Quando o mais novo Jack abriu os olhos, o sol já havia se posto. A noite uivava como um lobo solitário, dizendo "Estou aqui. Alguém? Estou bem aqui..." mas, fora aquele Jack, não restou ninguém.
Assim que as lembranças do dia anterior voltaram, ele ergueu os braços com agonia e passou as mãos por seu peito. Estava úmido. Arregalou os olhos. Teve tanto medo da órbita que poderia ter sido aberta ali que poderia morrer. Mas, ao olhar as mãos, percebeu: estavam limpas, apenas um pouco molhadas.
Suspirou alto e aliviado, deixando-se cair novamente. Quando a dor de cabeça diminuiu, se pôs a procurar o relógio-camafeu do velho Jack. O relógio tornara-se uma bola retorcida de latão e cobre. O buraco, bem no centro, ainda prendia a munição do policial. Milagrosamente, ainda era possível ouvir o sibilar dos ponteiros, marcando os minutos para ver o novo Jack erguer-se daquele chão umedecido.
Primeiro foi preciso afastar as galinhas. Elas se aconchegaram sob seus braços, algumas usaram suas pernas como poleiros - isso o fez cheirar um pouco mal. Jack não queria assustar as aves, então arrastou-se para trás, como em um nado de costas, e sentou-se longe delas. As que estavam sobre as pernas, reclamaram e pularam para longe ainda reclamando. As demais só o olharam, querendo saber se ele estava bem o suficiente, ou pedindo para que voltasse a dormir - ele não soube traduzir.
Jack notou que, onde estava deitado, havia uma grande mancha de óleo, o que queria dizer que talvez alguém ali perto tinha um carro, quis se erguer ainda mais rápido.
Testando o peso sobre as próprias pernas, o mais novo dos Orestes andou mata à dentro, seguindo os pontos que poderiam ser luzes, ou faróis, ou vaga-lumes gigantes. Não demorou muito pra estar caminhando entre os quintais de uma vila, foi entre esses quintais que roubou algumas calças e se enfiou em cada uma até encontrar alguma que servisse. Pegou também uma camisa nova, mas continuou com os sapatos molhados e seus barulhos constrangedores. Bem, ele só queria se livrar do cheiro das galinhas.
O relógio, ainda pende em seu pescoço, ruidosamente afirmou ser meia noite. Aquele Jack estava faminto, dolorido e não cheirava muito bem. Descobriu um corte na cabeça, um pouco a cima da nuca, e recebeu mais outros no rosto e nas mãos enquanto lutava com os galhos secos das árvores no caminho.
Ao encontrar um rio, o garoto não se segurou nenhum pouco. Pulou lá dentro, bebeu quanta água seu corpo pôde aguentar, lavou o rosto, os cabelos, as roupas. Esqueceu-se do relógio, mas isso não importava muito. Deitou-se na grama, esperando o sol dar as caras. O sol nunca vinha. Vestiu-se novamente, as roupas estavam molhadas e frias. O relógio estava protegido, afinal, se ele aguenta uma bala, o que um pouco de água é capaz de estragar?
Quando o sol se revelou pacientemente sob o horizonte manchado de vários tons de laranja e rosa, Jack já não queria mais vê-lo. Mas o calor foi bom para secar suas novas roupas e o cabelo.
O novo Jack não tinha dinheiro, nem disposição para roubar. Sua única saída era entrar, clandestinamente, num trem que passasse por ali. Trens... Ele odiava trens.
No momento em que sairia dos quintais e finalmente poderia andar onde as galinhas não cacarejassem como loucas, uma senhora abriu as portas e o viu tentar pular a pequena cerca. Ela riu ao vê-lo ser pego pelos arames.
"Que belo presente os deuses trouxeram", disse a senhora, já com um alicate gigante em mãos. Ela era baixinha e roliça, com mãos grandes e uma porção de cabelos brancos presos no alto da cabeça. Seus olhos eram estreitos e castanhos, os lábios, tão finos, estavam pintados de rosa. Ela tinha as feições um pouco grandes para o rosto, mas com senhoras de idade é sempre assim. "Presente?" Jack sussurrou muitos segundos depois, quando aquela cena tornou-se menos assustadora. A senhora cortou os arames com cuidado, tentando não arrancar um dos olhos ou o nariz do rapaz no processo.
Quando terminou, o novo Jack tinha a camisa rasgada e tufos do cabelo, que parecia mais loiro que ruivo, presos na cerca.
"Qual seu nome?" a senhora perguntou enquanto tentava guardar o alicate e pegar um copo ao mesmo tempo. Aquele Jack a ajudou, coisa que não teria feito se não fosse Jack, e sussurrou seu mais novo nome enquanto sorria vendo como ficou seu cabelo num grande espelho com moldura de latão e joias de vidro.
"É um nome e tanto" disse a senhora, soando falsa como as joias do espelho. Mas não o fez por mal: aquele era o nome de seu filho, morto à seis anos, afinal. Ela não quis tocar nesse assunto, invés disso, preparou um chá para o Jack, que não bebida café, e trouxe biscoitos e uma fatia de bolo branco.
Jack comeu até a fome estar engolfada em todo aquele bolo. A senhora, que, entre uma fatia e outra, disse chamar-se Abby Myron, trouxe roupas, um par de sapatos e obrigou Jack a lavar-se para o almoço. Depois de comer todo o frango com arroz que pôde, Jack reparou a cerca e algumas goteiras no telhado. Ajudou na horta e aprendeu a tirar leite de uma vaca. Por fim, foi obrigado a lavar-se novamente e, quando voltou, o jantar estava servido.
Abby o deixou dormir no quarto de seu falecido filho, Jack. Lhe deu boa noite, chinelos para ficar em casa e sussurrou algo sobre nunca sair dali.
No dia seguinte, Jack cortou o cabelo para que ficasse tudo com o mesmo tamanho e formato, ganhou curativos, mais bolo branco e um apelido que soava tão doce quanto os chás de Abby.
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Enquanto Formos Jack (Raison D'être)
ActionA morte de Jack Orestes não trouxe apenas alívio e desespero, fez nascer também sentimentos vagos e vidas sem rumo que caminham inutilmente para o vazio, tentando apagar seu nome de seus corpos e memórias. Para se manterem vivos, após a morte do...