Capítulo 2 - Parte I

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Fico observando Ana por um momento, esperando por alguma resposta. Ana senta no pequeno tamborete e levanta novamente.

– Vou ver se nossa comida ficou pronta – diz ela, sumindo em direção à cozinha. – Está pronta, até passou um pouco do ponto. Espero que esteja tão gostosa quanto parece na foto da embalagem.

Escuto-a revirando os talheres. Serve o ensopado em dois pratos brancos, muito parecidos com a coleção que tínhamos em casa. Olho para os pratos, talheres e disparo:

– Eram da minha mãe! Ou estou muito enganado?

– Eram, sim. Este conjunto é uma das poucas coisas que consegui pegar da sua antiga casa.

– E o que foi feito com o restante da mobília?

– O proprietário da casa fez um leilão e vendeu tudo a preço de banana – ela sussurrou. – Vocês abandonaram tudo. Não vieram atrás. Não tinha o contato de nenhum de vocês. Ele tentou por várias vezes entrar em contato com seu pai para que quitasse o restante do contrato, mas sem retorno algum. Seu Manoel foi até o presídio para negociar com seu pai. Segundo ele, seu pai não tinha condições nem de pagar um bom advogado, quem diria pagar os seis meses restantes da locação deste imóvel.

Penso em perguntar como e porque ela está morando aqui, numa cabana improvisada. Mas, assim que abro a boca, Ana e interrompe com uma pergunta indigesta.

– E você tem visitado seu pai na cadeia? Com quem foi morar?

– Bem, vamos chegar nesta parte. Agora, me deixa comer. Estou faminto.

Ficamos ali por alguns tempo em silêncio. A cada pedaço que eu mordia da comida, penso: "Poderíamos ter sido tão felizes aqui." Ao final da refeição, ela recolhe os pratos e os leva para a pia.

– Você aceita um copo de água ou refrigerante Bernard?

– Água, por favor.

Ela volta com dois copos brancos de porcelana. Presumo que faça parte da coleção que restou.

– Estes copos também você conseguiu salvar?

Com a boca cheia, ela apenas faz um sinal de sim. Aproveito a deixa.

– Ana, mas o que você está fazendo aqui nesse casebre?

– Eu sabia que iria me perguntar isso. Até demorou para falar a verdade! Quando aconteceu toda aquela tragédia, a casa de vocês ficou fechada por alguns meses. Bons meses, Bernard. Já estava virando alvo de usuários de drogas e esconderijo para marginais. O lugar onde eu morava era muito longe de meu serviço na Avenida Paulista. Um dia, passei aqui na porta por acaso e vi uma placa de aluguel. Entrei em contato com o proprietário, que locou a casa para mim. Faz aproximadamente uns cinco anos que me mudei para cá. Quando o contrato venceu, o senhor Manoel vendeu a casa para uma construtora e eu teria que me mudar em poucas semanas. Fiz um acordo com ele e a construtora, que me colocou essa cabana até que eu arrumasse um lugar para morar.

Fico desconfiado com essa explicação.

– Construtora boazinha, hein?

– Boazinha nada! Eles teriam que me dar um tempo para mudar e, como não queriam problemas judiciais, resolveram me deixar aqui até semana que vem.

– Somente até semana que vem?

– Sim! Ela respondeu.

– Mas conseguiu algum lugar?

– Sim, vou voltar para Santa Catarina e cuidar da pequena loja de calçados que minha mãe tem.

– Ah, sim. Até hoje está aberta?

– Sim! Ela até reformou há pouco tempo. Agora está trabalhando com grandes marcas.

– Mas por que você não foi até hoje?

– Minha vida é São Paulo, Bernard. Sempre fui da noite. Mas, agora não tenho mais ninguém aqui. Ficou chato, entende?

– Por que ficou chato? Sente falta de alguém?

Ela fica muda. Não consegue responder minha indireta e se emociona.

– Por que está chorando? – questiono – Vou perguntar uma coisa e quero que seja sincera! Custe o que custar. Posso?

– Claro, se eu puder responder! – Ana responde limpando as lágrimas.

– Você e minha mãe realmente tinham um caso?

Com um semblante fechado, ela responde:

– Por que vocês tem essa dúvida? Éramos apenas amigas e ponto final.

– Calma Ana, vamos conversar. Se abre comigo.

– Não, Bernard. Já te respondi – diz, encerrando o assunto.

– Engraçado você negar uma coisa que já ouvi e já espiei pela fechadura. Lembra da divisória que tinha entre a sala e o escritório? Um dia, meu pai estava viajando e já era tarde. Você tinha vindo dormir aqui em casa. Acordei com as risadas da minha mãe. Risadas, não. Gritos. Saí do meu quarto e fui verificar o que estava acontecendo. Muito vagarosamente, fui andando passo por passo para vocês não escutarem. E advinha o que eu vi quando olhei pela fechadura do escritório?

Ana fica vermelha. Não tem reação alguma e diz apenas:

– E o que você viu?

– Não precisa ficar com vergonha, Ana. Você não sabe o que passei. Isso sim é motivo de vergonha. Aliás, ver minha mãe bebendo vinho com sua melhor amiga não é motivo para tanto. Ou é?

Ela solta um suspiro de alivio.

– Então para que tanto drama apenas por um vinho?

– Eu não vi apenas o vinho. A cada piscada que dava, via um mundo novo.

– Conte a história toda e pare de rodeios, Bernard.


Bernard - Agilmar FerreiraOnde histórias criam vida. Descubra agora