– Na sala vip, Bernard. Você nunca ouviu falar desse inferno? Vou te contar em detalhes como é lá. Na segunda porta do corredor central, uma que tem além da fechadura, um cadeado. Você não consegue ver o cadeado ou alguma coisa sequer lá dentro. São aproximadamente cinco celas. Isso mesmo, celas iguais de presídios. Se estivéssemos em um hospital psiquiátrico, eu iria chamar de solitária. Esse lugar fica sobre a proteção do padre Marcos. Dizem que ele era um soldado do exército e foi dispensado para entrar no seminário. Um homem negro, alto e com braços enormes. Parece com aqueles guardas do presidente em filmes americanos. Na verdade, eu acho que é um segurança com batina de padre. Eu conseguia ver alguma coisa ali só de manhã e à tarde. À noite, fica tudo escuro. Não dá para ver nada. E banheiro? Se você quiser ir ao banheiro tem que esperar a boa vontade do padre Marcos. E ele é bem sacana. No segundo dia, tive dor de barriga e ele me deixou sujar toda a calça. E só tínhamos duas refeições: Uma por volta de onze horas da manhã e outra por volta das seis da tarde. E isso já é uma grande evolução. O segurança estava me contando que antigamente ali era como um campo de concentração. Os garotos tinham que comer os ratos que passavam para tentar amenizar a fome.
Meu estomago embrulhou com toda a história.
– E para urinar, como você fazia?
– Mijar é de menos. Eu mijava no muro lá mesmo. Eu não me incômodo com o cheiro. Quando sentia sede, eu bebia a água da garrafa pet que me deram. Era quente, mas fazer o quê. Falando em água. Pega para mim um copo para que eu beba esses remédios para ver se passa um pouco.
– E quem te bateu? – perguntei.
– Aquele velho do diretor. Eu não sei nem o nome dele. Quando me pegaram, ele já foi com um chicote me encontrar. A primeira chicotada foi no padre Gabriel, que me dava sustentação para chegar ao topo do muro. A segunda foi em mim, que cai de uma altura de uns quatro metros. E não parou por ai. Me levou até a sala dele e fez dois padres me segurarem. Abaixou minha calça e me inclinou sobre a mesa. Abriu um armário velho, empoeirado, atrás da sua mesa e tirou um tipo de palmatória e começou a me bater. No total, foram cinquenta. No primeiro dia sangrava muito. Agora tá de boa.
– E você vai tentar fugir de novo, Pedro?
– Acho que não, Bernard. Não quero apanhar mais, não. Foi uma lição para a vida isso.
Fiquei mudo por alguns minutos, só pensando em como fugir dali. E só sobrou uma alternativa.
– Pedro, eu tenho uma ideia meio louca. Porém, eles não terão outra opção.
– Você, novato, com ideias loucas? Não me meta em mais confusão, cara.
– Dessa vez não será nenhuma confusão. Será a coisa certa. Só precisamos pensar muito bem nesse plano para não dar errado. O plano é o seguinte...
Escuto passos vindo em direção ao dormitório e vou para minha cama. Deito e me cubro. Padre Gabriel entra com duas bandejas e entrega uma para Pedro e outra para mim. Ele chega perto de Pedro, acaricia seus cabelos e cochicha no seu ouvido. Pedro reage, o empurrando para longe da cama e diz:
– Sai daqui seu padre safado. Eu não vou fazer mais nada com você. Padre Gabriel puxa seu cabelo e diz:
– Você está ficando maluco, garoto? Pedro segura com muita força na mão do padre e grita:
– Você nunca mais vai encostar as mãos em mim. Entendeu bem?
O padre, com muita fúria, tira as mãos de Pedro e sai do dormitório batendo a porta. Deito na minha cama e começo a planejar a minha tão esperada fuga daquele lugar. Tinha que ser algo muito bem pensado, senão ia para a solitário ou sala vip. É tudo a mesma bosta. As regras da penitenciaria infantil disfarçada de orfanato católico eram bastante rígidas nesse sentido. No estatuto interno era bem clara a norma 4.2: "o interno que tentar fugir de qualquer modo será punido em: (a) Corte de 50% da nota total das avaliações semanais; (b) será obrigado a ajudar na limpeza da instituição; (c) não poderá fazer parte do seminário até que mostre boas condutas com a instituição; (d)..." Acho que essa cláusula ia até a letra F, que era a mais intrigante e interessante: "Dentre outras..." Agora conseguia entender bem essa cláusula. Dentre outras punições severas, como solitária, falta de alimentação, péssimas condições de higiene, apanhar... É difícil você querer correr esse risco. Em contrapartida, é difícil você também aceitar viver nessas condições. Ainda mais eu, que tinha tudo na vida e agora não me resta outra coisa. A não sei esse pequeno inferno.
No outro dia, acordei mais cedo do que todos os outros e fui até a cama de Pedro.
– Acorda aí, cara – falei em um tom que só ele poderia escutar.
Pedro me olha apenas com um olho e estica as duas mãos para relaxar.
– O que você quer, Bernard? Tá muito cedo ainda. Dá para dormir mais uma meia hora.
– Você quer fugir daqui ou não? Vou te contar o plano. Se troca aí e vamos para o refeitório. Aposto que nem os padres acordaram.
Pedro me olha com cara de desconfiado e ao mesmo tempo curioso, se troca rapidamente e vai para o refeitório. Vou logo em seguida.
– O plano é meio maluco. Mas não tem outra forma de sairmos daqui sem ser esta. Já pensei em tudo.
– Qual que é o plano? – disse ele com bastante curiosidade.
– Bernard, em que você pensa tanto? Acho que você virou meio filósofo e não me contou nada. – diz Ana, cortando o meu pensamento.
Detesto quando alguém me interrompe. Minha vontade é de dizer "em nada, sua vaca!" Me segurei.
– Estou pensando em um sonho que tive quando estava no orfanato – minto.
– Estou curiosa para voltarmos ao nosso papinho. Me conte o sonho.
– Foi em uma das últimas noites que tive dentro do orfanato. Antes de eles me liberarem. Eu e meu colega de quarto, Pedro, iríamos começar a bolar um plano de fuga. Quando fui contar para ele, apareceu uma vaca em um pasto cheio de lama e nos comeu. Estranho, não é?
Ana começa a rir imediatamente, sem sequer imaginar que a vaca era ela. Não me contenho e começo a rir da situação.
– Nossa, Bernard, que sonho mais estranho. Só você mesmo.
Meu celular começa a tocar. Fico apavorado pensando ser a polícia. A princípio, nem imaginava quem podia estar me ligando altas horas da madrugada em um dia chuvoso. Pego o celular no bolso e, para minha surpresa, era André.
– Al... – antes de acabar a primeira palavra, André me surpreende.
– Seu filho da puta, desgraçado, veado, idiota, baitola, travesti, sem coração, desnaturado – interrompo André e digo:
– Mais algum elogio, André?
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Bernard - Agilmar Ferreira
Mystery / ThrillerBernard é uma história de um garoto que após um incidente percebe que a vida não é mais tão fácil como era antes. Ele é obrigado a fazer coisas que sempre julgou errado e perigoso, entretanto, precisava de algum dinheiro para sobreviver. Uma misteri...