Trens & Circo

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O mais velho dos irmãos — só por alguns minutos — descia e subia de trens, e fora assim sua vida toda — bem, se tornou quando Jack se foi. Ele vê a silhueta do irmão mais novo atravessando os trilhos sempre que o trem está um pouco longe de mais para continuar acenando, e assim ele sabe: irá demorar à voltar. As vezes, teme que nenhum dos dois nunca volte a se encontrar. O mais velho não é de demonstrar, mas sempre teme o fato de talvez nunca poder ver um rosto conhecido pelo resto de sua vida.

    E, nessa vida de sobe e desce de trens, o mais velho dos irmãos aprendeu a fazer muitas coisas. Coisas como abater carteiras sem ser visto, matar alguém sem encostar nele, lavar uma casa inteira apenas com detergente e vassoura... Mas nunca houve como testar seus conhecimentos.

   Quando encontrou a pessoa certa, ele quebrou uma garrafa e a amassou até ver o vidro virar pó. Encheu um pote com cola e jogou o vidro em pó lá dentro, depois jogou um tubo de linha na mistura que havia feito, deixando apenas uma pontinha de fora para puxar. Quando a cola secou só um pouco, ele retirou a linha e a arrumou de lá para cá em um vagão, com cuidado para não cortar a linha com ela mesma. O garoto sabia quem passaria por ali e quanto havia dentro da maleta que esse alguém carregava. Ele faria isso sem sujar as mãos de sangue nem feri-las com o vidro.

    O homem passou, sua cabeça, não.

    Um rio de sangue inundou as linhas. O mais velho dos irmãos pegou a mala e pulou fora do trem.

    As pernas doeram ao serem esmagadas uma contra a outra e ambas contra pedregulhos tão pontudos quanto agulhas.

    Fora a primeira vez que o mais velho viajara por tanto tempo sem estar entre as paredes de um vagão, reticente como o irmão mais novo. A austeridade parece um pouco maior quando o mais velho não está em seus caixotes móveis, as vezes ele fala sozinho, as vezes faz planos sobre assassinar árvores e roubar seus galhos para uma fogueira, as vezes perde o equilíbrio sobre si mesmo e cai em seu próprio mundo paralisado numa espécie de holocausto, as vezes testa seu know-how¹ com os postes que encontra no caminho, mas sempre se mantendo latente sobre como matar alguém com cola, vidro e linha. As vezes, o mais velho simplesmente segue, imprevisível à si mesmo, imponente sobre qualquer coisa, sentindo o peso do passado sobre seus ombros e tentando enfia-los em sua nova maleta.

    A cidade em que parou — Città Grigia — era desprovida de cor como o nome. O mais velho tentava agir com primazia, fazendo-se de forte quando na verdade era ainda mais forte. Mas a pústula² ardia e era horrível de si olhar, então, só por alguns minutos, só até que a dor passasse, ele se fez fraco e permitiu-se descansar ali mesmo, sobre os bancos de mais uma estação.

    Estava na moda fugir com o circo, encontrar uma bela moça e fingir estar apaixonado só para ganhar um lugar eterno no picadeiro. O mais velho dos irmãos não fingiu nada, apenas se enfiou na primeira tenda que viu e perguntou o que precisava ser feito.

    Ele limpou a jaula dos tigres, alimentou os leões, lavou as zebras que eram cavalos, as zebras que eram zebras e os cavalos que eram cavalos. Depois os pintou novamente.

    O maior trabalho era limpar o cercado dos elefantes: um animal com o cocô daquele tamanho deveria mesmo estar no circo, e, só por isso, ganhar toda a atenção da plateia.

    Um dia lhe perguntaram seu nome, ele disse: Jack.

    Fora uma péssima ideia usar o nome do morto perfurado qual sempre quis esquecer. Toda vez que alguém pronúncia esse nome, é como se ele pudesse ver Jack chegando em casa ensopado e sujo, dizendo que os levaria para ver o próximo jogo, quando ele estaria ainda mais atolado em sangue do que nunca. Mas o novo Jack tentou não pensar nisso por muito tempo.

    Por alguns dias, o novo Jack fora motivo de discórdia em muitos trailers, todavia, quando se trata do mais velho, é mais seguro temer à atacar. Não que ele vá revidar, mas se atacar, sua vida será ligeiramente encurtada.

    Com uma maleta cheia de dinheiro e cavalos para fantasiar de zebras, o mais novo Jack parecia otimista (como sempre) seguindo por um caminho novo, pensando que, no final desse túnel, talvez as coisas dessem certo.

    Mas o circo o deixou para trás, o chefe dizia que ele não se dava bem com ninguém e que os leões parecem mais magros do que no período da pobreza. E as zebras, que eram cavalos, estavam todas pintadas erradamente. Jack não se importou com aquilo, pegou seu dinheiro roubado e montou sozinho seu próprio espetáculo. Não precisou de leões ou zebras que não são zebras, muito menos de dançarinas esqueléticas se balançando num pedaço de pano mofado.

    Com a ajuda de um velho meio louco, que fazia cartazes para alguns músicos, ele construiu e imprimiu um grande e simples cartaz qual dizia nada mais que o necessário sobre seu espetáculo de um homem só.

    Ele encontrou uma cidade grande, uma praça lotada e montou seu show vermelho ali. Sob a pequena tenta roxa, onde algumas luzes dançam no teto e outras rastejam pelo chão até os pés do garoto sentado ao centro, numa mesa vazia, algumas mulheres sussurravam sobre ele ser bonito de mais para aquilo e, em parte, ninguém acreditava que ele era realmente capaz de fazer tais coisas.

    Jack não tinha muitos clientes, todos temiam entrar naquela tenda, ninguém queria conhecer quem fazia as coisas citadas no cartaz. Só alguns poucos curiosos conseguem reunir coragem suficiente para entrar e as moças que se deixavam encantar pela beleza do novo Jack. No fim, todos sempre acabavam impressionados com a verdadeira cara do sujeito lá dentro e se mandavam dali.

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Know-how habilidade técnica; conhecimento

Pústula vesícula cutânea cheia de pus; bolhas na pele

Enquanto Formos Jack (Raison D'être)Onde histórias criam vida. Descubra agora