Cicatriz

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O dia esgotou-se entre os ponteiros do relógio quebrado do Velho Jack, pendurado no pescoço do caçula como um camafeu precioso. Cada clique doía em seu âmago, incendiando-o por dentro e ao redor, como um maçarico supergigante. Jackie levantou do tapete, assistindo aos fantasmas observando-o por molduras arranhadas e sem cor. Jogando as cobertas no sofá mofado, ele escorregou até o quarto azul. Os lençóis ainda são os mesmos, assim como os tapetes e as cortinas. Era de se admirar a forma como aquele quarto manteve-se conservado por todos aqueles longos, brutos e duros anos. Ela morreu bem ali, a mãe dos jovens Orestes, bela e nebulosa, como sempre fora. A alma liberta como uma das pombas na praça, o coração trancado naquele mausoléu que era Jack. O mais jovem — só por alguns minutos — não sentia a morte de Charlotte, sua mãe, do modo efervescente que sentia a morte do Velho Jack. Para ele, Charlotte não podia mais sentir o que sentia, as dores, os medos. Se sua vida disse que precisava ir, que era necessário, que seria melhor assim, então seria melhor assim, seria melhor se ela fosse, mesmo doendo, mesmo levando a parte mais bela que havia em Jackie, era necessário, preciso... As dores acabariam. Ela estaria melhor. Ele aceitou e a dor não era mais devastadora. É cálida, morna. Uma dor que ele gosta de sentir nos dias em que seu norte está perdido em águas turbulentas.

 Uma dor que ele gosta de sentir nos dias em que seu norte está perdido em águas turbulentas

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A Hora havia chegado, tão sorrateira que era difícil aceitá-la. Jack se levantou, as roupas sujas de lama foram jogadas num cesto, junto à tantas outras. O café sem sabor estava quente o suficiente para despertar seus sentidos e aguçar seus olhos de atirador. Ele bebeu todo o conteúdo da xícara, arrastou o irmão para fora e, como ratos, espreitaram a noite que se alastrou, escura, do lado de fora.

    Não foi preciso pegar um trem para chegar à Rennes, cortaram caminho por ruelas estreitas e casas meio abertas. Pulando janelas e violando quartos imaculados, observando por entre fechaduras indiscretas e frestas invisíveis.

    Quando o cheiro conhecido do bar de Martim, às beiradas de Rennes, tornou o ar irrespirável, eles souberam que estavam no caminho certo.

    O maior dos homens, sua cara distorcida e a cicatriz estavam sentados em uma poltrona reclinável, os pés sobre um amontoado de jornais velhos, os lábios ocupados com cigarros e álcool.

    A cama-de-gato estava armada. Jackie estava dentro, a porta dos fundos estava aberta. Ele sentia seu coração bater sob a derme, tão alto e forte, como se estendido sobre seus dedos pálidos e cumpridos. Jackie não tinha uma arma, teria que se virar com o que encontrasse caso algo desse errado.

    Jack estava à frente, encarando a putrefação que era daquele humanoide descomunal. A fumaça fazendo seus olhos aderem, o medo escorregando, cara vez mais rápido, para a caixa-preta em suas entranhas.

    Jack tinha uma arma. A bacamarte estava quente em suas mãos, mas ele não a usaria, não mancharia seu pequeno tesouro com tão pouco. O revólver que trazia era a arma perfeita para tais serviços, e ela não se incomodava em ser içada de um poço vermelho e borbulhante, fora pra isso que nasceu, para jogar em buracos lamacentos a vida de porcos inúteis, afinal.

    O homem acendeu mais um cigarro. Parecia aceitar a morte que o esperava à penumbra, a morte ruiva e de suspensórios.

    Jack não tinha mais por que esperar, seus dedos já sedentos por ação, os pensamentos empalados nos motivos para puxar aquele gatilho de uma vez por todas. Ele andou até quase tocar o homem e sua cicatriz, o revólver tremulando de ansiedade. O torpor da vingança se remexendo dentro de si, ganhando forma, final e infelizmente. Jack sentia-se como um balão, ele queria explodir, queria explodir a si mesmo e ao que estivesse ao seu redor.

    Não foi possível alastrar a explosão por todos os cantos da Terra, mas, o sangue, escorrendo por aquela recém-criada órbita vazia e fulgente, foi forte o bastante para manter sua saciedade e livrar aquele corpo da sede, ao menos até que o próximo porco fosse abatido.

Enquanto Formos Jack (Raison D'être)Onde histórias criam vida. Descubra agora