Capítulo dezessete

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Voo 337 British Airlines destino Canadá


Alice aperta mais o ursinho de pelúcia preto e branco contra o peito. Ela nunca tivera medo de voar, mas Wally, seu ursinho, lhe traz mais segurança durante o voo. A menininha de apenas oito anos limpa o nariz vermelho, devido à gripe, com um lencinho rosa. Ela se ajeita na poltrona azul e foca seus olhinhos verdes no corredor do avião, aonde uma aeromoça vem servindo o jantar.

Alice é a única criança no avião, e na verdade, quase não há passageiros. Desde que acabara a energia na Europa, poucas companhias se atreviam a voar. A British Airlines é uma delas. O voo 337 saiu de Londres na manhã anterior rumo ao Canadá, um país livre de guerra e só deve chegar a Vancouver daqui a umas três horas. Sem energia, o avião deve voar mais baixo e em velocidade reduzida, para assim, não colocar a vida dos passageiros em mais risco do que já está.

A aeromoça, Karle, finalmente chega à poltrona de Alice. Ela serve um espaguete para garotinha com um sorriso doce no rosto maquiado. Seus olhos negros caem sobre o bichinho de pelúcia que a garotinha mantém sob um aperto firme.

— Oi — Karle fala sorrindo amigavelmente para Alice. — Qual o seu nome? — pergunta.

A menina olha para Karle e dá um sorriso faltando um dente na frente, mas ainda assim, ela é uma criança linda.

— Alice — ela responde fitando Karle.

— Que nome bonito. — Karle ajeita o uniforme azul da companhia e depois o cabelo tingido de vermelho. — Onde estão seus pais, Alice?

Alice empurra os cabelos louros para trás da orelha.

— Meu pai vai me esperar no aeroporto. — diz, seus olhinhos verdes brilham ao falar a palavra "pai".

— Que bom. — Karle dá outro sorriso amigável e volta a empurrar o carrinho. — Se precisar de algo Alice, chame por Karle.

A menina olha para a mulher bonita empurrando o carinho e depois para o seu jantar. Ela está faminta.

Mas ela não tem tempo de comer. O avião começa a tremer de leve, apenas fazendo algumas coisas caírem. Mas depois, uma forte turbulência faz o avião pender de um lado para o outro como se fosse feito de papel. O prato de Alice escorrega e se espatifa contra o carpete da aeronave.

— Karle! — a menina grita quando ela mesma é lançada ao chão, cortando as mãozinhas na porcelana quebrada.

— Alice! — Karle corre na direção da garota se segurando nas poltronas.

O avião sacode mais uma vez, fazendo com que todos os passageiros sem o cinto de segurança sejam lançados no chão com violência. Um garfo voa em direção a Karle, ele perfura o tecido do uniforme e fica cravado entre as suas costelas. A aeromoça olha para a garotinha agarrada ao assento, seus olhos verdes cheios de lagrimas de medo.

Deus, Karle pensa, não deixe que ela morra, suplica. 

Em todos os momentos de sua vida, aquela garota nunca parara um único segundo para pensar no próximo, sempre se colocara acima de tudo, sua vida se resumia as viagens de trabalho, festas, drogas e sexo, nunca, até aquele momento lembrara-se do nome de Deus. Mas agora, vendo o pânico nos olhos de Alice cuja vida mal começara e já está prestes a acabar, Deus é a única pessoa em que ela consegue pensar. Então ela arranca o garfo enfiado em sua carne e se levanta determinada.

Os gritos de terror são ensurdecedores e fazem os ouvidos sensíveis de Alice doerem. E quando a voz eletrônica do piloto soa nos alto-falantes, ela engole um soluço.

— Senhores passageiros — é possível ouvir o desespero do piloto através do microfone. — O avião está caindo. Todos mantenham a calma e permaneçam em seus assentos. — um silêncio aterrador cai sobre todos naquele momento.
Todos sabem o que aquilo quer dizer. — Que Deus os proteja. — a última coisa que o piloto diz aos passageiros do voo 337.

A morte chegará de alguma forma, alguns morrerão por causa do impacto do avião com a superfície da água, outros morrerão afogados, já outros poderão ter a sorte de, por meio de um milagre, chegar à superfície, só para morrer com a explosão.

— Ah meu Deus — chora uma senhora de cabelos grisalhos e cânula no nariz. Ela tem medo, mas não está deixando nada para trás. Sua família morreu em um ataque na Inglaterra há dois anos.

Já Emily, que está sentada do outro lado do corredor, deixará o marido e a filha, mas o que a faz implorar pela misericórdia divina é a vida que ela carrega no ventre, fruto de um adultério. Madalena, uma ruiva sentada logo atrás de Emily nunca tivera a chance de viver sua própria vida, talvez seja melhor que ela acabe agora, pensa ela sem nenhuma emoção. Eddie que está pendurado no fim do corredor, perto da cabine, sente por não poder se despedir do seu namorado Nick. Quase todos tiveram uma vida instável, quase todos têm alguém esperando do outro lado do pacifico, e todos não terão chance de se despedir. E na morte, as despedidas são fundamentais.

Depois de muito esforço, Karle finalmente chega até Alice. A garotinha está gelada e tremendo. A aeromoça ajuda a menina a levantar.

— Estou com medo. — chora a menina agarrada a Wally.

— Vai ficar tudo bem, o.k? — Karle mente tentando sorrir calmamente.

Karle pega a menina no colo ignorando a dor da ferida em seu abdômen. Alice se agarra à mulher e enterra o rostinho em seu ombro soluçando freneticamente. A moça pretende chegar a uma cabine onde elas podem ficar longe de todo caos. Onde podem morrer em paz.

Mas não há tempo. O avião mergulha de frente em direção a água cortando o ar com giros violentos. A aeronave é como um pequeno e solitário pássaro branco naquela escuridão. Um raio atinge uma de suas asas, fazendo a queda ser ainda mais rápida e inevitável. Os passageiros parecem apenas ratos presos em uma gaiola que foi lançada ao mar, estarão mortos em poucos minutos.

Karle e Alice são lançadas para frente do avião. O corpo da mulher bate de costas contra a porta da cabine do piloto e serve como escudo para o corpo da garotinha. O ar deixa os pulmões de Karle e sangue os invade. A menina nada percebe, apenas permanece agarrada a Karle como se ela pudesse protegê-la do que viria ao fim da queda. A aeromoça usa os últimos resquícios da sua força para abraçar Alice, depois disso ela apenas fecha os olhos e espera.

A frente do avião bate na superfície da água, pedaços da aeronave voam em todas as direções enquanto o restante afunda no mar calmo, levando 87 vidas para suas profundezas. Tudo que encontrarão da aeronave são seus pedaços boiando no dia seguinte.

Quando o dia clareia é possível ver em meio aos destroços, um ursinho de pelúcia preto e branco boiando solitário nas águas.

E uma Alice afunda cada vez mais abraçada à Karle.

As Crônicas Do Apocalipse: O Fim da Luz Onde histórias criam vida. Descubra agora