Capítulo 3 - O Outro Dia

1.1K 41 4
                                    

3 - O OUTRO DIA

              Depois daquele dia infortuno, Jane não voltou para casa. Sabia que, se voltasse, não teria descanso. Além de sua mãe fazer uma algazarra na casa inteira devido ao seu desaparecimento na noite passada, durante sua festa de retorno, ainda havia o fato de que Sara estaria lá. Só de olhar para ela, Jane se lembraria daquela cena e teria a ajuda de Sarah para lembrar de cada detalhe que aconteceu no parque. Eles deveriam estar felizes, até a sua chegada. Ela não suportaria, não imaginaria algo pior do que ser considerada a "indesejada", aquela que voltou, para a tristeza de todos. Ela sentiu-se daquele modo quando viu seus pais com olhos cansados e quando viu sua irmã com o namorado dela, divertindo-se. Sentia que cada lembrança que fizera naquela pequena cidade do sul do Brasil estava dissipando-se, como se fosse apenas uma fumaça de cigarro a que todos tossiam. Então recordou-se da viagem. Aquilo era cem vezes pior. Ela acabou chorando até dormir, chorando pensando em todas as mágoas, e pior ainda, chorando junto a um garoto ao qual ela se recusou a perdoar e a voltar a confiar. Aquele que disse ser seu amigo e que depois, subitamente, deixou de ser.

                Ela pode ter prometido, mas se ela chorou junto com Mike, é porque ela voltara a confiar nele. Mesmo tendo chorado por ele, ela voltara lá no fundo a reconhecê-lo como antigamente, antes daquele dia, o dia em que tudo mudou. Não queria pensar. Recusava-se. Ela acordara com o pesadelo de pensamentos. Estava em um lugar estranho, deitada no chão que estava recoberto com um pequeno edredom. Jane olhou aquele lugar por algum tempo. Era lindo, de uma certa forma. Simples, um tanto abandonado, mas muito elegante. Parecia ser uma fábrica, um depósito, ou algo assim. Era extenso, com teto baixo, paredes de concreto sem nenhuma tintura. Possuía várias caixas de papelão, com etiquetas e uma janela gigante, que se estendia ao longo de uma das enormes paredes daquele lugar. A luz do sol iluminava aquele estranhamente aconchegante local, e o aquecia - não muito, mas o suficiente para se sentir engolfado pelo calor - naquele dia tão frio. De repente, ela começou a se lembrar do que aconteceu ontem e a memorizar os pensamentos que tivera quando estava dormindo. Realmente, tudo aquilo era surreal. O fato de tudo isso estar acontecendo, toda essa maré de azar sobre ela. Deveria estar sonhando; Queria estar sonhando. Mas inesperadamente veio a seu encontro uma bolinha feita de papel amassado. Ela bateu certeiramente em sua cabeça. Depois desse acontecimento, ela acariciou a testa e pegou o objeto voador que a atingira. Olhou de perto e...

- Mas o quê...? - Ficou sem ar por um segundo.

Ela abre o papel e o lê.

“Houve noites em que eu dormi pensando nela,

em que eu pensei não ser nada sem aquela estranha tão conhecida

Teve noites que eu desejei que ela fosse livre

e que eu fosse livre pra ficar ao lado de quem eu sempre esperei encontrar .”

            Depois de ler esse poema, ela reconheceu a letra, assim como o estilo do poema. Ela sabia de quem era. Sabia que essa pessoa era péssima em escrever poemas - escrevia sempre tentando rimar, mas nunca emitindo tudo o que queria dizer: deixava o poema pela metade e tinha consciência disso - mas mesmo assim desatava em escrever milhares como esse... Era uma maneira pessoal de extravasar seus pensamentos, assim como Mike construía robôs e os destruía logo depois. Assim como Jane não conseguia compor uma música por inteiro, ele costumava deixar seus poemas incompletos, esperando que alguém se aproximasse e o completasse. Mas é claro que Jane nunca teve a coragem de fazê-lo. Costumavam chamar ele de caixa fechada, já que todos os pensamentos dele não conseguiam sair por meio de palavras, mas sim pelas pequenas coisas e pelos gestos de afeição. Ela queria ter certeza de que estava certa, de que aquele poema era realmente de quem ela imaginava ser. Seu coração palpita agora, seu medo se esvai por alguns minutos. Ela vira para os lados, para tentar ver quem lançara aquele papel.

- E aí? Dormiu bem? - Ele sorriu.

- Hm... – Resmungou ela. – Mike... O que é isso?

- Uma bolinha de papel, oras. Nunca viu? – Brincou Mike.

- Não! Eu estou falando do que está escrito!  - Disse ela impaciente.

- Um poema – disse ele em tom de segredo.

- Quem escreveu isso?

- Eu, claro! Duvida da minha capacidade? Posso parecer muito lindo por fora, mas saiba que a perfeição existe! Sou lindo por fora e por dentro! – Mike gabou-se, caçoando como sempre.

               Costumava rir de suas piadas, mesmo que não fossem engraçadas. Mas agora, nada mais poderia fazê-la sorrir, nada mais era tão bom quanto antes. Foi como se ela estivesse sobre algum efeito entorpecente, em que poucas coisas causavam um sorriso ou uma risada nela. Ela apenas o ignorou completamente e andou até a janela. Colocou suas mãos sobre o vidro e ficou olhando a linda vista. Não era nada daquelas vistas barrocas, nem românticas, apenas uma cidade, suja, poluída, mas vasta e inalcançável. Milhares de prédios, milhares de casas e ela e Mike eram apenas dois em milhões de pessoas. Ela permaneceu parada, empoleirada em seu lugar, observando o mundo afora por alguns minutos, quando algo interrompeu sua observação. A resposta que ela sabia, sabia desde o começo, mas que mesmo assim precisava ouvir. A resposta que demorou para ser dita, mas que Jane esperaria anos por algumas simples palavras que fizessem sentido e que comprovassem que seus pensamentos estavam corretos.

- Foi ele, Jane. Ele quem escreveu. – disse Mike, sua voz exalava um aspecto de nervosismo e, quando olhou-o por cima dos ombros, seu semblante era sério. - Tudo para você.

Vivendo Uma História MitológicaOnde histórias criam vida. Descubra agora