamanho de uma maça saiu junto, sem muita dificuldade. A carne removida começou a arder e um pouco de fumaça rodopiou no ar a sua volta.
Caesar empurrou o espeto para bem longe, deixando um caminho queimado nas gramas douradas. Ainda sim, era possível sentir o cheiro fumegante que ele exalava.
O calor diminuiu e Ben se aproximou e se ajoelhou ao lado do general. O homem estava caído no chão com um buraco de queimaduras nas costas que ora cheirava a carne queimada, ora cheirava a podridão. Uma parte pequena do osso de sua coluna estava exposta e o homem buscava ar para gritar de dor. Ben tentou tocar seu ombro para chamá-lo, mas sua pele ardia como metal que fora exposto ao fogo. Seus olhos estavam brancos, vazios e derramavam lágrimas que evaporavam em sua pele que destorcia o ar a sua volta, como o concreto das calçadas faz num dia de calor.
- Me... m... me mata... por favor. – sussurrou o homem, que movia seus braços e pernas, com a força que lhe restara. Não era muita e os movimentos eram mínimos.
- Calma, vamos chamar ajuda, aguenta firme – disse Ben, tentando consolá-lo. Caesar voltou mais uma vez ao lugar onde tudo havia ocorrido.
- Que merda foi essa? – perguntou Caesar esperando que o amigo soubesse. Ele acenou com a cabeça para os lados, tão chocado quanto todos ali.
- Foi a Caçadora – interrompeu Aaron, enquanto observou o corpo do general no chão.
Caesar e Ben trocaram olhares aflitos e Ohr ardeu no céu mais do que em muitos anos.


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