Lembro que algumas vezes senti um tipo de intuição, que me impelia a fazer algo que nem sempre seria o mais racional a ser feito. Certa vez recebi a visita de um destes representantes de medicamentos e iria me apresentar um novo antibiótico, que, por sinal, era bem caro. Recebi, entre outros produtos a mim apresentados, uma amostra de um tratamento completo. Ao chegar em casa costumo retirar todas estas amostras que recebo e guardar algumas para, quem sabe, entregar a algum paciente, amigo ou mesmo alguém da família.
Por algum motivo ficou a caixa do justo remédio, lançamento e caríssimo. Recordo que por uns dois ou três dias seguidos, ao chegar no trabalho, abria minha valise e dava de cara com ele e pensava: "ainda está aqui, quando voltar para casa o guardarei". Entretanto, esta situação se repetiu, como já disse, pelo menos umas três vezes. E era estranho para mim porque minha maleta era pequena e eu ficava bastante incomodado com algo que só estaria ocupando espaço.
Determinado dia, programamos fazer algumas visitas domiciliares a alguns pacientes Idosos. Durante o café da manhã, de uma forma súbita, não tenho explicação do porquê, me veio à cabeça que poderíamos incluir uma visita à residência de Seu Martins e Dona Sílvia. Eles tinham um filho que estava acamado há semanas por sequelas de grave fratura de quadril devido um atropelamento, e por algum motivo tive vontade de lhe dar um livro para ajudar ele a passar o tempo.
Então, fui ao posto de saúde, peguei as fichas dos atendimentos das pessoas que visitaria naquele dia, e junto com o agente de saúde do bairro, saímos em direção à casa do primeiro paciente.
Ao final da tarde, toda agenda cumprida, fomos a casa do Gilberto, um garoto acamado vítima de acidente. Ele tinha uns 13 anos, superinteligente e dedicado aos estudos. Eu ficava imaginando como seria difícil ter que ficar tanto tempo imóvel numa idade com tanta energia. Fomos bem recebidos pelos pais, muito simpáticos e pacientes com toda aquela situação e ao chegarmos no quarto ele também se mostrou bem animado.
− Oi Gilberto. Trouxemos algo para você. – falei mostrando-me animado.
− O Que foi Doutor?
− Trouxe um livro. Não sei se gostará, mas tem um pouco de cada coisa: suspense, conspiração e romance.
− Que bom! Eu queria muito esse livro!
Quando chegamos havia uma equipe do SAD (Serviço de Atendimento Domiciliar) da prefeitura, que diferentemente de meu trabalho como médico de família, eles seguem tratamentos semelhantes ao de um hospital, fazem visitas diárias ou em dias intercalados, conforme necessário e administram terapias multiprofissionais. Neste caso estava sendo administrado um antibiótico.
Subitamente, antes que Gilberto pudesse exprimir mais alguma emoção pelo livro, sua face muda com uma impressão de que estaria com um desconforto importante.
− O que foi Gilberto? – Me preocupei.
− Estou sem ar. Sem conseguir respirar. – E continuou pondo a mão no tórax e garganta em franca agonia.
− Que medicação foi administrada agora? – Perguntei a enfermeira do SAD.
− Foi o antibiótico. Está no quarto dia do uso e nunca aconteceu nada.
Gilberto piorava assustadoramente rápido, seu corpo rapidamente tomou a colocação vermelha, seus lábios edemaciaram numa velocidade que nunca havia visto antes. Parecia que tentava respirar e não conseguia. Tinha que pensar rápido.
− Você tem medicamentos de primeiros socorros?
− Temos sim doutor.
− Pegue uma adrenalina e uma ampola de dexametaxona, rápido. Faça 0,5ml de adrenalina subcutâneo e 4mg de Dexametasona na veia.
As medicações foram administradas, alguns instantes depois Gilberto começou a ficar sudoreico, melhorar a vermelhidão e respirar melhor. Foi uma reação alérgica grave, ele poderia ter evoluído com um edema de glote e morrer asfixiado. Pode parecer estranho, mas isso não é um erro e sim uma fatalidade. Ele não tinha registro de antecedentes de alergias a medicamentos e havia sido administrado de forma correta. Infelizmente algumas pessoas se descobrem alérgicas de uma forma que lhes pode ser fatal, felizmente essa não é a condição mais comum. Que bom, para Gilberto, que eu estava no local certo e na hora certa.
Superado o transtorno, ele dormiu. Não deu para conversamos mais sobre o livro, mas não importa. Ele está bem agora. Antes de sair os pais me agradeceram e serviram um café. Estávamos na sala de estar, prestes a sair quando uma moça, da vizinhança, aparentando uns 19 anos entra na casa chorando. A princípio pensei que ainda seria reflexo do ocorrido recente, mas em seguida ela explicou a situação.
− Doutor, me desculpe interromper, mas estou desesperada.
− Mas do que se trata? Qual é o seu nome?
− Virgínia, doutor. Sei que o senhor só faz visitas às pessoas acamadas, que não podem ir ao hospital, mas estou com muita dor de ouvido.
Levantei e verifiquei que o canal auditivo direito dela estava bem inflamado e com secreção purulenta.
− Realmente! É uma otite. Você está tomando algo?
− Eu fui ao médico. Ele me passou 10 dias de amoxilina, tomei direitinho, mas não melhorou. Dói muito e todo dia. Estive ontem novamente lá e ele prescreveu um outro: levofloxacino, mas não tenho dinheiro para comprar, custa mais de 100 reais uma caixa. – Disse aumentando o choro, agora pela perda de esperança de conseguir a medicação.
Lembrei do medicamento na minha valise. O mesmo que, por diversas vezes, tentei lembrar de retirar ao chegar em casa e por algum motivo esquecia. Naqueles últimos três dias, sempre que ia trabalhar e abria a maleta, lá estava a medicação, cheguei a me irritar com meu esquecimento.
A lembrança que nas minhas coisas estavam justamente o medicamento que ela precisava me deu um calafrio, uma sensação estranha, daquelas que dá um nó na garganta.
− Virgínia. Realmente nestas visitas domiciliares ando só com aquilo que é programado para eu fazer nos atendimentos dos acamados. Eu nunca ando com medicamentos na minha bolsa... – dei uma pausa e segui falando. – Há cerca de três ou quatro dias eu recebi um medicamento de um representante de laboratório, e durante este tempo tentei lembrar várias vezes de deixá-lo em casa, mas por algum motivo sempre esquecia. Hoje acabo de saber o motivo.
Abri a valise devagar, coloquei a mão dentro e peguei a medicação, antes de retirar de dentro continuei.
− Como disse, não ando com medicamentos, mas hoje tenho um aqui. É exatamente esse que você está precisando.
Retirei o medicamento e entreguei a ela que saiu aos prantos, desta vez de alegria. Não sabia como me agradecer, assim como não sabia que eu já estava grato por poder ajudar.
Na volta para casa não conseguia parar de pensar no que me fez, do nada ter a ideia de dar um livro para Gilberto, e, ao mesmo tempo, isso ter sido responsável tanto por eu estar na hora que ele teve um início de uma reação anafilática (alérgica grave) e consequentemente ajudar uma moça que há dias estava com otalgia, além de que a única e improvável medicação estaria entre minhas coisas. Isso não poderia ser coincidência. Isso é o que chamamos de Deus. Certamente ele mandou um anjo dizer no meu ouvido o que eu deveria fazer naquele dia e assim eu poderia ajudar duas pessoas que estavam muito precisando de mim.
Para terminar esta história, no dia seguinte recebi um recado de Gilberto. Ele estava triste por não ter podido me agradecer direito.
"Oi. Estou bem. Fiquei só com um pontinhos na pele por causa da reação alérgica, mas estou tomando os remédios e estou melhor. Eu ainda quero me encontrar com o senhor para eu agradecer pelo livro que gostei muito. Adorei mesmo! Só Deus sabe o quanto eu estava querendo este livro."
Estou feliz, se foram realmente os anjos que me conduziram naquele dia, não sei e talvez nunca saiba, mas se foram mesmo podem continuar me usando assim, adorei.
***
Não esqueça de votar logo abaixo na estrela, caso tenha gostado. Esta é a forma de me incentivar a continuar escrevendo. Obrigado.
YOU ARE READING
Memórias de um Médico no Sertão
Truyện NgắnQuando um médico recém formado prefere, antes de iniciar a sua especialização médica, atuar em comunidades bem humildes no interior do Ceará. Sem nunca ter vivido um dia fora dos grandes centros urbanos, terá que se deparar com situações inusitadas...