Homem, rapaz, menino

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               Agora era hora de resgatar sua criança interior.

Durante toda a vida seus esforços tinham sido como que na direção contrária: preservar a infância, não deixá-la ir embora tão facilmente. Não no sentido literal, como um Peter Pan anacrônico, mas fazendo aquela distinção que já se cansara de explicar para os outros: conservar o criancismo e abandonar a criancice.

Até que um dia, por força das circunstâncias, tornou-se adulto. Era preciso sobreviver, trabalhar mais seriamente, pensar no futuro. E foram ficando para trás algumas inocências, certas disposições para brincadeiras, canduras poéticas e sonhos infantis em geral. E um certo criancismo despediu-se também.

Agora era hora de resgatar sua criança interior.

Depois da expansão, embora atrasada, da primeira parte da vida, era o momento de buscar a regressão da energia, o olhar para dentro, o autoconhecimento.

Começou olhando fotos. É o caminho mais óbvio. Procurando sentir-se como naqueles momentos em que fora fotografado, seja em cima de um velocípede, ou num simples sorriso despreocupado.

Depois passou a ouvir e organizar suas primeiras criações, que em forma de música haviam lhe angariado na escola a fama de artista. Recuperou algumas emoções, compreendeu sentimentos que na época foram tão misteriosos. Percebeu que entre as primeiras experiências, às vezes ousadas, como compositor, até que havia muita coisa aproveitável.

Isto lhe deu coragem para ir mais fundo: vasculhar seus antigos cadernos, à procura de primitivos poemas e contos. Trabalhos feitos dos treze aos dezenove anos, aproximadamente, que, misturados a redações de escola e outros rabiscos, constituíam um tesouro esquecido.

E vem então a incrível lei da sincronicidade trazer das suas surpresas: um conhecido pela internet publica em seu blog um artigo sobre uma rede social de escritores.

Imediatamente - por que não? - o homem entrou no aplicativo, criou sua conta e começou a publicar os escritos do menino. E era impressionante, agora as pessoas liam, alguém mais além de sua mãe e dois ou três amigos intelectuais, ou que pelo menos gostavam dele o suficiente para se submeterem à leitura. E não só liam, mas comentavam, davam estrelinhas!

Com uma nova visão o rapaz começou a avaliar seus impulsos. Enquanto se deliciava com os elogios, percebia que era apenas mais um em meio a tantos que escreviam bem, muitos mais do que poderia supor na juventude. Como havia tanta gente interessada em ler coisas como as que ele escrevia, e ninguém lera até então? Como havia tanta gente com impulso de transbordar através da escrita suas imaginações e seus sentimentos íntimos? E como não ser humilde diante de tanto talento no mundo, tantas oportunidades de aprendizado e crescimento?

               Então o homem voltou a escrever, com a disposição do rapaz. E o menino sorriu.

                                                                                                                                     +/- 8/12/16 a 28/1/17

O assassinato do abacateiroOnde histórias criam vida. Descubra agora