Jackie

160 45 0
                                    

Alguns pares de dias depois, o trem parou, mais uma vez, e, dessa vez, o ex-Leviathan pôs-se a levantar. Ele não esperou que alguém avisasse, nem mostrou o bilhete... Nada. Abriu a janela e pulou.

    O chão sob seus pés estava úmido e havia uma quantidade extremamente desnecessária de folhas secas e pegadas do que pareciam vacas ou cavalos ou camelos. Esse Jack não sabia a diferença.

    O pequeno vilarejo que, escondido entre tantas árvores, era difícil perceber, parecia mais pacato que qualquer outro. Mais ao longe, uma fábrica soprava sua fumaça negra e reclamava do pouco espaço que lhe deram. Aquele era o portão de entrada para uma cidade maior, menos verde, um verdadeiro inferno de pedra e almas tão perdidas quanto a dele.

    Ele também não esperou por alguém que lhe indicasse o caminho. Adentrou o grande solto e seguiu em frente até ver muros e ouvir asas batendo. Os muros eram baixos e poucos, a maioria das casas tinha apenas uma cerca estreita feita com arames fardados e finos pedaços de madeira que foram pintados para combinar com as paredes. As asas pertenciam às galinhas. Haviam tantas, cada quintal exibia ao menos meia dúzia e cada meia dúzia reclamava como meio milhão de gralhas.

    Pulando as cercas, o Jack do meio conseguia ver como cada família suportava a vida num lugar como aquele.

    Alguns loiros encardidos retiravam a água que invadiu a casa. Alguns homens ensopados se livravam das vestes molhadas que conseguiram ao voltar de seus trabalhos naquela fábrica. Algumas senhoras destrambelhadas jogavam buraco, ou qualquer coisa que exigisse um baralho. Uns moleques enraivecidos lavavam o carro como se fosse a pior coisa do mundo, com os rostos sujos de óleo e os dedos frios. Um Orestes faminto engolia, sem mastigar, fatias de um bolo branco gigante e bebia, cuidadosamente, o que parecia chá.

    Jack parou naquela última janela, olhou-a, entorpecido, até lembrar-se de respirar novamente.

    Os cabelos estavam muito curtos, os olhos muito vivos,... Mas aquele era um Orestes, sem sombra de dúvidas. Orestes sempre sabem quem são Orestes — são todos iguais, afinal, é como se olhar no espelho.

    A porta dos fundos foi aberta de repente. Aquele Jack sem reação foi pego com a boca na botija. A pequena senhora que o encarava parecia mais assustada que ele próprio, ela olhou dentro da casa e para Jack e, de novo, a casa.

    “Jackiii” ela gritou, uma eternidade depois. “Jackie, pode vir aqui?”. O garoto que ali surgiu parecia possesso. Não poderia ser o mesmo homem que lhe deixou num trem alguns meses atrás. Era mais rato que homem, mais gato que rato, uma criança mimada, treinada, controlada à palmatórias.

    “Ah”, foi o que o tal Jackie disse. “Ah”, desse jeito, assim, como quem vem a entender uma piada horas depois de ela ter sido contada. “Ah”, nada de mais, é só meu irmão mais velho, gêmeo, que nunca me viu desse jeito. “Ah” eu nunca sorri, deve ser isso. “Ah”. “Ah”. “Ah”.

    A velha os deixou à sós, disse que precisavam conversar — como se ela soubesse de alguma coisa. Jackie sorriu e agradeceu quando a velha falou que iria até a cidade e que lhe traria mais daqueles biscoitos.

    Jack queria vê-lo sorrir novamente.

    O caçula costumava sorrir mesmo enquanto chorava. E pensar que aquele fantasma realmente estava ali, engolfado em seus lábios como um náufrago, doía. Era uma bela visão do passado, uma doce lembrança do que lhe foi tirado. Uma propaganda sobre o que esquecer órbitas vazias pode fazer à um menino.

    “Abby me acolheu” sussurrou Jackie, meio bobo, meio agradecido, meio perdido. Ele estava mesmo falando sobre sua viagem? Ou era mais um efeito daquela alucinação? Jack não sabia o que fazer: sorrir, continuar embasbacado, chorar... Louco, tudo estava realmente muito, muito, muito, muito louco.

    Quando Jack começou sua história, ainda um pouco distraído com as emoções do irmão, o mais jovem dos Orestes o ouviu atenciosamente. Assim que fora concluída, o sorriso não habitava mais os olhos de Jackie, nem seus lábios, tampouco os pensamentos. Jack nunca saberia quão doloroso fora para o caçula ouvir que seu irmão matou tantas pessoas por dinheiro — apesar de saber que, um dia, terminaria dessa forma.

    O Jack do meio parecia mesmo o velho Jack. Era uma cópia, só um pouco mais quente, mas o sangue nas mãos era igualmente vermelho. Foi assim que Jackie o viu.

    Quando Abby voltou, nenhum Jack estava feliz, nenhum Jack quis os biscoitos, nenhum Jack estava vivo. Eram fantasmas,  corpos que se mantinham em pé por mero capricho.

    Jackie se trancou no quarto por um tempo, ele costumava fazer isso quando criança: se manter afastado de tudo, de todos, até que pudesse fazer parte de tudo e todos novamente.

    Quando o caçula saiu do quarto, Jack quis ver aquele sorriso mais uma vez, quis ter ido embora assim que o viu, quis ao menos ter guardado aquela sensação calorosa por tempo suficiente para se lembrar claramente dela sempre que fosse deixado em um trem com meias palavras no bolso e nada nas mãos. Ele quis estar realmente morto, assim não teria que ver a morte do velho Jack estampada no rosto do irmão.

    Jackie nunca saberia quão maravilhoso fora para o mais velho ver seu sorriso novamente, tampouco seria capaz de imaginar o quanto doeu ser a causa do desaparecimento do mesmo.

Enquanto Formos Jack (Raison D'être)Onde histórias criam vida. Descubra agora