Hoje foi um dia cansativo de trabalho, mas sem novidades até então. Atendimentos no Posto de Saúde; crianças, mulheres e idosos. Nada fora do usual, exceto pelo fato de estarmos dividindo o carro com a equipe de saúde do Panacuí, distrito que trabalhava Miguel, meu colega médico, Sônia, a enfermeira da equipe dele e Lívia que era da minha.
Era um fim de tarde em um verão típico cearense. Clima quente e seco. Isso significa muita poeira naquela estrada de barro e areia. A primeira coisa que lembramos ao chegar sempre é tomar um banho e tirar toda aquela sujidade grudada em nossas peles.
Há menos de um quilômetro da entrada da cidade estava parado um pequeno caminhão junto ao acostamento. Ao nos ver se aproximando, um homem salta na estrada agitando os braços como se precisasse de ajuda. Diminuímos a velocidade e paramos em ao lado dele, que se aproximou até a janela.
— Moço. Pelo amor de Deus nos ajude.
Só estávamos vendo uma pessoa, mas pela forma que ele falou parecia ter mais alguém no caminhão.
— O que está acontecendo? — Perguntou Miguel que estava no banco da frente do carro e ao lado do motorista.
— Minha mulher está tendo menino seu moço. Ali dentro do carro. — Responde o homem apontando em direção da cabine do caminhão.
— Mas não dá tempo chegar no hospital? Estamos a uns 3 quilômetros no máximo. — Perguntei.
Antes mesmo daquele senhor responder, Miguel desce do carro e vai em direção ao carro seguido de perto por ele. Ficamos no carro aguardando alguma avaliação dele, mas percebi que ao chegar na porta ele viu algo que o deixou paralisado. Uns dois ou três segundos foram o suficiente para perceber que eu deveria estar lá também. Desci rapidamente do carro e fui bem rápido aonde Miguel estava. E ele continuava imóvel.
— Adriano, rapaz. Olha só isso!
Uma senhora estava deitada no banco do carro com as pernas em nossa direção com o bebê coroando, nada demais se fosse a cabeça que estivesse saindo, mas ele estava numa apresentação de nádegas! Eu nunca havia presenciado um parto pélvico de nádegas, e pela reação, Miguel também não.
Tomei a frente e, com a mente a mil por hora, tentei lembrar das aulas do meu professor de Obstetrícia ainda na faculdade. Eu tinha que conseguir que ambas as pernas passassem pelo canal de parto e isso poderia não ser nada fácil.
— Meu senhor. Quantos filhos a sua esposa já teve? — Esta pergunta pode parecer não ter importância naquele momento, mas tinha sim. As mulheres de primeiro filho possuem um índice muito maior de complicar, principalmente naquelas condições, numa estrada, dentro de um caminhão, sem nenhum material que pudesse nos ajudar. Nem luvas tínhamos no momento.
— Este é o quarto filho doutor. Por favor salve minha mulher e meu filho.
Ouvir aquilo me trouxe um misto de alívio e preocupação, pois eu sabia que por ter tido partos antes ela teria uma chance maior, mas eu não sabia se poderia prometer um bom resultado.
— Vou tentar. Vou fazer o meu melhor.
Puxei o quadril dela para mais perto da porta, uma das pernas Miguel ficou segurando, arregacei as mangas da camisa e introduzi minha mão tentando localizar os joelhos. O bebê estava impactado, eu teria que tentar fazer as pernas curvarem para que pudessem sair. Naquele momento, com certeza algo divino aconteceu, pois, as imagens da aula de obstetrícia vieram em minha cabeça com uma clareza impressionante. E igualmente de forma milagrosa consegui rapidamente encontrar os dois joelhos e curvá-los de forma que ambos os pés vieram juntos.
Com uma pressão incrível o corpo quase todo saiu ficando ainda preso os dois ombros. Fiz um movimento, tipo alavanca, segurando o corpo da criança para baixo e um dos ombros se soltou, depois o outro. Apenas a cabeça ainda permanecia ainda no canal do parto. E esta é a parte mais difícil.
Novamente introduzi uma as mãos procurando a boca do bebê. Isso era necessário para eu tentar uma manobra de delivramento da cabeça sem pôr em risco a coluna cervical da filha dela, era uma menina! Consegui achar também rapidamente. Tracionei um pouco o corpo dela com dois dedos dentro da boca do bebê, a levantei em direção da mãe e saiu. Nasceu!
Ela estava imóvel. Toda roxa como estivesse sem vida. Não respirava. Desta vez Miguel tomou a frente e passou a friccionar o tórax e inspecionar a boca e nariz para ver se havia aspirado muito o liquido amniótico. Foram segundos intermináveis sem reação até que, subitamente, um choro fraco seguido de um mais forte.
— Está viva! — Gritei.
O motorista do nosso carro não sabia para onde ia, eu o via dar voltas no caminhão como se estivesse desorientado. Sônia e Lívia se posicionavam em nossas costas, tão ansiosas quanto nós estávamos. Neste momento colocamos o recém-nascido sobre a mãe, que o recebeu com um choro aliviado. Não tínhamos com que cortar o cordão umbilical e não poderíamos mesmo. O melhor seria conduzi-la agora para o hospital.
Foi neste momento que todos olharam de forma estranha para mim, e eu percebi que do pescoço para baixo, não havia uma parte do meu corpo que não estivesse coberto de secreções, líquido amniótico e sangue.
Tive que ir em casa primeiro para tomar um banho enquanto Miguel os acompanhava até o hospital. Tentei ser o mais rápido possível para encontrá-los ainda por lá. Com as roupas limpas procurei aquela senhora, que sequer cheguei a perguntar o nome, mas todos do plantão já estavam sabendo. Era a notícia do dia. Miguel, Sônia e Lívia ainda estavam por lá.
Me aproximei do leito daquela mãe e do bebê.
— Vocês estão bem?
— Estamos sim doutor. Como podemos agradecer?
— Não precisa. Escolhi isso para minha vida. — Disse pegando uma de suas mãos. Ela sorriu. Em seguida olhou para cada um de nós e pediu que nos aproximássemos.
— O nome dela vai ser Laura, e quando ela crescer não vou me cansar de contar como ela nasceu pelas mãos de quatro anjos.
O nome não poderia ser melhor escolhido. O nome Laura tem origem grega, derivado de louro. Na Antiguidade, o louro simbolizava a vitória e a imortalidade, bem como para os antigos romanos significava a glória. Na Grécia, era ofertado ao Deus Apolo e com suas folhas eram elaboradas coroas, utilizadas como prêmio dado aos vencedores nas Olimpíadas da Antiguidade e, ainda, para heróis, gênios e sábios. Miguel havia se certificado que não haviam ocorrido lacerações no canal do parto assim como não houveram danos importantes ao bebê. Partos deste tipo podem ocorrer fraturas de clavícula e até de membros. Mas graças a Deus tudo estava bem. Em razão de tudo isso, o nome Laura dado à aquela pequena criança, traduzia exatamente o significado da sua vida vitoriosa e triunfante.
***
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Memórias de um Médico no Sertão
Historia CortaQuando um médico recém formado prefere, antes de iniciar a sua especialização médica, atuar em comunidades bem humildes no interior do Ceará. Sem nunca ter vivido um dia fora dos grandes centros urbanos, terá que se deparar com situações inusitadas...