Fuga & Neve

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Quando pessoas deixam de ser quem são e, numa certa curva de suas novas trajetórias, desejam voltar ao ponto de partida, é natural querer de volta tudo o que lhes foi tirado ao longo do caminho ou até mesmo antes de começar a caminhada. Ao menos Jack pensava assim. Talvez ele não estivesse certo, talvez nem mesmo o caçula achasse aquilo correto. Mas, aquele Jack, o Jack que matou alguém para seguir em frente e reviveu outrem para voltar atrás, queria isso, queria tudo de volta. A casa, o quarto azul, a mãe, o pai, a vida... Ele queria estar sob todos aqueles lençóis e os desenhos de estrelas e luas que o velho Jack pintou no seu pequenino céu quadriculado. Ele queria o irmão chorão e fazê-lo rir com cócegas. Queria as almofadas que nunca ficavam no lugar e ter que arruma-las antes de dormir. Queria os armários que sempre estavam cheios e temê-los durante a noite. Ele queria tudo, tudo, tudo. Desde o piso frio até os cabos de aço das panelas sempre ferventes. Tudo.

    Tudo.

    A palavra que sua mente não conseguia formular diretamente era “vingança”, e foi isso o que ele cuspiu fora enquanto uma porção enorme de bolo branco ia goela a baixo. Se Abby estivesse ali, ela com certeza lavaria aquela boca suja com muito sabão — foi assim que Jackie viu aquela cena. Ela tentou fazê-lo algumas vezes, quando os Orestes falavam impropérios. Nada que as desculpas não resolvessem.

    Seu plano era voltar e matar todos que precisassem ser mortos. Jackie não se opôs, também não aceitou. Ouviu e só.

    O plano era voltar à largada, ao lugar onde o velho Jack e todas as suas órbitas vazias descansam, e montar o palco negro ali, sob aquele mesmo chão escarlate. Eles seriam a atração principal, o primeiro e único ato.

    Quando o mais velho — só por alguns minutos — cria um plano tão ardiloso, é menos doloroso aceitar. Mas, por outro lado, quando o caçula — só por alguns minutos — diz que é melhor ir com cuidado, é mais seguro seguir seu conselho, e o mais velho sabia bem disso. Então, eles foram, com cuidado, mas foram.

    Jackie faz a mala e escreveu uma carta para Abby, deixou seu nome real e uma quantidade relativa do dinheiro que pegou de Jack. Disse que talvez voltasse um dia, ou que, talvez, nunca mais voltasse à nada, à ninguém. Disse também que deixaria de ser Jackie, se o visse, um dia, ela poderia chamá-lo assim, apenas ela. Enfiou o que restou do bolo num vasilhame e o vasilhame num saco de papel e o saco de papel também entrou na mala.

    Jack contou o dinheiro que sobrara, e contou mais outras duas vezes. Eles precisariam de muito para voltar à Saint-lô¹, e de mais um pouco para se manterem vivos até lá.

    Jackie escreveu outro bilhete, se desculpou sobre a mala e as roupas e o bolo e os saches de chá que pegou para a viagem. Deixou seu nome completo, mais uma vez, o verdadeiro, assinado sob seu novo nome. Abby entenderia o significado, ele sabia que Abby entenderia porque eles se foram.

    Antes de saírem correndo, Jack cortou o cabelo igual ao do caçula, tentou até mesmo imitar as falhas. Assim eles seriam iguais novamente — ao menos por fora.

    Enquanto Formos Jack, pensava Jackie tentado à voltar para a casa de Abby e para as galinhas barulhentas e para a vida pacata e comum que levou por aqueles poucos dias, nossas mãos sempre desejarão sangue.

    Os galhos batiam em seus rostos, puxavam seus poucos cabelos, agarravam-se aos suspensórios. O vento entrava por entre brechas nas camisas e esfriava seus corações. Os nós nas gargantas dos jovens Jacks estavam tão apertados que doía.

    Passaram por todos os quintais e todas as galinhas. Admiraram por uma última vez a calmaria, as vacas deitadas em um pasto úmido, os garotos ainda tentando arrumar um carro velho. Sentiram, por uma última vez, o cheiro da grama virgem se misturando ao odor de óleo e a paz que trás o orvalho. Ambos queriam continuar ali. Um, para continuar esquecendo o velho Jack e levando a vida que desejava, outro, para continuar vendo os sorrisos reais nos lábios do irmão e nos seus próprios.

    A lama parecia ainda mais acumulada, mais pegadas se misturavam, o mais velho ainda não sabia a quais bichos elas pertenciam.

    Ao chegarem na estação, compraram os bilhetes de passagem e esperaram mais de uma hora pelo trem.

    A viagem até a próxima parada demorou séculos, milênios, bilhares de horas e dias e meses e anos... O inverno invadia as janelas, a neve se acumulava nos cantos, nas dobradiças e sobre qualquer superfície.

    O caçula dividiu o último pedaço de bolo branco, enquanto Jack comprava qualquer coisa quente o bastante para reaquecer seus corpos. Quando o inverno havia chegado? Quem o permitiu se apossar de tudo dessa forma? Os Orestes não sabiam responder. Todavia, eles roubaram cobertores das malas no vagão de cargas, e dinheiro das mesas. E, assim, o roteiro estava sendo seguido. As cortinas vermelhas foram estendidas e pendes. As cadeiras, enfileiradas. A apresentação começará em breve.






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Saint-lô comuna (Na Idade Média, povoação emancipada do regime feudal e governando-se autonomamente; município) francesa na região administrativa da Baixa-Normandia, no departamento Mancha.

Enquanto Formos Jack (Raison D'être)Onde histórias criam vida. Descubra agora