Capítulo dezoito

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QUEBEC (CANADÁ, AMÉRICA LIVRE)

As ruas estão completamente brancas, a neve cobre tudo, camadas tão grosas que já são quase sólidas. Tudo está congelado, mesmo as árvores que sempre permaneceram vivas durante os invernos rigorosos do Canadá, neste sucumbiram, até suas raízes estão congeladas. Não há pessoas vagando nas ruas, ninguém se atreve a se expor ao extremo frio se já tem que suportá-lo dentro de casa.

O único ser vivo que se aventura em meio à nevasca é um Husky cinzento de olhos azuis, com uma coleira azul no grosso pescoço onde está gravado o nome "Beny" em um pingente dourado. Aquele é o nome do animal. Mesmo com a pelagem espessa, o cachorro parece estar congelando de frio, suas patas queimam cada vez que ele as toca no chão de gelo. Mas o animal é persistente, continua caminhando contra o vento gélido com um objetivo vívido em sua mente. Encontrar seu dono. 

Beny se aproxima da praça. O cenário ali não é diferente do resto da cidade, a fonte que outrora estava cheia de água aquecida que era esguichada pela boca de um peixe de pedra, agora é apenas mais uma pedra de gelo. Antes, aquela praça singela era um lugar onde grupos de adolescentes se reuniam para se divertir, estava sempre cheia, agora está tão deserta quanto o resto da cidade. 

O cão é insistente em sua busca, ele chega perto de um banco onde, estranhamente, há uma velha mulher sentada. A mulher está vestida com roupas simples de lã escura, não era quente o suficiente para suportar a temperatura negativa, seus cabelos embranquecidos ao longo de muitas décadas estão presos em uma longa trança enfeitada pelos flocos brilhantes de neve. Seus olhos negros fitam o nada, ela tem um sorriso nostálgico frisado nos lábios azulados, suas mãos, livres de luvas e pálidas estão cruzadas sobre o colo e suas pernas magras estão uma sobre a outra.

Ela não se move, não há uma nuvem de vapor escapando por entre seus lábios, seus olhos não piscam e o seu peito não infla enquanto ela respira.

O cachorro solta um latido baixo, esperando que isso desperte a velha senhora do seu transe, mas ela nem sequer pestaneja. O animal chega mais perto, cutuca a mulher com seu focinho e late mais uma vez. E de novo não há resposta. Então Beny morde a manga do casaco da mulher e puxa de leve.

O corpo paralisado se move um pouco para o lado, o cão ouve o som de gelo quebrando e em seguida o corpo da mulher pende para frente. Ela cai de cara no chão e seu pescoço se parte com um estalo. A cabeça gira pelo chão coberto de neve como uma bola. Desesperado, o pobre animal solta um ganido e corre para longe daquele corpo morto e gélido. Ela era só mais uma pedra de gelo em meio a outras tantas.

A brisa gélida traz um cheiro metálico ao olfato de Beny, em seguida ele ouve um grito vindo de uma das casas. Ele segue naquela direção, esperando desesperadamente encontrar aquele que o criara. O grito continua, fazendo o cão se dirigir aos fundos da última casa da rua.

A casa é de tijolos vermelhos com uma varanda de madeira desgastada, as portas estão fechadas e os únicos indícios de que há alguém vivo ali é a fumaça escura que sai da chaminé e os gritos horrorizados de uma mulher.

Beny vê um homem de costas agachado na neve manchada de vermelho, um garotinho está caído, seu rosto tem um enorme aranhão que parece ser feito por garras. O homem parece lamentar por ele, curvado sobre seu corpo.

Aquela cena facilmente passaria despercebida se não fossem os gritos da mulher no fim do beco e o rosnado que vem do homem.

Os pelos do cachorro se eriçam e seus instintos gritam que algo está terrivelmente errado. Suas garras afundam na neve e ele late de forma ameaçadora avançando no homem.

Pouco antes de Beny morder o pescoço do homem, ele se vira. O cachorro fica paralisado por um instante, mas logo se recupera e recua latindo. Seus latidos não são ameaças agora, são lamentos.

Aquela criatura de olhos azul como o gelo que os rodeava é o homem que cuidara de Beny desde que ele era apenas um filhote rejeitado pela mãe. O homem alto que costumava ter olhos gentis e dentes amarelos tortos, agora tem olhos famintos e dentes pontudos e negros, ele mastiga o que parece um pedaço enorme de carne. Sua pele não tem mais a palidez pela falta de sol, está cinzenta.

O que ele se tornou?

Beny solta um latido choroso para seu dono, mas ele não parece reconhecê-lo, não há nada naqueles olhos além de fome. Aquele não é mais o Dono, é apenas mais uma das aberrações que o animal via quando saía para caçar no bosque gelado. Seu dono se fora.

O Dono ignora Beny e volta a estraçalhar o pobre garotinho.
Não há mais nada para o cão ali, ele não tem mais um dono. Está sozinho. De novo.

— Ei, cachorrinho.  — chamo ao me aproximar dele.

Os olhos azuis de Beny lacrimejam. Ele parece tão afetado pela perda do dono que eu sinto a sua dor como se fosse minha. Meus pés descalços se movem na direção de Beny. Eu me ajoelho na neve e estendo a mão para o cachorro. Ele está tão desolado que corre para mim como se eu fosse seu porto seguro. Eu o abraço contra mim e ele gane.

— Está tudo bem.  — digo acariciando seu pelo macio.

— Asa, o que estamos fazendo aqui? — Cam pergunta atrás de mim.

— Ele vai conosco. — respondo me levantando, o cachorro me segue.

— Por quê?

— Ele é como eu. — murmuro sorrindo tristemente. — Por isso o observei por tanto tempo. Nenhum de nós tem família. Estamos perdidos.

— Você tem a mim. — Cam fala pegando minha mão.

Olho no fundo de seus olhos negros.

— Não terei pra sempre.
Ele sabia. E eu também. Depois que eu encontrasse os Seis, Cam teria o seu propósito cumprido e eu estaria sozinha.

— Você terá, quando completar sua tarefa.

Isso queria dizer que eu nunca teria.

A voz do pai volta a encher a minha mente e meus olhos se enchem de lágrimas. É tão bom ouvi-lo depois de tanto tempo.

Confie em si mesma Asa, diz a voz do Pai.

Então talvez eu deva confiar.

As Crônicas Do Apocalipse: O Fim da Luz Onde histórias criam vida. Descubra agora