O capuz encobria todo o meu rosto, facilitando minha passagem pelos corredores do palácio. Todos achavam que eu era alguma plebeia com seu filho. Mal sabiam que era sua rainha.
Sempre me orgulhei de saber cada porta secreta daquele local e agora aquele saber era precioso para perambular sem ser percebida.
— Acalme-se, meu pequeno tritão – sussurrei para meu pequeno tesouro que começava a acordar.
Adentrei a pequena porta secreta que ficava escondida atrás de um quadro de Poseidon. A partir daquele ponto o breu era total, mas eu sabia muito bem onde pisar. Fazia este caminho desde pequena quando queria ficar sozinha com minhas preces e pensamentos.
O breu deu lugar à claridade do local que no passado foi uma câmara para os maiores sacerdotes de Atlantis. Agora o lugar estava deteriorado devido a uma guerra que ocorrera um século atrás, mas não deixava de ter sua beleza. Árvores aquáticas rodeavam o lugar, flores de diversas cores pintavam o chão que ainda tinha rastros do concreto de sua antiga construção, mas o que importava mesmo naquele local era uma árvore de espécie única que estava no meio de tudo. A árvore da vida. Ela era branca, desde seu tronco até sua última folha. Reluzia criando vida própria. Era a própria vida.
Muitas eram as histórias sobre ela. Uns diziam que ela fora umas das sereias de Gaia que com sua bondade infinita, na hora da morte, transformara-se em árvore. Outros diziam que ela fora gerada pela própria Gaia para fortalecer nossa raça. A história dela era incerta, mas certamente nos fortalecia. Suas folhas tinham o poder de curar os mais doentes, os mais machucados dos seres aquáticos. Todos sentíamos o poder emanar dela e os mais sensíveis sentiam até mesmo uma voz. Como se realmente ela fosse uma pessoa. Para mim era.
Só pessoas do alto escalão podiam vê-la e só os sacerdotes podiam retirar suas folhas. Eu e minhas irmãs fomos apresentadas a ela quando ainda éramos bebês. Sempre senti uma conexão com ela como se fizéssemos parte uma da outra. E agora necessitava dela como nunca.
Sentei-me em suas raízes e recostei-me em seu tronco. Respirei fundo sentindo seu cheiro que não era parecido com nada que havia sentido. Toda vez que a visitava era um cheiro diferente e indescritível.
— Por favor, salve meu filho – supliquei fechando os olhos e aninhando ainda mais a pequena vida.
Senti ela me envolver. Quando abri os olhos novamente, estava em um espaço em branco. Havia uma mulher trajada de branco, negra e com cabelos volumosos. Brincava com meu filho que dava gritinhos de felicidade. Ele estava corado, saudável pela primeira vez. Meu coração transbordou de felicidade.
Eu nunca a vira em forma humana e nunca tive uma experiência tão real como aquela. No máximo sentia a árvore envolver-me e falar comigo.
— Obrigada – agradeci, fazendo menção de pegar meu bebê.
Ela se esquivou. Afastou-se e olhou para mim. Seu semblante era sereno.
"Já lhe peguei quando era desse tamanho, – disse sua voz em minha mente. – Era tão frágil e tinha um coração tão puro que transbordava."
Assenti apreensiva. Não sabia onde ela queria chegar, mas eu a respeitava como se fosse minha progenitora, então apenas ouvi em silêncio.
"Vi crescer, desabrochar, chorar, descobrir a imensidão dos mares... E claro, a crueldade que seu povo insiste em fazer com seus irmãos."
Engoli em seco. Agora sabia do que se tratava. Humanos, meros humanos que, ao meu ver, não deveriam sequer passar pela mente dela.
"Sim, eles são seus irmãos, minha criança, mas você os mata por puro prazer e isso me entristece."
Queria protestar diante daquelas palavras e ela pareceu notar.
"Você não é melhor do que eles, Scarlate – O jeito como ela falou meu nome fez eu querer me encolher. – O poder de seu povo os fez ter raiva de seus próximos e é por isso que seu filho não merece viver neste mundo.
Meu coração afundou em meu peito. Avancei para pegá-lo, mas cai como se algo me prendesse ao chão.
"Ele não merece uma mãe tão cruel."
— Por favor, não! Eu irei mudar – tentei me levantar, mas meus pés pareciam fincados ao chão.
— Eu...não poderei viver sem ele – lágrimas quentes escorreram pelo meu rosto, mas eu não me importei.
"Pensou nas mães dos filhos mundanos, Scarlate? Pensou na dor delas? Não, eu sei que não. Acha a raça mundana quebrada e sem utilidade. Na verdade, não pensou em sua própria raça, em sua própria família."
Senti uma raiva gelada dentro de mim explodir. Exatamente por causa da minha família que eu odiava os humanos.
— Eles são seres inúteis que habitam a terra por nada! Nós fazemos crueldade?! Nós?! – Dei um riso sem humor. – E eles? Não? São piores do que nós e nem possuem poderes, imagine o que fariam com pouco.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos que pareceram horas. Eu queria estar arrependida por ter dito aquilo, mas não estava.
"Sinto muito. Espero que repense suas ações." – seus olhos transmitiam tristeza.
O branco de sua roupa se tornou mais vivo, extremamente brilhante, achei que havia me cegado.
Quando abri meus olhos novamente estava sentada no tronco da árvore. Em meus braços jazia meu filho que tinha um semblante sereno. Por um momento eu pensei que tudo estava bem, que ela havia apenas me dado um sermão, mas notei que ele estava frio em meus braços. Seu rosto pálido me deu a resposta. Ele havia partido. Ela tinha matado-o.
Eu queria chorar, mas as lágrimas não vinham. Eu me levantei e dei alguns passos para encarar a grande árvore. Apertei meu filho em meu peito e gritei. A raiva em meu grito eclodiu naquelas paredes destruídas e atingiu diretamente a árvore. Seu branco foi ficando opaco, foi desbotando até se tornar um cinza envelhecido. As lágrimas vieram logo depois. Então era o fim. O fim daquela árvore que me acompanhou por tanto tempo, aquele ser que habitava nela e eu amara se fora, assim como meu amor por ela.
Carreguei meu pequeno tesouro sem vida com a certeza de duas coisas: eu tinha um poder que não sabia. Havia matado a maior força já vista em séculos pela nossa espécie e a outra era que os humanos iriam pagar com a vida pela minha perda.
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Underwater | Segredos Revelados
FantasyE se sua vida fosse uma mentira? Olívia Sebastian vê sua vida desmoronar aos 18 anos. Vozes a perturbam, dizem coisas, revelam segredos do passado, as verdades de seu povo. Os dezoito anos de sua vida não passam de uma mentira, fruto de um encanto...