Os Orestes são como aparições, espectros pálidos e magros, várias cabeças mais altos que qualquer um naquela sala, como cópias exatas do Velho Jack. Eles só não imaginavam que chegaria àquilo, aquele mesmo desfecho. O palco, fora montado, a peça começara. Olhos gélidos em ambas as faces, medo em todos os corpos. A peça não teria o fim que o roteiro descrevera, houve uma mudança — mudança essa que pode mudar e acabar com tudo.
As facas tremiam entre os dedos de Jackie. James Gurney o encarava com olhos de fome. Era melhor ele saber usar aquelas facas, ou morreria rápida e dolorosamente.
Jack também puxou sua bacamarte. A arma, que um dia fora usada por um homem de sua família, numa guerra estrangeira, contra o Paraguai, tinha que servir de alguma coisa.
Dedos em gatilhos, mãos em cabos de facas. Sangue é o que todos querem.
Jackie se lembra de como foi aquele dia, de como o pai olhou em seus olhos e disse que nada ficaria bem. “Valentin? Você está aqui?”. “Buuuh” ele saira de trás de uma cortina, as mãos para cima e um sorriso quente. Valentin, esse era seu nome, seu velho e caloroso nome. Valentia, era o que significava, e ele teria valentia. Teria, sim, muita valentia.
Jack manteve a atenção grudada em Muhammad, mas seu corpo estava virado para Mason. Aquele dia se repetia em sua mente, as batidas pesadas na porta. “Vicenzo, onde está seu irmão?” perguntara o pai, sussurrando, ele parecia assustado. “Está no quarto azul, está brincando...” “Valentin!” o pai chamara. Vicenzo. Vicenzo e Valentin. Valentin. Seus nomes reais não tinham nada de Jack. Ele gostava disso, de manter uma distância.
“Vicenzo, vem aqui, filho”, Jack chamara ambos para o quarto azul, eles estariam seguros ali. “Preciso que me ouçam bem. Papai vai sair, assim como a mamãe fez. Não se preocupem, vocês são fortes”. Vocês são fortes. Aquela frase tinha um peso grande sobre os ombros de dois garotos assustados. Jack pôs as mãos sobre os ombros do mais velho. “Cuide do seu irmão. Cuide muito bem dele. Valentin é uma criança medrosa e desajeitada, você sabe disso” eles riram enquanto as bochechas de Valentin ficavam rubras. Os joelhos arranhados de Valentin, deixavam claro o quão desajeitado ele era. Jack pôs as mãos sobre os ombros do caçula. “Valentin, cuide bem do seu irmão. Não deixe que os monstros do armário o peguem, me entendeu?” “Sim, pai. Eu vou acabar com todos eles!” Valentin imitou um guerreiro samurai, brandindo sua espada de madeira contra o ar. E, então, Jack se fora. Aquele caminhar até a sala fez o chão tremer. Aqueles garotos, aqueles garotos que sorriram quando o pai disse que precisava partir, aqueles garotos que fingiram entender mas não entenderam nada, não estão mais ali, não pertencem mais a eles mesmos. Talvez eles tivessem que partir também, do modo como Charlotte fez, do modo como Jack fez, então tudo teria acabado. As órbitas vazias continuariam vazias, mas em outros corpos.
O mais velho, Vicenzo, fechou os olhos. As lágrimas se continham atrás das pálpebras fechadas, mas transbordariam à qualquer momento. Ele seria o garoto com medo de monstros em lugares pequenos e fechados por toda a sua vida, mas não se importava. Sempre que a claustrofobia apertava seus ossos, ele sabia: haviam monstros de verdade ali dentro, monstro de carne, osso e armas, vestidos como homens, pois são homens.
Vicenzo abaixou-se quando sentiu a primeira bala rasgar o ar, era só um palpite, claro, mas o fez. Sua arma estava voltada para um lugar diferente dos demais. A fechadura da porta voou e deu lugar à um buraco irregular. Vicenzo puxou o caçula pelos suspensórios, ele escorregou e quase caiu, mas foi só quase. Ambos viravam as costas para o inimigo e correram. Eram só crianças assustadas, afinal, com medo de monstros e proibidos de brincar com brinquedos tão perigosos, por isso jogaram armas e facas no ar.
O barulho dos tiros tomaram conta do ar, o sangue zunindo em seus ouvidos deixava tudo ainda mais turbulento, as pernas velozes permaneceram velozes... Eles pareciam personagens de um desenho animado. Lágrimas corriam seus olhos arregalados, mas sorrisos tomavam conta de seus lábios avermelhados. Os monstros corriam atrás deles. Vicenzo caiu, fora atingido, mas levantou-se num pulo e continuou correndo, o sangue manchado a camisa na altura do antebraço.
Pularam muros, invadiram casas, pararam em frente ao pior dos homens de Jules. Jean, dizia o bordado no uniforme. Eles gritaram com Jean, disseram que estavam sendo perseguidos. Jean era o pior homem mais corajoso que Jules haveria de ter. Os garotos voltaram a correr enquanto Jean ia de encontro com os monstros.
Vicenzo precisou de pontos e gesso. Valentin, de curativos e soro. O hospital de Folligny era, na verdade, um centro veterinário — exclusivo para animais, mas eles foram atendidos mesmo assim. Catherine, uma espécie de infermeira, disse que eram gatos assustados.
Logo depois, eles foram à Saint-lô, deram adeus à Jack, depois de contar toda a história, e partiram. Simples assim.
A Raison D'être de Valentin, era proteger o irmão dos monstros, e ele faria isso — desde que os monstros não fossem humanos. A Raison D'être de Vicenzo era cuidar do irmão. Valentin era uma criança medrosa e desajeitada, ele poderia cair enquanto afastava os monstros do armário — Vicenzo teria que levantá-lo algumas vezes se quisesse se livrar os monstros.
O destino dos Orestes? Bem, ninguém sabe. Crianças assustadas tendem à esconder-se muito bem — o bolo branco de Abby Myron sabe muito bem disso.
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Enquanto Formos Jack (Raison D'être)
ActionA morte de Jack Orestes não trouxe apenas alívio e desespero, fez nascer também sentimentos vagos e vidas sem rumo que caminham inutilmente para o vazio, tentando apagar seu nome de seus corpos e memórias. Para se manterem vivos, após a morte do...